Com falta de informação e planejamento coordenado, a vacinação nos territórios indígenas está sem fiscalização.
Na imagem acima, Juscelina Ferreira da Silva, 56 anos indígena do povo Tukano é a primeira a tomar a vacina em São Gabriel da Cachoeira (Foto: Paulo Desana/Amazônia Real)
Manaus (AM) – As primeiras fotos com indígenas sendo vacinados foram feitas. Mas essas imagens estão longe de retratar a realidade dos territórios demarcados, onde ainda não se sabe ao certo o número de doses, os locais ou o cronograma da imunização. Lideranças ouvidas pela Amazônia Real revelam preocupação com a efetiva imunização dos seus povos, sobretudo em um país que virou notícia mundial ao constatar desvio de vacinas para pessoas que estão longe de fazer parte dos grupos prioritários.
“Disseram que os povos indígenas estão no grupo prioritário. Não estão. Indígenas estão sendo imunizados e isso mostra que há esperança. Mas não são todos os povos indígenas”, diz a presidente da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), Nara Baré. Ela lembra que muitos indígenas que lutam fora das aldeias foram excluídos. “Os que estão nas cidades, mas que estão em constante deslocamento para as aldeias, ficarão de fora”, protesta.
Nascida em uma aldeia da Terra Indígena do Alto Rio Negro, mas morando em Manaus, Nara Baré não terá direito à vacina CoronaVac nesta primeira fase. Indígenas em contexto urbano ou em territórios não demarcados pela Fundação Nacional do Índio (Funai) foram excluídos, o que cria um grande risco de saúde. Sem imunização para todos, os indígenas que estão em constante viagem entre cidade e aldeia podem se tornar vetores da infecção pelo novo coronavírus.
Por causa da omissão e negligência do Estado brasileiro, organizações regionais juntamente da Coiab têm ingressado com medidas cautelares no Supremo Tribunal Federal (STF). “O que a gente ressaltou e frisou foi a importância de se ver a especificidade de cada povo, mas principalmente para as regiões onde há presença de povos em isolamento voluntário, onde cada vez mais o vírus vem chegando”, alerta Nara. “Mas o estado brasileiro insiste… o genocídio dos povos indígenas está institucionalizado… o preconceito está… a discriminação está institucionalizada.”
Na última quarta-feira (20), a Frente Parlamentar Indígena do Congresso encaminhou ofício solicitando dados sobre o Plano Nacional de Vacinação contra a Covid-19. Em postagem na rede social, a deputada federal Joenia Wapichana (REDE), que preside a Frente Parlamentar, informou “não ter identificado informações sobre as estratégias que estão sendo adotadas pelos estados e o Distrito Federal em relação ao plano de vacinação para os povos indígenas que vivem em territórios em processo de regularização fundiária, acampamentos e contexto urbano”.
A frente parlamentar quer saber, por exemplo, os critérios para distribuição das vacinas contra o coronavírus, custos dessa logística, estrutura e recursos humanos para a primeira e segunda fase da imunização de indígenas e o cronograma para que seja alcançada a vacinação de todos os povos.
Estados ignoram pedido de informação dos indígenas
Nesta semana, a Coiab encaminhou carta solicitando esclarecimentos aos nove governadores dos Estados que integram a Amazônia Legal – Amapá, Amazonas, Maranhão, Mato Grosso, Tocantins, Rondônia, Roraima, Pará e Acre. Apenas o governo de Rondônia respondeu, mas para confirmar o recebimento do documento.
Além de informações sobre o custeio e as ações de vacinação dos povos indígenas, os indígenas também pedem a criação de fomentos e subsídios específicos como o fornecimento de cestas de alimentos e materiais de higiene e limpeza como ação preventiva para o isolamento social.
“O que temos hoje são índios com a vulnerabilidade estraçalhada. Primeiro é a negação de todos os direitos, de território, o que já deixa vulnerabilidade danificada, ainda mais com a questão da memória imunológica, a vulnerabilidade vai lá para o infinito”, afirma o indigenista Armando Soares.
A Amazônia Real solicitou à Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), vinculada ao Ministério da Saúde, dados sobre o número de pessoas que recebem cobertura do Subsistema de Saúde Indígena aptas para a vacinação contra a Covid-19. A reportagem, que até a publicação deste texto não recebeu uma resposta oficial, quer saber quantas doses foram enviadas para os territórios indígenas e quais as áreas, mesmo com indígenas, não serão atendidos na lista prioritária. Também solicitou o planejamento atualizado da cobertura vacinal para territórios localizados na Amazônia, sobretudo em áreas de difícil acesso.
Em reposta ao pedido de informação da reportagem sobre a carta enviada pela Coiab ao governador Wilson Lima, a Secretaria Estadual de Saúde (SES) apenas enviou uma carta com informações institucionais sobre a logística da vacina, mas não mencinou a demanda da organização indígena.
De acordo com a Fundação de Vigilância em Saúde do Amazonas (FVS-AM), das 282 mil doses de vacina enviadas em 18 de janeiro, cerca de 200 mil seriam destinadas aos 100.642 indígenas aldeados já nesta primeira etapa. As doses estão sendo entregues às prefeituras municipais, que repassam aos Dseis. “As Prefeituras são responsáveis por abastecer de informações o sistema nacional (e-SUS) que controla o cumprimento de metas de vacinação, de onde a vigilância estadual também obtém os dados para monitoramento”, respondeu, em nota, a FVS.
Vacinação inicia sem coordenação
A vacinação começou na segunda-feira (18) nos territórios indígenas, incluindo os localizados na região Norte. Ao menos um representante indígena foi vacinado em cada um dos nove Estados que compõem a Amazônia Legal. Ironicamente, a maioria dos vacinados é do chamado contexto urbano.
Em Rondônia, a vacinação ainda não começou em alguns territórios. Ela estava prevista para iniciar na quinta-feira (21), de acordo com o vereador Dalton Augusto Tupari, liderança da Terra Indígena Rio Branco. O território, no município de Alta Floresta D’Oeste, fica a 600 quilômetros de Porto Velho.
“Fomos informados de que pouco mais de 500 indígenas seriam vacinados, mas a quantidade de doses que veio era menor. Resolvemos aguardar a correção para começar”, afirma. Até o fechamento desta edição, a resposta solicitada ao governo de Rondônia não havia chegado.
No site do governo de Rondônia, não há informação sobre a população indígena a ser imunizada. Genericamente, afirma que as doses seriam distribuídas aos povos originários de 17 cidades do entorno de Ji-Paraná. O total de indígenas do Estado é de 13.076, segundo o IBGE.
“Não ficou definido de que maneira pode ser aplicada a vacina. A princípio, pensamos que tem que ser onde tem maior número de pessoas porque têm mais casas juntos, mais contato. Acho que essa será uma decisão da equipe da saúde com as lideranças”, afirma Dalton Tupari.
Em Roraima, praticamente metade da população autodeclarada indígena, de 49.637 pessoas, segundo o IBGE, ficará de fora da imunização. De acordo com o governo estadual, há 2.481 indígenas Yanomami e 23.390 de outras etnias atendidas pelo Dsei Leste, soma que corresponde ao total de vacinas enviadas pelo Ministério da Saúde.
No Amazonas, são 82,8 mil indígenas sem direito à vacinação contra Covid-19. O governo considera vacinar, nesta primeira etapa, 100.642 indígenas vivendo em terras aldeadas. Em Manaus, onde foi iniciada a vacinação simbolicamente pela auxiliar de enfermagem Vanda Witoto, surgiram as primeiras denúncias de favorecimento na aplicação de vacinas.
O Pará é o estado com menor diferença entre o número de doses previstas para a população indígena, 48.680, e o quantitativo de população autodeclarada, que é de 51.217. “A vacinação é algo que independe da questão territorial, todos os indígenas precisam ser vacinados. O movimento fez uma solicitação ao governo do estado e fizemos um apelo público, no dia do aniversário de Belém. Esperamos que todos sejam atendidos”, afirmou a vice-presidente da Fepipa, PuyrTembé.
Estados não usam autonomia
No início desta semana, organizações indígenas do Amazonas iniciaram um movimento para garantir o direito dos indígenas junto ao Superior Tribunal Federal (STF) e em denúncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (OEA). Ambos os documentos deverão ser protocolados ainda esta semana, de acordo com o professor e antropólogo Gersem José dos Santos Luciano. Na última segunda-feira (18), um abaixo-assinado articulado por representantes das 65 etnias no Amazonas foi protocolado junto ao Ministério Público Federal (MPF) reivindicando o direito à vacina.
“Nós não nos importamos de esperar, mas queremos que esse direito esteja garantido. Se não entrarmos todos na prioridade, não entramos em mais nenhuma etapa; estamos completamente excluídos, tratados como brancos, um absurdo”, critica o professor, que é também liderança indígena Baniwa do Alto Solimões.
Gersem Baniwa avalia que os Estados e municípios não querem ou não fazem questão de usar a autonomia garantida pelo STF para tomadas de decisão durante a pandemia. Ele defende que o Amazonas deveria ser o primeiro estado a vacinar todos os indígenas, incluindo os que são considerados “de contexto urbano”, já que é a unidade federativa que tem a maioria da população indígena brasileira, o equivalente a 20,4%, e um dos mais vulneráveis.
“O movimento indígena em Rondônia está se articulando para entrar com ação no STF, baseado no que o Amazonas vem fazendo. A população indígena que vive nas cidades só o faz porque não tem opção, seja para estudar, trabalhar. Se você pensar que o primeiro indígena vacinado no Estado, Bitaté Uru-Eu-Wau-Wau, é de contexto urbano, não faz sentido ignorar essa parcela da população indígena. Isso abre um precedente para que todos sejam vacinados”, defende Ivaneide Bandeira, coordenadora da Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé, organização baseada em Rondônia.
Dseis seguem desestruturados
O documento oficial do plano nacional de vacinação delega a responsabilidade pela discussão e definição da logística aos 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas (Dsei). Os Dsei são unidades gestoras descentralizadas do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena e, em alguns casos, abrangem mais de um município ou, até mesmo, mais de um estado. Os distritos são conhecidos pela falta de estrutura e pessoal.
No último dia 15, indígenas do povo Kanamari, no Amazonas, entregaram ao secretário da Sesai, Robson Santos da Silva, coronel da reserva do Exército, a reivindicação da criação de um Dsei no município de Eirunepé (a 1.106 quilômetros de Manaus). O novo distrito serviria para atender as Terras Indígenas Mawetek, Kanamari do Médio Juruá, Kulina e Deni, hoje dentro da jurisdição dos municípios de Eirunepé, Itamarati, Envira e Ipixuna. Nesse mesmo documento, eles solicitam a apresentação de um plano operacional de campanha de vacinação. Atualmente, os indígenas atendidos nessa região dependem das ações do distante Dsei Vale do Javari, na fronteira com o Peru.
De acordo com a liderança indígena Kadji Kanamari, o secretário da Sesai falou que a operacionalização contará com helicópteros do Exército e de horas de voo contratadas pela Associação dos Kanamari do Vale do Javari (Akavaja). O documento da Sesai sugere que a estratégia de imunização de indígenas para a Covid-19 seja nos moldes da “campanha da influenza”: “Continuamente os distritos realizam processos de compra para aquisição de equipamentos e insumos de forma a atender suas necessidades. Atualmente, os 34 Dsei contam com 287 refrigeradores solares, que colaboram com as ações de imunizações nas comunidades com maior dificuldade de acesso”.
Mas a realidade dos Dseis é marcada por falta de quase tudo: de combustível e conserto de motores para a embarcação que percorre as aldeias a medicamentos, balança e rádio para comunicação de casos graves no Vale do Javari. Equipes abandonaram o posto por falta de apoio e insumos, conforme denúncia da Akavaja.
Os povos Deni e Kanamari também protocolaram documento junto ao MPF, via Funai, listando as denúncias que se arrastam há pelo menos dois meses. “Não tem mais equipes de saúde. Por duas vezes, as aldeias foram abandonadas. Hoje não tem médico. Falta teste rápido. Isso é muito grave num momento de pandemia”, afirma o diretor da Associação Kanamari do Vale do Javari (Akavaja), Adelson Korá Kanamari.
“Os Dseis acabam esperando a decisão da Sesai, ainda mais agora com a militarização. O fato é que não se tem nenhum posicionamento, ninguém falou nada”, diz o médico sanitarista Douglas Rodrigues. Ele reforça que o sistema de vacinação entre indígenas foi um dos grandes avanços na saúde de atenção básica nos últimos 10 anos. “Para que a imunização seja eficiente é preciso ter equipe suficiente, transporte adequado e equipamentos, com uma boa rede de frio. Não adianta chegar na última aldeia do braço do rio e injetar uma vacina inócua, porque não estava em temperatura adequada”, alerta.
Imunização de indígenas deveria ser planejada por eles
“O que temos é um panorama desastroso: temos na direção dos Dseis em Brasília (Robson Santos da Silva) uma pessoa que andou prescrevendo cloroquina para levar às terras indígenas”, acrescenta o indigenista Armando Soares. Ele alerta que mesmo que os indígenas participem dos conselhos dos Dseis, os órgãos são “suspeitos” para assumir a vacinação dos povos.
Para o indigenista, os povos indígenas têm 100% de condições de “desenhar a mais hábil logística para aplicação da vacinação”. “Não existe fórmula mágica, nenhum sistema de planejamento sofisticadíssimo que possa superar a voz das lideranças indígenas que estão nas terras, nas aldeias e até mesmo nas cidades. Como temos um governo que está desrespeitando de forma profunda os direitos humanos dos povos, ignorando a presença deles, se for fazer a vacinação seguindo os critérios do governo, não haverá sucesso porque o critério é não ouvir os índios”, afirma.
No Pará, a Federação dos Povos Indígenas do Pará (Fepipa) apresentou um documento ao governo estadual colocando à disposição a estrutura da associação distribuída entre as coordenações locais de oito etno-regiões para garantir a vacinação de 58,3 mil indígenas que se encontram em mais de 70 Territórios Indígenas, e outros 12 mil que vivem em contexto urbano.
No Vale do Javari, os indígenas também não sabem quantas vacinas foram destinadas à localidade, somente que começará pela região do Alto Juruá, no rio Solimões, de acordo com Kadji Josiel Kanamari, sem detalhamento da ordem de vacinação nas aldeias.
O município de Parintins, segunda maior cidade do Amazonas, recebeu na tarde de terça-feira 19 de janeiro, 1.069 doses de vacina Coronavac. Segundo a Prefeitura, estavam previstas mais de 4 mil doses, mas o Ministério da Saúde mudou o quantitativo. Desse total, o Dsei Parintins, responsável por 17 mil indígenas em cinco municípios do Baixo Amazonas: Parintins, Barreirinha, Boa Vista do Ramos, Maués (Sateré-Mawé), e Nhamundá (Hyskaryana), recebeu 555 doses.
A difícil situação dos indígenas isolados
“O que estamos vivendo agora com a pandemia é exatamente o que os indígenas enfrentam há séculos: estamos morrendo porque não temos uma memória imunológica para a Covid-19”, afirma o consultor indigenista Antenor Vaz. “O atual sistema de saúde indígena não dá conta e não responde à demanda vivida pelos contatados quanto mais dos isolados. Para além dessas doenças, os isolados também estão expostos à Covid-19.”
Atualmente, sabe-se da existência de 115 povos isolados. Vaz explica que para proteger os isolados é preciso fazer os chamados cordões sanitários. Isso significa que, se o governo atuasse na defesa dos indígenas, estaria pensando em vacinar a população do entorno, incluindo quilombolas, ribeirinhos, indígenas contatados até os infratores.
Na Terra Indígena Rio Branco, onde há registro de indígenas isolados, a contaminação é de 227 indígenas e foi iniciada há pouco mais de um mês, em 10 de dezembro, quando foi registrado o primeiro caso, segundo Dalton Tupari. Duas pessoas faleceram no domingo 17. “Estamos passando meio aperreado, estamos em um sufoco danado, a doença está só aumentando nos últimos dias”, afirmou a liderança local.
O que dizem as autoridades
No Amazonas, o governador Wilson Lima (PSC) anuncia que a vacinação da população indígena é prioritária. A FVS-AM informou que atualmente existem 794 salas de vacinação instaladas no estado. No entanto, os municípios estão concluindo seus planos para ampliação de novas salas de vacinas. “O plano prevê a campanha em etapas por grupos prioritários, ainda sem data definida”, informa a FVS.
O Ministério da Saúde informou que os 34 Dseis já estão organizados para realizar a campanha de vacinação. “As equipes farão o transporte dos imunobiológicos e insumos para as mais de 6 mil aldeias indígenas por meio de deslocamento fluvial, terrestre e aéreo. As vacinas disponibilizadas já acompanham as respectivas seringas”, diz a nota. (Colaborou Elaíze Farias)
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