Brasília (DF) – Um dia após a comissão temporária do Senado aprovar relatório em que pedia a federalização das investigações dos assassinatos do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips, a  juíza da Comarca de Atalaia do Norte, Jacinta Silva dos Santos, enviou o processo para a esfera federal, em decisão desta quinta-feira (7). Nos dias 30 de junho e 1º de julho, uma comitiva de parlamentares da Câmara e do Senado esteve em Atalaia do Norte (AM), onde participou de audiências com lideranças indígenas do Vale do Javari. Os parlamentares também se reuniram com autoridades municipais, estaduais e federais, tais como representantes da Polícia Federal e do Ministério Público do Estado.

Bruno Pereira e Dom Phillips foram mortos na manhã do dia 5 de junho em uma área do rio Itacoaí, perto da comunidade ribeirinha Cachoeira, na divisa da Terra Indígena Vale do Javari, no Amazonas.

Três suspeitos estão presos provisoriamente: Amarildo da Costa Oliveira,  o “Pelado”, Oseney da Costa Oliveira, o “Dos Santos”, que são irmãos, e Jefferson da Silva Lima, o “Pelado da Dinha”. Há a suspeita, porém, que o homicídio teve o envolvimento de outras pessoas, incluindo um mandante envolvido com narcotráfico. Essa suspeita continua sendo investigada. A Polícia Civil e a Polícia Federal pediram a conversão da prisão temporária dos três para preventiva, que agora será analisada pela esfera federal.

No início desta semana, os policiais federais e militares finalizaram a reconstituição do crime, com a presença de Amarildo. O trabalho durou quase uma semana. A PF não divulgou o relatório oficial sobre a reconstituição até o momento.

Com a decisão da juíza estadual, o caso passará para a Vara Federal, que fica em Tabatinga e tem jurisdição em toda a região do Alto Solimões, incluindo Atalaia do Norte. Na decisão, ela concluiu que a motivação do crime tem relação com a proteção dos direitos indígenas e não com “problemas interpessoais”. Por esta razão, o caso é de competência da Justiça Federal. No despacho, a juíza cita um trecho das investigações policiais.

“Pelo apurado, o homicídio ocorreu devido a uma rixa antiga de pescadores ribeirinhos locais e Bruno Pereira,  em virtude das fiscalizações realizadas por ele na área da TI Vale do Javari enquanto exercia funções na Funai (Fundação Nacional do Índio) e mesmo depois, como colaborador da Univaja (União dos Povos Indígenas do Vale do Javari). Os relatos indicam que Bruno já tinha sido ameaçado em razão da atuação na defesa de comunidades indígenas localizadas naquela região. Desse modo, a motivação do delito parece não se restringir a problemas interpessoais, alcançando direitos indígenas previstos no art. 231 da Constituição Federal.”

Além dos relatórios das autoridades policiais, a magistrada também baseou sua decisão em manifestação do Ministério Público do Estado, que traz uma série de informações e fontes da imprensa, desde imagens de televisão mostrando ameaças a Bruno até ofícios da Univaja denunciando atividades ilegais na TI Vale do Javari, além de áudios e depoimentos. 

“No caso em exame, o conjunto probatório revela que o homicídio, tendo como vítima Bruno da Cunha de Araújo Pereira e, por consequência, o jornalista Dominic Mark Phillips, decorreu do cumprimento de ameaças sofridas por sua atuação na defesa do território dos povos indígenas do Vale do Javari, do combate à pesca ilegal dentro da reserva indígena e da defesa dos interesses do índios isolados na região.”

Para justificar a decisão de transferência do processo, a juíza citou outros julgamentos de “conflito negativo de competência”, segundo o enunciado 140 da  Súmula do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que “dispõe que compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar crime em que o indígena figure como autor ou vítima. Entretanto, nos casos em que o crime extrapola o interesse individual, ligando-se à disputa sobre direitos indígenas, a competência passa a ser da Justiça Federal”.

Jacinta Silva dos Santos afirma que a atribuição da tarefa de julgamento de juízes federais está determinada no artigo 109 (inciso XI) da Constituição, e se justifica quando a motivação do delito não se restringe ao interesse privado individual, alcançando direitos indígenas previstos no artigo 231 da Constituição.

“Assim sendo, forçoso concluir que a competência da Justiça Federal ocorre toda vez que a questão versar acerca de disputa sobre direitos indígenas, incluindo as matérias referentes à organização social dos índios, seus costumes, línguas, crenças e tradições, bem como os direitos sobre as terras que tradicionalmente ocupam, conforme dispõem os arts. 109, XI, e 231, ambos da Constituição da República, como é o caso dos auto”, diz a juíza.

Univaja diz que não havia rixa

Em nota divulgada na noite desta quinta, a Univaja concordou com decisão da Justiça Estadual, mas contestou a afirmação de que Bruno tinha rixa com um dos acusados, conforme relatório dos policiais e que foi reproduzido pela juíza. “Tecnicamente, Bruno nunca teve qualquer briga ou desentendimento com o acusado. Quando desempenhava sua função pública na Funai, o seu papel era exatamente combater a extração dos ilícitos ambientais no interior da terra indígena e em favor dos povos indígenas do Javari”, diz a organização representativa dos povos do Vale do Javari.

A Univaja considera que as mortes de Bruno e Dom têm origem em atividades ilegais “sob o comando de alguém” que financia o “negócio de compra-venda dos ilícitos ambientais”. Para a Univaja, os envolvidos nos homicídios “viram Bruno e Dom como pessoas que poderiam expor a sua ação criminal”.

No caso dos assassinatos, diz a Univaja, “sob o comando de pessoa até o momento oculta, que financiava tudo, esse grupo de pescadores realizava ações de extração de ilícitos ambientais e outros delitos na terra indígena”.

“Diante da presença de Bruno na região e, considerando o contexto mencionado, a organização criminosa por meio dos mesmos membros – ‘Pelado’ e demais acusados – se juntaram em uma tarefa determinada e cometeram o delito: assassinaram Bruno e Dom”, diz a Univaja.

Amazônia Real apurou que, desde o desaparecimento das duas vítimas, circulam nomes como “Churrasco”, Manoel Vitor Sabino da Costa, tio de “Pelado, “Caboclo”, “Nei” e “Colômbia”, todos apontados como tendo alguma ligação com o caso. Mas “Colômbia” seria o mandante, conforme denúncias, e estaria envolvido com ao tráfico de drogas. 

Comissões no Congresso

Comissão Temporária sobre a Criminalidade na Região Norte (CTENORTE) do Senado na sede da Univaja em Atalaia do Norte
(Foto: Carla Benevides/Tv Senado)

A Câmara e o Senado instalaram comissões temporárias para tratar dos assassinatos de Bruno Pereira e Dom Phillips e de outros crimes, como o assassinato do trabalhador da Funai Maxciel Pereira dos Santos, ocorrido na área urbana de Tabatinga, em 2019, e que até hoje não foi apurado. Os trabalhos legislativos estão sendo feitos separadamente, embora com algumas atividades conjuntas, como a diligência realizada em Atalaia do Norte e Tabatinga, nos dias 30 de junho e 1 de julho. 

A Câmara já protocolou diversos requerimentos a órgãos públicos sobre o andamento de providências sobre o caso, inclusive para instituições como a Agência Brasileira de Investigação (Abin). 

Bruno e Dom foram encurralados

Policiais federais com os restos mortais de Dom Phillips e Bruno Pereira (Foto: Avener Prado/Agência Pública)

Antes de desaparecem, Bruno Pereira e Dom Phillips estiveram na comunidade São Rafael, onde o indigenista teria uma reunião sobre manejo de pesca com o ribeirinho Manoel Vitor Sabino da Costa, o “Churrasco”, que não estava no local.

O indigenista foi recebido apenas pela esposa de Churrasco, Alzenira Gomes, que ofereceu um ‘nescau’ (bebida). À Amazônia Real, “Churrasco” disse que não havia marcado reunião com Bruno, informação negada pelo advogado da Univaja, Eliésio Marubo.

Os dois teriam sido encurralados em uma emboscada. Esta hipótese, publicada em primeira mão pela Amazônia Real, foi revelada por uma fonte que conhece as características da bacia do rio Javari e seus afluentes. Naquele dia, Bruno Pereira tinha intenção de levar para a PF provas de crimes praticados por pescadores ilegais, possivelmente financiados pelo narcotráfico, dentro da TI Vale do Javari, que vem sendo constantemente invadida.

Os restos mortais foram encontrados dez dias depois, em um local apontado por um dos suspeitos, Amarildo da Costa Olivera, o “Pelado”. O corpo de Bruno foi velado e cremado no dia 24 de junho, em Recife (PE), sua terra natal. Na despedida do indigenista, além dos familiares e amigos, os indígenas do povo Xucuru prestaram homenagem com cantos e rituais.

“Não poderíamos não estar presentes aqui no dia de hoje, representando todos aqueles que não puderam estar aqui para dizer que Bruno e Dom vivem em cada um de nós”, declarou o cacique Marcos Xucuru.

Os restos mortais do jornalista foram velados e cremados no Cemitério Parque da Colina, em Niterói, região metropolitana do Rio de Janeiro, no dia 26 de junho. Uma bandeira do Brasil cobriu o caixão, que recebeu um retrato do jornalista feito pela fotógrafa brasileira Angélica Dass.

Durante o velório do jornalista britânico, a viúva Alessandra Sampaio exigiu justiça e pediu que não se repita a dor dela e de outras famílias de defensores do meio ambiente. “Eles seguem em risco, seguem em risco”, ressaltou. (Colaborou Elaíze Farias)

Cristina Ávila fez comunicação na PUCRS e iniciou o jornalismo em pequenos diários de Porto Velho, em Rondônia, onde foi atraída por coberturas sobre meio ambiente, questões indígenas e movimentos sociais. Por mais de duas décadas trabalhou em redações de jornais, especialmente no Correio Braziliense. Em Brasília, entre 2009 e 2015 trabalhou no Ministério do Meio Ambiente, responsável por assuntos como mudanças climáticas e políticas públicas relacionadas a desmatamento. Nesse período teve oportunidade de prestar algumas consultorias ao PNUD. Atualmente atua na imprensa alternativa.

Fonte: https://amazoniareal.com.br/justica-do-amazonas-transfere-processo-das-mortes-de-bruno-e-dom-para-a-esfera-federal/

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