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A decisão prevê que estudantes, professores e funcionários públicos indígenas não se desloquem para os centros urbanos por tempo indeterminado

Na imagem estão os Kanamari da TI Vale do Javari, no Amazonas

(Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)


Manaus (AM) – Em uma das regiões mais remotas da Amazônia – a Terra Indígena Vale do Javari -, os indígenas optaram por se recolher nas aldeias por tempo indeterminado, sem retorno às zonas urbanas, para se prevenirem contra a disseminação da doença respiratória Covid-19, o novo coronavírus. A medida inclui, inclusive, estudantes, professores e funcionários de órgãos públicos que se deslocam constantemente das aldeias para a sede do município amazonense de Atalaia do Norte, onde o território está localizado, a 1.138 quilômetros da capital Manaus.

A Terra Indígena Vale do Javari é segunda maior do país (atrás apenas da TI Yanomami, em Roraima e Amazonas), com 8,5 milhões de hectares. O território foi homologado em 2001. Até o momento não foram registrados casos de coronavírus na população indígena brasileira. Leia aqui informações sobre a doença divulgadas pelo Ministério da Saúde.

O presidente da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), Paulo Marubo, disse à Amazônia Real que os indígenas do território estão com medo da Covid-19 e temem que a população, que já é pequena, fique reduzida caso um deles seja infectado pelo coronavírus. Ele afirmou que alunos estão sendo retirados das escolas por seus pais para serem levados às aldeias de origem. A Univaja ainda está fazendo o levantamento do número de indígenas que deverão sair da sede de Atalaia do Norte.

“Nós, do movimento indígena, estamos preocupados com a situação. O estado não está preparado nos atender se surgir coronavírus na nossa cidade. Os pais tomaram a decisão de levar seus filhos. Não sei quando vão retornar. Alguns dizem que só vão autorizar [o retorno dos filhos] no próximo ano”, disse ele.

Na aldeias, a medicina tradicional está sendo usada contra o coronavírus. “Temos nossos pajés, de nossos povos, que estão benzendo jenipapo para se prevenir. Prevenir desse vírus”, contou Paulo Marubo.

Radiofonia leva notícias

Aldeia Kanamari, na Terra Indígena Vale do Javari, no Amazonas
(Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)

Sem internet e televisão nas aldeias, os indígenas do Vale do Javari acompanham as notícias sobre a pandemia da Covid-19 pela radiofonia ou pela rede social whatsapp, quando há sinal disponível por satélite. Outro canal de comunicação são os telefones públicos instalados em algumas comunidades.

Os indígenas do povo Kanamari, um dos seis contatados a TI Vale do Javari, foram os primeiros a decidir pelo retorno às aldeias por tempo indeterminado. A liderança Adelson Korá Kanamari disse que, até a próxima semana, todas as famílias que quiserem retornar deverão comunicar às organizações indígenas, “porque depois não haverá embarcação disponível”. As viagens até às aldeias duram, em média, de um dia a uma semana, dependendo da capacidade da embarcação, devido às grandes distâncias para as zonas urbanas.

“Soube que os parentes Marubo, Matís, Mayoruna também estão organizando isso. Quando a pandemia ficar mais calma, decidiremos o que fazer. Vamos acompanhar as notícias pela radiofonia, por telefone público, etc”, disse ele, que é subcoordenador da Associação Indígena Kanamari (Akavaja).

Segundo Korá Kanamari, a Funai não oferece meios de proteger o território de invasores e a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), do Ministério da Saúde, não tem estrutura para atender pessoas que possam vir a ser infectadas na cidade. Por isso a opção é se recolher nas aldeias e aguardar o fim da pandemia. O Vale do Javari é um território com alto índice de doenças endêmicas, tais como malária e hepatite, que e atingem, sobretudo, idosos e jovens.

Paulo Marubo também afirmou que todas as atividades no Vale do Javari foram encerradas e canceladas. Nem mesmo reuniões entre as lideranças foram mantidas.  “Cancelamos tudo: programações, agendas, viagens. Tanto a nossa quanto a de nossos parceiros por causa do coronavírus. A gente vê que está avançando e ficamos com medo”, disse.

Ele afirmou que está preocupado com uma possível emergência caso ocorra contágio entre os indígenas. Geralmente um deslocamento de uma pessoa da aldeia para uma unidade de saúde na cidade pode levar horas ou dias, dependendo da localidade. Em Atalaia do Norte, não há unidades de referências em saúde e, em casos graves, os doentes são transferidos para Manaus, por via área, quando há disponibilidade de transporte.

“Sabemos que o Estado brasileiro não está preparado caso algum parente contraia esse vírus e uma hora dessas nós poderíamos acabar. Até porque, pela nossa área geográfica, sendo grande e distante, o Estado não teria tempo de chegar para atender nossos parentes”, contou Paulo Marubo.


No Mato Grosso, os indígenas do Parque Nacional do Xingu decidiram pela quarentena voluntária para combater o coronavírus.


         

Indígenas Korubo, contatados em 2016, pela Funai
(Foto: Heriverto Vagas/Acervo CGIIRC-Funai)

A população da TI Vale é estimada em pouco mais de 5 mil pessoas, pertencentes às etnias Marubo, Mayoruna (também conhecidos como Matsés), Matís, Kanamari, Kulina Pano, e Tsohom Djapá (este de recente contato) e Korubo – entre estes, há pelo menos dois grupos já contatados. O território tem 16 grupos de indígenas isolados registrados na Fundação Nacional do Índio (Funai); 11 são confirmados.

Nesta semana, a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), vinculada ao Ministério da Saúde, anunciou o Plano de Contingência Nacional para Infecção Humana pelo novo Coronavírus (Covid-19). Ele está sendo discutido nos respectivos territórios indígenas em conjunto com o Distritos Sanitários Indígenas (Dsei) e Conselho Distrital Indígena (Condisi), mas vem recebendo críticas de lideranças e especialistas em saúde indígena. O plano foi divulgado depois que o Ministério Público Federal cobrou da Sesai ações de combate ao coronavírus nos territórios indígenas.

Portaria da Funai é criticada

No dia 17, a Fundação Nacional do Índio (Funai) baixou uma portaria suspendendo a autorização de entrada em terras indígenas “para evitar a disseminação do novo coronavírus nas aldeias, uma vez que as populações indígenas se encontram no grupo de risco de contaminação por serem mais suscetíveis e vulneráveis ao contágio”. A portaria provocou controvérsia porque no artigo 4º ela sugere que comunidades de indígenas isolados podem ser contatadas “caso a atividade seja essencial à sobrevivência do grupo isolado e deve ser autorizada pela CR (Coordenação Regional) por ato justificado”, mas não detalha que “ato justificado” seria esse e nem informa como se daria o contato neste momento.

A decisão específica sobre os isolados por parte da Funai foi criticada por lideranças indígenas, como Nara Baré, coordenadora-geral da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab). “Sabemos que as diretrizes da Funai são de proteção, monitoramento e fiscalização justamente para que não haja esse contato. Aí coloca isso na portaria, dando a entender que  Funai quer sim esse objetivo: o contato”, disse ela, que também fez alertas sobre o plano da Sesai, chamando-o de “genérico”.

No último dia 18, o Conselho Nacional dos Índios Humanos (CNDH) recomendou que a Funai revogue o item 4º da Portaria. Um dos motivos, segundo o CNDH, que é vinculado ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, é que “as Coordenações Regionais não necessariamente possuem corpo técnico com a habilitação pericial adequada para lidar com as especificidades das políticas públicas dos povos em isolamento voluntário”.

A Terra Indígena Vale do Javari é uma das mais vulneráveis do país, com constante alvo de ataques e invasões de pescadores e caçadores ilegais, garimpeiros, além de ser rota de embarcações que fazem transporte de narcotráfico. O território é também alvo de ações de missionários evangélicos.

O líder Korá Kanamari disse também que tomou conhecimento sobre a portaria da Funai que restringe o acesso às terras indígenas. Ele criticou o conteúdo referente aos isolados. Para ele, a Funai demonstra desconhecimento sobre seu próprio funcionamento. “O órgão está com muita gente nova e parece que eles desconhecem as próprias normas”, disse.

Apib cobra plano emergencial

As canoas são o meio de transporte dos Kanamari na TI Vale do Javeri
(Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)

Nesta sexta-feira (20), a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) divulgou nota cobrando do governo federal medidas de proteção aos povos indígenas que vão além do atendimento recomendado no Plano da Sesai e que não são mencionados na portaria da Funai. A Apib mostra-se preocupada com os territórios ainda não demarcados, com os povos que correm risco de desapropriação e chama atenção para a falta de estrutura da Sesai e dos Dsei´s.

Na nota, a Apib pede a garantia de proteção dos territórios, independentemente da fase de regularização em que se encontram e que sejama suspensas “quaisquer tentativas de despejo em retomadas dos territórios de ocupação tradicional dos nossos povos voltadas a garantir o seu direito originário, de posse e usufruto exclusivo”

A Apib pede um Plano de Ação Emergencial que, por exemplo, “Fortaleça, com dotação orçamentaria adicional, o subsistema de saúde indígena, isto é, a Secretaria Especial de Saúde Indígena – Sesai, os Distritos Sanitários Especiais Indígenas (Dsei´s) e as Casas de Saúde Indígena (Casai´s), recondicionando-as aos novos tempos da pandemia do coronavirus, uma vez que em alguns casos se tornam lugares aglomerados.”

A organização também cobra a revogação da Portaria n.º 419, de 17 de março de 2020, baixada pela Funai, especialmente o artigo 4º., que retira da Coordenação Geral de Índios Isolados a responsabilidade de proteger esses povos, repassando-a às coordenações regionais do órgão indigenista, mesmo sabendo que estas não reúnem quadro qualificado e condições estruturais para tal missão específica.

Segundo a Apib, essa decisão “burla toda a legislação específica nacional (Constituição Federal, Estatuto do Índio, Regimento Interno da Funai, determinações do Ministério da Saúde e da Sesai) e internacional (Declaração Americana dos Direitos dos Povos Indígenas, resoluções da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e da OMS), constitui um ato de irresponsabilidade uma vez que traz mais risco à integridade dos povos isolados e de recente contato. A decisão só pode ser justificada em razão de interesses não explicitados, já denunciados em outras oportunidades pela nossa organização.”

Risco na fronteira

Korá Kanamari é diretor da Associação dos Kanamari do Vale do Javari (Akavaja) (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)

Nesta quinta-feira (19), o governo federal determinou o fechamento de fronteira com os outros países da América do Sul. Isso aconteceu dias depois que Peru e Colômbia, por exemplo, que fazem fronteira com a Amazônia brasileira, já haviam tomado essa medida. No entanto, a ausência de aparato de fiscalização na TI Vale do Javari também causa apreensão entre os indígenas.

O líder Korá Kanamari alerta para as facilidades do trânsito na fronteira da TI Vale do Javari com os países vizinhos. Segundo ele, mesmo com as fronteiras fechadas, o acesso de pessoas não indígenas é comum, pois não existem operações de fiscalização por parte dos órgãos governamentais.

“Não tem controle de estrangeiro no município de Atalaia do Norte. Eles vêm a qualquer hora. A gente acompanha notícias de países do primeiro mundo, onde teve muitas mortes com o coronavírus. Imagine nós. Aqui não tem médico, não tem leito, os hospitais não têm estrutura. Um parente morre de diarreia e pneumonia. Não tem barco para transportar doente. Se essa doença chegar aqui, vai ser uma calamidade. Não somos imunes e nosso povo já é muito pouco”, alerta o líder Kanamari.

O que dizem as autoridades?

Por meio da assessoria de imprensa, a Reitoria da Universidade Estadual do Amazonas (UEA) informou que no início da semana emitiu uma portaria suspendendo todas as atividades na capital e no interior por conta da Covid-19. Ainda não há data para o retorno de nenhuma atividade. “A Pró-Reitoria de Graduação irá aguardar que o período de pico da doença diminua para fazer um novo calendário acadêmico. A medida inclui o curso de Pedagogia Intercultural Indígena, em Atalaia do Norte”, disse a instituição.

A decisão da UEA fez professores indígenas, que estudam Pedagogia Intercultural Indígena no campus de Atalaia do Norte antecipar o encerramento do módulo atual, que estava marcado para esta sexta-feira (20).

A Funai foi procurada para responder se atenderá o pedido do CNDH, mas não respondeu. A assessoria de imprensa enviou à reportagem uma nota, publicada no site da Funai, na qual informa que “as Coordenações Regionais poderão conceder autorizações apenas em caráter excepcional, mediante ato que seja devidamente justificado, para a realização de atividades essenciais às populações indígenas”, disse. Em outro trecho, a fundação diz “reiteramos que se trata de medida temporária e excepcional, adotada levando em conta o período de emergência de saúde pública decorrente da expansão do coronavírus.”

“Reforçamos que tal determinação somente pode ser excepcionada caso a atividade seja estritamente essencial à sobrevivência do grupo isolado. Conforme portaria, consideram-se essenciais as ações que de fato fundamentem a sobrevivência das comunidades indígenas, como casos emergenciais envolvendo a saúde e a segurança dos grupos. Demais atividades estão suspensas”, diz a nota.

A Funai foi questionada pela Amazônia Real a respeito da estrutura que disponibilizará para proteger, fiscalizar e monitorar as terras indígenas, especialmente os localizados em área de fronteira e onde há grupos isolados, no período de vigência da pandemia do coronavírus, mas o órgão não respondeu.

Nesta quinta-feira (19), o governo do Amazonas anunciou a suspensão das aulas na rede pública de ensino todos os 62 municípios do estado. Mas os indígenas já haviam decidido, antes mesmo da decisão do governador Wilson Lima (PSC), pela suspensão das aulas nas escolas urbanas.

Cartilha de combate ao coronavírus produzido pelo Parque Nacional do Xingu

Saiba como são os sintomas do coronavírus

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a contaminação pelo Covid-19 se espalha de maneira semelhante à gripe, pelo ar após a tosse, coriza e a liberação de gotículas de quem está infectado.

Os sintomas são: febre, tosse, coriza e dificuldade para respirar. Procurar uma unidade de saúde é a primeira atitude a tomar neste caso.

O quadro da pessoa infectada com o coronavírus pode se agravar para uma pneumonia, o que exige a internação do paciente.

Pessoas com mais de 50 anos de idade estão mais vulneráveis, principalmente os idosos.

Quem está com o sistema imunológico debilitado e possui doenças crônicas, como as cardiovasculares, diabetes ou infecções pulmonares também pode adoecer gravemente.

Medidas como fazer uma quarentena voluntária em casa tem sido a melhor forma de combater a disseminação da doença no mundo. Leia a cartilha dos povos do Xingu.

 

Fonte: https://amazoniareal.com.br/indigenas-do-vale-do-javari-decidem-ficar-nas-aldeias-para-prevenir-o-coronavirus/

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