Manaus (AM) – A juíza Sissi Marlene Dietrich Schwantes, da Vara Cível Única de Alto Alegre, município de Roraima, autorizou a reintegração de posse da Comunidade Pium, que fica na Terra Indígena Pium, região Tabaio, que é homologada há 30 anos pela Fundação Nacional do Índio (Funai). A decisão da juíza foi a favor de ruralistas e produtores de soja, que alegam serem donos das terras. A área reivindicada é de ocupação tradicional dos povos Macuxi, Wapichana e Sapará.

A reintegração de posse integral determinada pela juíza foi cumprida nesta quarta-feira (01) por homens fortemente armas e com escudos do Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope) da Polícia Militar. Durante a ação, 15 casas dos indígenas foram destruídas e queimadas na Comunidade Pium. Indígenas, que filmaram as cenas de violência e postaram nas redes sociais,  afirmam que houve disparos de balas de borracha e apreensão de três motocicletas. Alguns deles foram feridos por balas de borracha disparadas por policiais. Outros ficaram com os olhos irritados pelo gás lacrimgêneo disparado pelos PMs.

Esta é a segunda ação violenta da Polícia Militar de Roraima contra indígenas em menos de um mês. Em 16 de novembro, dez pessoas da  Terra Índígena Raposa Serra do Sol ficaram feridas após policiais do Bope desbloquearem um posto de monitoramento contra garimpos ilegais na comunidade Tabatinga, localizada na região de Serras.

A demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol foi a questão mais emblemática da história dos povos tradicionais do estado devido aos conflitos, invasões dos territórios, racismo e preconceitos provocados pelos não indígenas que não aceitaram a homologação das terras. Foi o Supremo Tribunal Federal (SFT) que decidiu pela demarcação contínua do território, mas, na ocasião, criou a tese do marco temporal. Essa tese é defendida por ruralistas e apoiada pelo presidente da República, Jair Bolsonaro, para ampliar o agronegócio em terras indígenas.

Indígena da Comunidade Pium mostra ferimento de bala de borracha disparada por PMs (Foto: CIR)

O processo que questiona a demarcação da Comunidade Pium começou em junho de 2021. Nele, os fazendeiros Caio Roncon Modotti e Juliana Roncon Modotti dizem que são proprietários das terras desde 1991, mesmo ano em que a Terra Indígena Pium foi demarcada, em 10 de outubro daquele ano com 4.583,55  hectares.

Somente em maio deste ano foi que os fazendeiros afirmaram que ficaram sabendo de uma suposta invasão territorial dos indígenas nas fazendas Realeza e Campo Largo. Eles afirmam que as duas fazendas têm 191,05 e 303,06 hectares, respectivamente.

A juíza Sissi Schwantes, no entanto, concedeu uma tutela de urgência, sob alegação de “necessidade” dos ruralistas, que estariam sendo impedidos de realizar “atividade produtiva desenvolvida e planejada para a área” na área de conflito das fazendas com a terra da Comunidade Pium.

“Destarte, em juízo de cognição sumária, verifico lastro probatório mínimo que demonstra o direito alegado pelo autor, razão pela qual deve ser concedida a tutela provisória de urgência de reintegração de posse”, diz a decisão de Schwantes, assinada em 8 de junho. A multa diária em caso de descumprimento foi estabelecida em R$ 500, limitada a 30 dias. 

A reportagem procurou o advogado dos ruralistas, Luiz Fernando Vian Espeiorin, do escritório jurídico Hartmann e Felberg, de São Paulo. Ele não respondeu as perguntas enviadas para os dois fazendeiros. Caio Roncon Modotti e Juliana Roncon Modotti não foram localizados para falar.

Embora homologada, os indígenas do território Pium questionam os limites da demarcação. De acordo com o Conselho Indígena de Roraima (CIR), na época, a Funai desconsiderou a parte do território que abrange as nascentes dos igarapés Pium e Tabaio, considerado um lugar sagrado.

“Durante o processo de demarcação (na década de 80), os fazendeiros pressionaram para que a terra fosse demarcada em ilhas, desconsiderando os recursos naturais fundamentais da Comunidade Pium. A Funai não ouviu a comunidade e excluiu da demarcação a área da Comunidade”, explica o assessor jurídico do CIR, advogado Ivo Aureliano, do povo Macuxi. 

Comunidade Pium dos indígenas Wapichana, Macuxi e Sapará (Foto: CIR)

Em 2000, foi protocolado na Funai um pedido de reestudo da área, mas ele ainda não foi feito. Em abril deste ano, os indígenas da comunidade foram surpreendidos pela abordagem de dois fazendeiros. “Eles começaram a fazer o arado no local para fazer plantio de soja dentro da área demarcada e também da área de retomada, que é um espaço de uso coletivo da comunidade”, diz Ivo Aureliano. 

Os indígenas alegam que a área sempre foi tradicional dos povos, local em que há antepassados sepultados. “Até hoje a comunidade luta para garantir  reestudo. Várias famílias moravam na área há mais de 15 anos e nunca foi contestado. Agora aparecem os supostos proprietários, inclusive ajuizando processo judicial de reintegração de posse contra os indígenas”, afirma o advogado indígea. 

A Terra Indígena Pium tem uma população de 470 pessoas, com 118 famílias, 101 crianças e 85 jovens, de acordo com levantamento feito pelo CIR em maio deste ano. Os indígenas vivem da agricultura familiar, pesca, caça e criação de animais de pequeno porte. Ainda de acordo com o CIR, as famílias praticam o extrativismo da polpa do buriti e venda de artesanatos.

A Funai foi procurada pela reportagem para falar a respeito da homologação da terra, mas não respondeu até a publicação dessa matéria. 

Contradição da justiça 

Comunidade Indígena Pium sofre violência policial durante reintegração de posse
(Foto: CIR)

Os ruralistas Caio Roncon Modotti e Juliana Roncon Modotti não são os primeiros a pedir a reintegração de posse do território da Comunidade Pium, que fica dentro da Terra Indígena Pium. Em abril deste ano, os filhos de Espólio de Edgardo Luis Tortarolo também iniciaram processo solicitando restituição. A juíza Sissi Marlene Dietrich Schwantes tomou decisão diferente neste caso. 

Edgardo Luis Tortorolo, segundo a inicial do processo, seria o dono de 343,7079 hectares da área, desde 2004. Edgardo faleceu e agora os filhos pedem as terras. “Procurando os herdeiros investir no imóvel, dando sequência ao sonho do pai, buscaram efetivar o georreferenciamento do imóvel, entretanto, foram surpreendidos e impedidos pelos réus.Segundo o autor, os réus seriam indígenas da comunidade indígena que fica próxima a propriedade e estão tentando de forma ilícita invadir a área”, diz a inicial do processo. 

O filho de Edgar, Leonardo Penna Firme Tortarolo, também pediu uma concessão de tutela de urgência para retirada imediata dos indígenas. A juíza deferiu parcialmente o pedido, aceitando apenas que os indígenas permitissem a realização do georreferenciamento do imóvel e proibindo que fizessem mudanças no espaço, como imposição de cercas, sob pena de pagamento de multa diária de R$ 200. Essa decisão foi publicada em 26 de abril.

Depois disso, o Ministério Público Federal (MPF) foi acionado e pediu que o processo fosse encaminhado para a Justiça Federal.”O MPF não figura como parte, deve intervir na qualidade de fiscal da ordem jurídica, razão pela qual requer a declaração de incompetência deste juízo e a remessa dos autos à Seção Judiciária do Estado de Roraima”, diz o documento.

Em 26 de setembro esse processo teve seu trânsito em julgado, foi arquivado e encaminhado para a Justiça Federal, por decisão de Sissi Marlene Dietrich Schwantes. “Assim, diante da manifestação do MPF não há outro caminho a trilhar senão o reconhecimento da incompetência deste juízo, ao menos em tese. Ante o exposto. Acolho a exceção de incompetência e determino a imediata remessa dos autos à Justiça Federal”, decidiu a juíza. 

A contradição da juíza é contestada pelo advogado do CIR, Ivo Aureliano, que defende os indígenas da Comunidade Pium. Ele aguarda análise de novo pedido para que Sissi tome decisão similar nos dois processos. “Após tomar conhecimento disso, logo pela manhã despachamos com a Juíza falando que a demanda se trata do mesmo caso. É juntamos manifestação nesse sentido. Ela ainda não analisou”, explicou. 

Bope ataca com violência

Polícia ataca a Comunidade Indígena Pium como armas, balas de borracha e gás
(Foto: CIR)

O Conselho Indígena de Roraima (CIR) informou que a chegada dos policiais ocorreu às 6h da manhã de quarta-feira (01) na Comunidade Pium. Imagens e vídeos com cenas de violência foram divulgados nas redes sociais. Elas mostram uma tropa de choque de ao menos 17 policiais armados e com escudos, além de uma escavadeira, enquanto os indígenas, desarmados, gravam a ação com os celulares. 

“As famílias estavam fazendo café e cuidando dos serviços de casa antes de sair para trabalhar. Ao tentar dialogar os Policiais Militares revidaram jogando bombas contra as mulheres, crianças e jovens. Dois jovens ficaram feridos por balas de borracha, mesmo não havendo resistência por parte dos indígenas”, explica o CIR.

Procurado pela reportagem, o governo de Roraima, que é governado pelo bolsonarista Antonio Denarium (PP),  nega atos de violência. “Uma equipe da Polícia Militar acompanhou o oficial de Justiça da Comarca de Alto Alegre em cumprimento do Mandado de Reintegração de Posse (referente ao processo N° 0800326-61.2021.8.23.0005) por ordem do Juiz de Direito da Vara Cível Única de Alto Alegre”. Esclarece que “após exaustiva negociação com o intuito de fazer cumprir a Lei de forma pacífica, as pessoas que ocupavam a propriedade se recusavam a sair e cumprir a ordem judicial”. 

Em outro ponto da nota, o governo disse que “não houve truculência, apenas resposta proporcional à resistência passiva em razão do não cumprimento de uma ordem legal emitida pelo juiz de direito da comarca do Alto Alegre”, diz o governo. 

E justifica o uso da força policial. “Diante da situação de resistência, foi necessário o uso da força estatal de maneira seletiva e progressiva. Porém, não há relato de pessoas feridas e a ordem judicial foi devidamente cumprida”.

Segunda ação policial

PM feriu indígenas da Terra Raposa Serra do Sol em 16 de novembro (Foto: CIR)

Há menos de um mês o Bope de Roraima também foi acionado para uma ocorrência na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em que dez pessoas ficaram feridas, algumas com tiro na cabeça e peito, entre elas um idoso e uma mulher. A ocorrência era uma ação de desbloqueio de um posto de monitoramento contra garimpos ilegais na comunidade Tabatinga, localizada na região de Serras.

A reportagem da Amazônia Real questionou a presença do Bope na reintegração de posse da Comunidade Pium e o número de policiais. O Governo de Roraima afirmou que apenas o Bope é responsável para atuar nestes casos e que o número do efetivo para essas situações é padronizado.

“O Batalhão de Operações Policiais Especiais – Bope através da Companhia de Choque é a responsável por atuar nas reintegrações de posse em apoio aos oficiais de justiça no cumprimento das decisões judiciais dessa natureza. A companhia de choque atua sempre com o efetivo padronizado em número suficiente para garantir a segurança do oficial de justiça e demais pessoas participantes do evento”, disse o Governo de Roraima.

A deputada federal Joenia Wapichana (Rede-RR) fez um discurso na Câmara Federal, pedindo que o Bope pare de atuar em casos de conflitos indígenas e que tenha a participação da Funai e do MPF. Antes, ela também já tinha repudiado a presença dos policiais militares na ocorrência na Terra Indígena Raposa Serra do Sol.

Vim externar a minha preocupação diante do crescente uso de força policial contra as comunidades indígenas de Roraima.Isso teria sido superado por outras medidas para resolver conflitos, diálogos, conversa, como sempre teve, com a presença da Funai, do Ministério Público Federal, da própria Polícia Federal, que são mais preparados para esse tipo de situação e não o Bope da Polícia Militar. Até o exército tem esse diálogo, não chega já colocando bomba, gás lacrimogêneo, na presença de crianças”, disse.

O que diz a PM

Comunidade Indígena Pium sofre violência policial durante reintegração de posse
(Foto: CIR)

Sobre a ação da Polícia Militar na Comunidade Pium, o governo de Roraima diz que “uma equipe  acompanhou o oficial de Justiça da Comarca de Alto Alegre em cumprimento do Mandado de Reintegração de Posse (referente ao processo N° 0800326-61.2021.8.23.0005) por ordem do Juiz de Direito da Vara Cível Única de Alto Alegre”. Esclarece que “após exaustiva negociação com o intuito de fazer cumprir a Lei de forma pacífica, as pessoas que ocupavam a propriedade se recusavam a sair e cumprir a ordem judicial”. 

“Diante da situação de resistência, foi necessário o uso da força estatal de maneira seletiva e progressiva. Porém, não há relato de pessoas feridas e a ordem judicial foi devidamente  cumprida.

Ressalta que não houve truculência, apenas resposta proporcional à resistência passiva em razão do não cumprimento de uma ordem legal emitida pelo juiz de direito da comarca do Alto Alegre.”

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Reportagem Investigativa Sobre a matéria

Jullie

 Jullie Pereira

Jullie Pereira é jornalista manauara formada pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam). Em 2020 fundou a Abaré, organização com foco no jornalismo local e educação midiática, com sede em Manaus. Já publicou na Folha, Uol TAB e foi treinee do Estadão. Em Manaus, tem passagem pelo Grupo Rede Amazônica e pelo site Amazonas Atual. Suas coberturas são voltadas para os direitos humanos, educação, política e cultura.

Fonte: https://amazoniareal.com.br/juiza-de-roraima-autoriza-reintegracao-em-terra-indigena-para-ruralistas/

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