Manaus (AM) – Jovens indígenas que vivem no contexto urbano se viram, assim que foram adotadas as políticas de isolamento social, sem muitas saídas para trabalhar durante a pandemia do novo coronavírus. Muitos que moram nas cidades para estudar, preferiram ficar em vez de correr o risco de levar o vírus para os territórios, onde moram pais e avós em comunidades e aldeias. Mas sem dinheiro, foi preciso se reinventar. Artesãs começaram a produzir máscaras de pano. Com escolas fechadas, outros foram estudar na internet.

A Covid-19 já atingiu 3.166 indígenas brasileiros de 98 povos diferentes, e matou 269 pessoas, segundo a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), que inclui nos números dados da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), do Ministério da Saúde, divulgados até 12 de junho.

Na mesma data, a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), que monitora a pandemia na região amazônica, informou 3.443 casos confirmados de novo coronavírus e 244 mortes – 43 povos foram atingidos pela doença.

A jovem liderança Samela Lorena Vilacio Marteninghi, de 23 anos, estuda biologia na Universidade do Estado do Amazonas (UEA). Neta e filha de artesãs, ela integra a Associação de Mulheres indígenas Sateré-Mawé (Amism) e vive com mais 15 parentes no bairro da Compensa 2, na zona oeste de Manaus.

Com a quarentena e fechamento de comércios, as artesãs deixaram de vender colares, pulseiras e brincos de sementes nas feiras. Os pedidos de encomendas, vindos até do exterior, praticamente pararam de chegar. As artesãs deixaram, inclusive, de coletar sementes nas áreas de floresta localizadas na capital amazonense. “As crianças não saíram mais de casa para brincar com os vizinhos”, conta Samela.

Começou a faltar dinheiro para comprar alimentos entre os Sateré-Mawé, que vivem na comunidade da capital amazonense. Samela, então, fez uma divulgação em suas redes sociais pedindo apoio.  “Recebemos ajuda de algumas pessoas, apenas com alimento”, diz.

Em abril, o sistema de saúde de Manaus colapsou. Com medo de contrair a doença, os indígenas têm evitado ir para os prontos-socorros e hospitais. Recorrem aos conhecimentos medicinais da floresta, ainda que não haja comprovação científica de sua eficiência contra o coronavírus. Muitos indígenas não estão sendo testados e jamais se saberá quantos realmente tiveram contato com o vírus.

Apesar da adoção de medidas de higiene e do isolamento social, Samela disse que quatro pessoas da comunidade foram infectadas pela Covid-19, inclusive sua mãe, Regina Vilaço. “Passei duas semanas bem doente mesmo, com muita dor de cabeça. Muita febre, dores no corpo, diarreia e sem apetite para comer. O que me sarou foram as ervas medicinais e mais os óleos da mata, que são andiroba e copaíba”, disse a mãe.

Regina Vilacio (de óculos), a matriarca e confecção de máscara pela associação
(Foto: Samela Sateré-Mawé)

Um grupo de artistas britânicos, o Artist Project Earth (APE-UK), decidiu ajudar as mulheres Sateré-Mawé a produzirem máscaras de proteção. A APE-UK doou recursos para a compra de duas máquinas de costura, tecido, tesouras e elástico. A produção de máscaras tem servido de alívio. Elas já produziram 6 mil máscaras. “Foi uma alternativa para manter nossos subsídios, além de ser uma forma de nos reinventarmos”, disse Samela.

As máscaras de tecidos  recebem uma camada de TNT para reforçar a segurança. Em maio, o físico Paulo Artaxo, da Universidade de São Paulo (USP), coordenador do projeto Respire! Máscaras Seguras, aprovou a proteção das máscaras feitas sob a coordenação de Samela Sateré-Mawé.

Longe do rio Açuã, no sul do Amazonas

Puré Juma (Foto arquivo pessoal)

No sul do Estado do Amazonas, Puré Juma, de 18 anos, permaneceu na cidade de Humaitá, onde cursa o segundo ano do ensino médio, longe da terra indígena. “O que estou fazendo diariamente é estudando e também praticando um esporte como o Muay Thai. O professor passa as aulas online assim como a minha escola está fazendo, passando as atividades virtualmente”, disse o indígena das etnias Uru-Eu-Wau-Wau/Juma. Puré disse que se sente sozinho na cidade e até pensou em retornar à comunidade, a 250 quilômetros de Humaitá. A aldeia Juma fica no rio Açuã, no município de Canutama. Mas se fosse, correria o risco de não conseguir concluir os estudos.

Primo de Puré, o jovem Bitaté Uru Eu Wau Wau, de 19 anos, é uma liderança do Território Indígena Uru-Eu-Wau-Wau, em Rondônia, onde se encontra agora. As entradas para visitantes foram fechadas e os jovens indígenas estão tomando todos os cuidados de higiene e evitando a ir para a cidade. Eles estão recebendo orientações para prevenção da pandemia dos servidores da Fundação Nacional do Índio (Funai) e da Sesai, os únicos não-indígenas autorizadas a entrar na comunidade.

A falta de assistência para os povos Kokama

Comunicador, o cacique Gracildo Kokama fez a campanha na sua comunidade

Na Comunidade Monte Santo, no município de São Paulo de Olivença, na região do Alto Solimões, no oeste do Amazonas, as informações estão chegando por meio de alto-falantes. O município fica a mais de mil quilômetros de distância de Manaus, na fronteira com o Peru e Colômbia.

“A gente não tem rádio aqui, a gente vai no ‘boca de ferro’ que é o nosso meio de comunicação, para alertar as pessoas. Para as pessoas que vêm de fora, que não possam adentrar na comunidade e nem os indígenas sair daqui da comunidade e ir a outras localidades, sem que seja preciso”, afirma o jovem cacique Gracildo Moraes Arcanjo, 28 anos, da etnia Kokama.

Gracildo ia com frequência à cidade para conversar com lideranças e movimentos indígenas. “A minha rotina nos últimos dias tem mudado muito, tenho ficado mais em casa cuidando da família e quando é necessário saio para pescar, ajudo minha mãe a arrancar mandioca para fazer farinha, para guardar em casa os alimentos necessários e ficar nos resguardando”, afirmou.

O cacique é mais um que apresentou sintomas da Covid-19: febre, dor no corpo, falta de paladar; mas jamais saberá se teve contato com o vírus pela falta de testes. “A saída foi o auto-isolamento”, diz.

Gracildo mostra preocupação com a evolução da doença, que já matou 55 indígenas Kokama, etnia mais atingida pelo vírus na Amazônia. “A situação é muito agravante, o contágio está aumentando e o medo que a gente tem é de mais mortes”, disse.

“Aqui em nosso município, como nos municípios vizinhos onde tem vários irmãos indígena Kokama e de outros povos, não tem estrutura para atendimento às pessoas que estão com a Covid-19 nos hospitais”, disse.

“A falta de cuidado de assistência para os povos indígenas do Alto Solimões infelizmente é negligência, inclusive, nos hospitais de não reconhecer a raça como indígena e cor. As pessoas (no atendimento médico) colocam pardo, colocam branco, quando somos indígenas”, disse o cacique Gracildo Moraes Kokama.

Aulas online e o cuidado com os anciões

A estudante Hamangai Melo Pataxó (Foto: arquivo pessoal)

No sul da Bahia, a indígena do povo Pataxó Ha-Hã-Hãe, Hamangai Melo Pataxó, de 22 anos, mora na cidade de Cruz das Almas para estudar medicina veterinária na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). De quarentena em casa com a mãe e a irmã, só há pouco ela passou a assistir a aulas remotas.  “A UFRB, bem como outras universidades, estão tomando uma atitude provisória para nós estudantes dá continuidade nos estudos de forma online, mas isso é recente”.

A indefinição tem perturbado a vida de Hamangai. Se, antes, ela já tinha dificuldades para dormir, com a pandemia o problema persistiu.  “Já tem uns 20 dias que eu tomo remédio e consigo dormir até às 5 da manhã”, disse Hamangai, que contou que está fazendo cursos online disponíveis na internet para colaborar com os estudos.

A jovem, que antes quase não parava em casa e agora tem se dedicado à família e a trabalhos voluntários, está aprendendo a trabalhar com plataformas de comunicação na rede em que faz parte, o Engajamundo – uma organização internacional de liderança jovem que atua no enfrentamento dos problemas ambientais e sociais. “Estou conseguindo me inserir mais nos GT (grupos de trabalhos) de gênero que faço parte na rede, inclusive, vamos começar em breve nosso clube do livro no qual já estou ansiosa para as leituras”, disse.

Esse aprendizado tecnológico pode ajudar a  estudante Pataxó a levar informação para os anciões. “Tenho preocupação justamente com aquelas pessoas que têm pouco acesso a informação, que não têm energia, acesso à internet, telefone, e não estão sendo orientados. Os anciãos da aldeia não têm Whatsapp, Facebook, nem nenhuma rede social”, disse Hamangai Melo Pataxó. “Se a gente perde um ancião da aldeia, a gente perde um livro aberto. Ele é o que nos orienta em tudo, quando a gente perde, perdemos o livro, ele vai se fechar”.

A jovem teme pela demora de um posicionamento dos órgãos, pois muitos povos não têm acesso a médicos. “Cada povo tem sua organização interna, sobretudo tem sua língua, seu idioma, sua tradição, cultura. Então, como é que o governo federal ainda não se posicionou, de apresentar um plano emergencial no combate, no enfrentamento da covid-19 nos territórios indígenas?”

Ela conta que ,em muitas aldeias indígenas de todo o Brasil, faltam transporte para os indígenas, seja de carro, ônibus, barco ou avião. “Aqui na Bahia a gente tem muita dificuldade na questão de transporte, de se deslocar e ir no médico, hospital, as estradas não ajudam, são ruins, perigosas, quem tem um dinheirinho para fretar um carro, freta para ir ao médico, quem não tem precisa tentar pegar uma carona, pedir ajuda a alguém da comunidade”, disse Hamangai.

A estudante sabe dos desafios do momento em que a Humanidade está enfrentando, e acredita que pode haver um aprendizado desse momento. “A gente vive em uma sociedade onde muitas coisas são impostas, é um acesso de informação também, o momento agora é um momento de cura, de se reconectar, se fortalecer, mudar hábitos, a mãe Terra não aguenta mais tanta exploração, é o consumo exagerado, para além da necessidade individual de cada um. É mais para a gente refletir mesmo e trabalhar isso internamente”, afirmou Hamangai Melo Pataxó.

Mulheres sateré mawé confeccionam máscaras em Manaus (Foto: Natalie Brasil)

 

 

Fonte: https://amazoniareal.com.br/jovens-indigenas-se-reinventam-no-trabalho-e-no-estudo-para-enfrentar-a-quarentena-da-covid-19/

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