O aparecimento de indígenas isolados em áreas próximas de aldeias de indígenas contatados na Terra Indígena Vale do Javari, no Amazonas, mobiliza indigenistas e agentes de saúde. Os primeiros relatos informam que há receio nessa aproximação, uma vez que “eles estão gritando e muito agitados”. A presença dos indígenas isolados foi notada na manhã desta segunda-feira (01) na margem do médio rio Ituí em frente à aldeia São Joaquim, do povo Marubo. Equipes tentam chegar a tempo na aldeia, onde os isolados foram avistados nos últimos dias.

“Se eles atravessarem do lado da comunidade, o caso é muito preocupante, é gravíssimo. Pode ocorrer confito”, alertou Clóvis Marubo à Amazônia Real. O líder indígena disse que as mulheres Marubo estavam na roça colhendo banana, quando ouviram os indígenas isolados imitando sons de animais. Com medo e por precaução, elas atravessaram para o outro lado do rio para escapar do grupo, depois seguiram uma trilha e retornaram à aldeia. 

A aldeia São Joaquim fica a quatro dias de viagem até a cidade de Atalaia do Norte, no oeste do Amazonas, subindo pelo rio Itacoaí. De helicóptero, o percurso seria encurtado para 1 hora e meia.

Um esforço entre indigenistas da Frente de Proteção Etnoambiental do Vale do Javari (FPEVJ) e agentes da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) está sendo articulado desde a tarde de segunda-feira para conseguir esse transporte aéreo. Os dois órgãos federais são ligados à Fundação Nacional do Índio (Funai) e ao Ministério da Saúde, respectivamente. Mas até esta manhã (2), a chegada do helicóptero era incerta.

A reportagem apurou que os indígenas isolados podem ser associados aos registros de povos nos igarapés São Salvador e Pedro Lopes, que vivem na TI Vale do Javari. Na terra indígena há registros de 19 povos com língua e costumes desconhecidos da Funai. O grupo seria de 30 a 40 pessoas. Para Clóvis Marubo, esse grupo ocupa os rios Novo e Negro, afuentes do rio Ituí. “Eles estão no território de ocupação deles. Eles sempre viveram ali”, disse.

Já um indigenista, que preferiu não citar o nome, pois a Funai proíbe que servidores falem com a imprensa, relatou que não esperavam por esse contato. “Estamos surpresos porque eles só aparecem assim em busca de algum apoio com saúde ou alguma catástrofe que possa ter atingido o grupo. Os Marubo não compreendem a língua deles, então é uma situação de emergência”, disse.

Em uma nota de esclarecimento, a União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja) disse que uma técnica de enfermagem de nome Ana Maria confirmou o avistamento dos isolados. “Os mesmo estão gritando e muito agitados, e isso está causando receio para os moradores da aldeia São Joaquim”, diz a nota, destacando que indígenas Marubo da aldeia Rio Novo estão descendo o rio para apoiar São Joaquim.  

“Providências urgentes”

Clóvis Marubo (Reprodução Facebook)

Clóvis disse que nesta terça-feira recebeu uma ligação de um enfermeiro informando que os isolados continuam procurando algum contato na margem do rio Ituí em frente à comunidade São Joaquim. “Agora às 6h30, recebi a ligação do enfermeiro Magno que os isolados continuam do lado da comunidade”, disse. 

Ele destacou que o vice-presidente da Organização das Aldeias Marubo do Rio Ituí (Oami), Lucas Marubo, está apoiando a articulação entre os órgãos federais, pois ele é funcionário da Funai. “Nós queremos providências urgentes para enviar as equipes”, reforçou Clóvis Marubo. Desde a tarde de segunda-feira, foi instalada uma Sala de Situação para subsidiar a tomada de decisões dos gestores da Funai e da Sesai sobre a ação das equipes locais diante desse contato. 

A Funai e o Ministério da Saúde assinaram a portaria conjunta 4.094, de 20 de dezembro de 2018, que definiu princípios, diretrizes e estratégias para a atenção à saúde dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato. A portaria tem como um dos princípios, o artigo 231 da Constituição Federal, que reconhece aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho sobre Povos Indígenas e Tribais. 

A portaria define povos Indígenas Isolados como aqueles que estão sob a perspectiva do Estado brasileiro, mas não mantêm contatos intensos e/ou constantes com a população majoritária, evitando contatos com pessoas exógenas a seu coletivo. É nessa portaria que estabelece que o Ministério da Saúde e a Funai precisam instalar um “Plano de Contingência para Situações de Contato de modo a responder de forma adequada e oportuna às situações de contato, devendo abranger o conjunto de atividades e procedimentos para estabelecer medidas de prevenção ou mitigação dos efeitos negativos desse tipo de evento”. 

A portaria estabelece ainda que é obrigação dos órgãos oferecer “os recursos, insumos e equipamentos de comunicação e transporte necessários às ações de atenção à saúde dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato serão garantidos pela Sesai/MS de acordo com suas competências institucionais”. E finaliza: “Deverão ser garantidas condições adequadas de alimentação e alojamento, incluindo o conveniente isolamento sanitário, bem como a presença de acompanhante e/ou intérprete”.

Na região, a Sesai coordena o Distrito Sanitário de Saúde Indígena – Dsei Vale do Javari atende uma população de  6.379 indígenas de 12 etnias. São 61 aldeias, 8 Unidade Básica de Saúde Indigena, 7 Polo Base e uma Casa de Saúde Indígena.

Demora no auxílio

Sydney Possuelo no contato de 1996 com os Korubo (Foto cedida por Ricardo Beliel)

Amazônia Real apurou que na região o único órgão que tem um helicóptero é a Marinha do Brasil, em Tabatinga, vizinha de Atalaia do Norte. Mas o Comando Militar da Amazônia (CMA) não foi acionado pelo Ministério da Saúde. “Eles vão alegar que a emergência não é atribuição direta deles [a Marinha]”, disse uma fonte à reportagem. O CMA foi procurado para saber se vai auxiliar nesse episódio. A reportagem ainda aguarda um retorno da Marinha.

A situação faz lembrar o início das buscas ao indigenista Bruno Pereira e o jornalistas Dom Phillips no dia 5 de junho, quando desapareceram no rio Itacoaí, no entorno da TI Vale do Javari. As buscas da Marinha e do Exército só começaram após a repercussão internacional. Na época, o CMA disse que “estava em condições de cumprir a missão humanitária de busca e salvamento”, mas que “as ações serão iniciadas mediante acionamento por parte do Escalão Superior”. As buscas começaram no dia 6, mas as equipes de campo só saíram, de fato, 24 horas depois, quando Bruno e Dom já estavam mortos.  

Se confirmado o aparecimento do grupo de indígenas isolados na aldeia São Joaquim, este será o segundo contato entre povos do Vale do Javari dos últimos oito anos. 

Em 2014, a Funai anunciou que um grupo de isolados da etnia Korubo fizeram um segundo contato com os Kanamari, que são de recente contato. Um homem e uma mulher, acompanhados de quatro crianças, formalizaram diálogos com indígenas da aldeia Massapê, que fica na Terra Indígena Vale do Javari, localizada no extremo oeste do Estado Amazonas, na fronteira do Brasil com o Peru. O primeiro contato dos índios Korubo aconteceu em 1996 durante uma expedição ao Vale do Javari coordenada pelo sertanista Sydney Possuelo, ex-presidente da Funai. Na ocasião, o contato foi necessário por causa dos sucessivos conflitos com mortes de índios e não-indígenas na região, segundo a fundação. Esse grupo vive próximo a Base de Proteção Etnoambiental Ituí-Itacoaí, na Terra Indígena Vale do Javari.

19 povos isolados

Terra Indígena Vale do Javari (Foto: Bárbara Arisi)

Segundo a Coordenação Geral de Índios Isolados e Recém Contatados da Funai, no Vale do Javari há registros de 19 povos isolados. São eles, Isolados do Alto Jutaí, Isolados do Igarapé Alerta, Isolados do Igarapé Amburus, Isolados do Igarapé Cravo, Isolados do Igarapé Flecheira, Isolados do Igarapé Inferno, Isolados do Igarapé Lambança, Isolados do Igarapé Nauá, Isolados do Igarapé Pedro Lopes, Isolados do Igarapé São José, Isolados do Igarapé São Salvador, Isolados do Jandiatuba, Isolados do Rio Bóia/Curuena, Isolados do Rio Coari, Isolados do Rio Esquerdo, Isolados do Rio Itacoaí, Isolados do Rio Pedra, Isolados do Rio Quixito, Isolados Korubo, além dos indígenas de recente contato: Kanamari, Korubo, Kulina Pano, Marubo, Matis, Matsés e Tsohom-Dyapa.

A Terra Indígena Vale do Javari tem 8,4 milhões de hectares. Líderes indígenas relatam o aumento das invasões de seus territórios e das ameaças desde a eleição de Jair Bolsonaro (PL), no final do ano de 2018 e no ano de 2019. Após os assassinatos de Bruno Pereira e Dom Phillips, ficou evidente o grau de insegurança na região do Vale do Javari com ameaças de pescadores, caçadores e garimpeiros contra servidores da Funai e novos ataques à base de proteção etnoambiental, que fica no rio Ituí. Segundo o jornal O Globo, devido a situação Leandro Ribeiro do Amaral, que atuava interinamente na coordenação da Frente de Proteção Etnoambiental, pediu exoneração do cargo como publicado no dia 27 de julho no Diário Oficial da União. Ele ocupava a coordenação desde 2020.

Leia a cobertura sobre os assassinatos de Bruno Pereira e Dom Phillips

Kátia

 Kátia Brasil

Kátia Brasil é co-fundadora e editora executiva da agência de jornalismo independente e investigativo Amazônia Real, com sede em Manaus (AM). Formada pela Faculdade Hélio Alonso, no Rio de Janeiro, é radicada na Amazônia desde os anos 1990, onde trabalhou na TV Cultura e jornais O Globo, A Gazeta de Roraima, O Estado de S. Paulo e Folha de S. Paulo. Entre os prêmios que ganhou estão o Esso Regional Norte 1991 e Women Journo Heroes (#JournoHeroes), da International Women’s Media Foundation (IWMF), em 2019. Ganhou o Prêmio Abraji de 2020 e o Comunique-se em 2021. Está na segunda posição dos +Premiados da Imprensa Brasileira 2021. É conselheira da Artigo 19, da Énois escola de jornalismo e do projeto Tornavoz. Integra o forbiddenstories.org (katia@amazoniareal.com.br)

Fonte:https://amazoniareal.com.br/indigenas-isolados-vale-do-javari/

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