Por: Barbara Arisi 

Domingo passado (22) começa com o som de alerta de meu telefone com uma mensagem do governo holandês. Na tela, assim como na de todos os cidadãos do país que utilizam um smartphone (os que têm modelos 2G ou 3G não a receberam!), estava escrito:

Noodmelding NL alert22-03-2020″. Volg instrui Rijksoverheid op: houd 1,5 metro afstand! Bent U ziek de verkouden? Bijf thuis. Bescherm Uzelf en de mensen om U heen. Samen tegen Corona. Mantenha a sua distância dos outros”. A expectativa é de que até dia 1º de abril, os (ricos) Países Baixos ficarão com todos seus 1.200 leitos de UTI lotados. Até agora, o governo holandês não construiu nenhuma nova unidade intensiva para se preparar para a pandemia, mas pretende obrigar-nos à “distância social”. Num tal caos, não podemos sequer debater publicamente por que o governo não investe em salvar a sua população “de cabelos grisalhos”, como se diz aqui de forma mais ou menos carinhosa para com os idosos.

Ainda com sono, checo messenger, facebook e whatsapp por notícias da minha família. Uma postagem feita por Paulo Kenampa Marubo, líder indígena da Terra Indígena Vale do Javari, no Amazonas, chama minha atenção. Ele postou sobre o perigo de um missionário americano chamado Andrew Tonkin que “tenta novamente entrar no território indígena para continuar com seu trabalho de conversão” e estaria num encontro com outro pastor norte-americano na cidade de Atalaia do Norte, no estado do Amazonas (na fronteira do Brasil com o Peru). Enquanto estamos em um “distanciamento social forçado” por muitos governos, os missionários pretendem entrar em “contato forçado” com os poucos povos indígenas que vivem totalmente independentes das sociedades envolventes!

Desde 2006, trabalho no Vale do Javari como pesquisadora com os indígenas Matís, cuja língua aprendi a entender e a falar. Para meu mestrado, gravei as reflexões e as narrativas de mulheres e homens do povo Matís sobre a experiência traumática de entrar em contato com a sociedade brasileira e sobre como ajudaram o governo brasileiro a estabelecer relações com os Korubo, um povo que vivia independente das outras populações até 1998. Até o final dos anos 70, os Matís costumavam viver em pequenos riachos localizados no meio do território. Entre 1976 e 1978, representantes do Estado brasileiro chegaram com a ordem de fazer o que a Fundação Nacional do Índio (Funai) chamou de processo de “pacificação” ou, em outros termos oficiais: “atrair” ou estabelecer “primeiro contato” com os bravios ou indígenas “indomados”. Como resultado, 2/3 da população Matís morreu de gripe comum e outras doenças tão simples de curar, mas para as quais seus corpos não tinham um sistema imunológico pronto para lutar. Foi um genocídio perpetrado durante o regime ditatorial cívico-militar, um dos crimes pelos quais os agentes governamentais nunca tiveram que responder nos tribunais, nunca foram feitas políticas de reparação ou mitigação (até agora).

Imagem aérea de sobrevoo da Indígena do Vale do Javari ( Barbara Arisi/Creative Commons)

Atualmente, a Terra Indígena Vale do Javari está demarcada; é a segunda maior do Brasil. Seus 8,5 milhões de hectares de alta área florestal abrigam o maior número de indígenas que vivem em isolamento voluntário do mundo. Até o governo Bolsonaro, este imenso território vinha sendo razoavelmente protegido pelos próprios povos indígenas e também devido ao esforço de funcionários governamentais que trabalham na região. Os povos indígenas Mayoruna (Matsés), Marubo, Matis, Tüküna (Kanamary), Tsohom-Djapá, Kulina (Pano) e Korubo partilham o vasto território com parcelas de sua população que preferem continuar a viver em isolamento, e alguns outros grupos desconhecidos como os “Flecheiros” e outros sobre os quais ainda desconhecemos. Mesmo sofrendo com os garimpeiros e madeireiros ilegais, esses povos ainda procuram evitar o contato permanente com o mundo exterior. A violência havia já aumentado desde que Bolsonaro se tornou presidente do Brasil. Um trabalhador da Funai foi morto em setembro de 2019 e houve um ataque com armas de fogo contra os postos de vigilância na confluência das ribeiras Ituí e Itacoaí em dezembro de 2019.

Nesta realidade surrealista de centros urbanos europeus esvaziados de pessoas por Covid-19, e de nós tentando organizar nossas vidas neste “cerco” em nossos próprios quartos, parece que vivemos num “isolamento voluntário”, mas na verdade, como me lembrou meu telefone com aquela mensagem matinal no domingo, estamos vivendo um “isolamento reforçado” declarado pelo governo holandês. Por certa ironia do destino, moro num antigo hospital católico romano, cujo prédio é considerado um monumento. Ocupado em 1979, já foi o maior prédio ocupado (squat) da Europa, e atualmente o Oude RKZ é o maior complexo de “habitação social” da Holanda. Cerca de 250 habitantes vivem aqui, muitos deles são artistas e músicos, gente que vive com benefício social, técnicos em informática, capitães de navio, profissionais autônomos, seus filhos e netos, e até eu, uma etnóloga amazônica transformada em antropóloga urbana e pesquisadora sobre gestão de resíduos plásticos e orgânicos. Nesta comunidade urbana onde moro, compartilhamos nosso banheiro, duchas e cozinhas em cada um dos departamentos (bloco de quartos). Só alguns de nós têm o seu WC privado. Assim, na comunidade auto-organizada, estamos nos adaptando para manter limpo com álcool os locais comuns, assim como os corrimãos e as maçanetas das portas.

Embarcação no rio Itacoaí, na TI Vale do Javari no Amazonas (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)

Nesse bonito dia que começara sob um belo céu azul e 7°C, reflito com meus botões que temos sorte de não ter missionários tentando entrar no velho hospital católico onde vivemos para converter esses velhos punkies. Aqui, de longe, ajudo Kenampa a editar a carta para a União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja). Ele pretende enviá-la para a Polícia Federal e para os jornalistas. Desde 3 de Março, a Univaja tem alertado as autoridades que a ameaça de invasão dos missionários é real. A agência Mongabay também tinha publicado sobre o assunto.

No começo da semana, com colegas do Brasil, França, México e EUA, editamos um documento da Society for the Anthropology of Lowland South America (SALSA) para ser enviado ao governo brasileiro expressando nossas preocupações como antropólogos sobre as organizações religiosas que são tão impulsionadas a entrar ilegalmente em territórios indígenas, mesmo após o surto de Covid-19.

Esta ameaça da caixa de Pandora foi aberta pelo governo Bolsonaro quando um pastor evangélico formado em Antropologia na cidade vizinha de Benjamin Constant (AM), TI Vale do Javari, foi nomeado chefe da Coordenação Geral de Índios Isolados e de Recente Contato. O pastor se chama Ricardo Lopes Dias. Essa decisão do governo Bolsonaro e da Funai foi recebida pelos povos indígenas com receio. Um amigo escreveu: “é como nomear um lobo para proteger as ovelhas”.  Além disso, o governo federal havia emitido recentemente uma decisão contra todas as políticas que eram válidas desde 1987 de evitar o contato forçado com os povos que se recusavam a tal. Apenas um ano antes da promulgação da nova Constituição e depois de décadas forçando a população indígena a estabelecer contato para que o país pudesse construir estradas, hidrelétricas e minas, finalmente e graças à pressão de povos indígenas e alguns indigenistas experientes como Sydney Possuelo que havia vivido a tragédia de ter feito contato com diversos povos para construir a Transamazônica (entre eles os Arara) e ter assistido a morte deles decorrente de gripe e outras doenças, é que a lei brasileira declarou que o Estado não buscaria mais contato com populações indígenas que se recusassem a ser “contatadas”.

O governo Bolsonaro, com o pastor, citado acima, no cargo máximo da CCIIRC haviam tentado dar um golpe nessa política de não contato, haviam emitido uma portaria de que os coordenadores locais da Funai pudessem voltar a ter direito de entrar em contato com os grupos que vivem fugindo do “contato com a Funai”. Felizmente, por conta da pandemia, essa portaria que é um grande retrocesso para o direito dos povos indígenas, foi revogada em 20 de março.

Moradias de indígenas da TI Vale do Javari no Amazonas (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)

Enquanto isso, eu acompanhava as notícias pela imprensa digital. Li com alegria que a carta do coordenador da Univaja Kenamba Marubo, havia surtido efeito! Saíra uma reportagem publicada no jornal O Globo! E, na página do Ministério Público Federal de 25 de março, o ministério público informava que requisita um inquérito policial para averiguar as acusações da Univaja de que o missionário Andrew Tonkin está tentando novamente entrar de forma ilegal durante a pandemia para também ilegalmente forçar contato com os povos indígenas que vivem no igarapé Lambança, provavelmente uma parcela do povo Korubo que ainda se recusa bravamente ao contato com os demais povos do entorno.

Li também notícias sobre brasileiros já testando positivo para o Covid-19 (“o vírus dos ricos”, como alguns o chamam) e como eles estão se preparando nas favelas, onde nem todos têm água corrente. Parece que “estamos isolados, mas não estamos sozinhos”, como escreveu o professor Bessa Freire em seu blog. Este lema parece ser verdadeiro para os brasileiros que protestam durante a pandemia. Também parece ser verdade para nós na ORKZ tentando manter nossos banheiros e cozinha comunitários limpos. Também é verdade para as comunidades do Rio tentando se organizar para ter água limpa e outros serviços públicos quando ninguém faria isso por eles, e também pode ser verdade para os indígenas da Amazônia que, apesar de todas as probabilidades, ainda se recusam a ser contaminados por esta praga global chamada ‘nós’, o ‘mundo global’.


Obs: Uma versão desse texto será publicada em inglês pela revista de Antropologia Médica da University College of London (UCL).


A foto que abre este texto mostra crianças da aldeia 31, do povo Mayoruna/Matsés, na TI Vale do Javari, e é de autoria de Barbara Arisi


Barbara Arisi é professora de Antropologia da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (2019), atualmente em afastamento não remunerado, trabalha como pesquisadora pós-doutoranda na Vrije Universiteit Amsterdam e para a Universidade Federal de Santa Catarina.

Terra Indígena Vale do Javari (Foto: Bárbara Arisi)

NOTAS:

ARISI, B. M. 2011. Matis y korubo, contacto y pueblos aislados. Narrativas nativas y etnografía en la Amazonia brasileira. Mundo Amazónico, v. 1, p. 41-64.

ARISI, B. M.; CESARINO, P. N. e FRANCISCO, D. A.. 2011. Saúde na Terra Indígena Vale do Javari, diagnóstico médico-antropológico: subsídios e recomendações para uma política de assistência.

BESSA FREIRE, J. R. Quarentena: Isolados sim, sozinhos nunca. Taquiprati, 23 Mar 2020.

BRANDFORD, S. Bringing Christ and coronavirus: Evangelicals to contact Amazon indigenous. Mongabay, 17 Mar 2020.

FARIAS, Elaíze. Terras Indígenas Arariboia e Vale do Javari são atacadas a tiros na Amazônia: um líder Guajajara é morto. Amazônia Real, 02 Nov 2019

 

 

Fonte: https://amazoniareal.com.br/indigenas-do-vale-do-javari-evitam-missionarios-e-nos-a-peste-global/

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