Belém (PA) – As audiências de instrução e julgamento dos três acusados pelos assassinatos do indigenista Bruno Pereira e do jornalista britânico Dominic Phillips foram definidas pela Justiça Federal para os dias 22, 23 e 24 de janeiro de 2023. Amarildo da Costa Oliveira (o “Pelado”) – assassino confesso das vítimas –, seu irmão, Oseney da Costa Oliveira (o “Dos Santos”), e Jefferson da Silva Lima (o “Pelado da Dinha”), foram acusados pelo Ministério Público Federal por duplo homicídio qualificado e ocultação de cadáver em um dos dois inquéritos abertos para investigar os detalhes dos crimes e a participação de cada um dos envolvidos. Os três estão presos preventivamente desde junho, na capital amazonense, Manaus. Bruno e Dom foram brutalmente assassinados em 5 de junho deste ano, em uma comunidade ribeirinha da região do rio Itacoaí, do município de Atalaia do Norte, na divisa com a Terra Indígena Vale do Javari, no Amazonas.

“Este Juízo confirma que foram designadas audiências para os dias 23, 24 e 25/01/2023 no bojo do Processo 1000481-09.2022.4.01.3201, no qual figuram como demandados Amarildo da costa de Oliveira, Oseney da Costa de Oliveira e Jefferson da Silva Lima, investigados pelo assassinato do indigenista brasileiro Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips”, confirmou em nota a Justiça Federal após ser questionada pela Amazônia Real

No segundo inquérito, de acordo com um levantamento feito pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), a PF apura, em paralelo, a atuação criminosa e armada de ribeirinhos das comunidades São Gabriel e São Rafael, localizadas às margens do rio Itacoaí. O grupo seria responsável por invasões e pesca predatória de pirarucus e tracajás na TI Vale do Javari – crimes que vinham sendo denunciados por Bruno Pereira há vários anos, desde quando ele ainda trabalhava na Fundação Nacional do Índio (Funai), órgão do qual estava licenciado para atuar como assessor da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja).

Nessa investigação, sete mandados de prisão preventiva foram cumpridos pela PF no dia 5 de agosto, sendo dois direcionados aos já detidos “Pelado” e “Colômbia”. De acordo com as investigações da PF, e segundo fontes ouvidas pela Amazônia Real em Atalaia do Norte, Ruben Dario Villar – um dos nomes do homem conhecido como “Colômbia” e apontado como narcotraficante – seria o principal financiador da pesca predatória praticada ilegalmente na TI.

Ele foi preso em flagrante por falsidade ideológica, no dia 8 de julho, em Tabatinga, Amazonas, fronteira com a cidade de Letícia, na Colômbia, após ter comparecido voluntariamente à sede da PF no município e apresentado documentos falsos e divergentes aos policiais.

Depois de três meses preso, Ruben foi solto por determinação do juiz Fabiano Verli, da Vara Federal de Tabatinga, no dia 22 de outubro, após pagar fiança de 15 mil reais. O juiz determinou que ele usasse tornozeleira eletrônica e não se ausentasse da cidade de Manaus para liberar sua soltura. Por enquanto, a PF não confirma o envolvimento dele com o duplo homicídio.

“Foi concedida a soltura com condições especiais, mediante fiança em ambos os processos que tramitam neste juízo cujas fianças já foram devidamente recolhidas em vinculação aos referidos processos, estando ele em prisão domiciliar, por monitoramento eletrônico, mediante uso de tornozeleira”, afirma a Justiça Federal no Amazonas em nota. 

Segundo noticiou o G1 na última sexta (11), o juiz Fabiano Verli decidiu pela transferência de Amarildo dos Santos, “Pelado”, para um presídio federal de segurança máxima. Na reportagem, o juiz diz ter “receio de queima de arquivo” e negou pedido da defesa para que os presos permanecessem detidos em uma unidade prisional na capital do Amazonas, Manaus. A defesa dos acusados alertou o juízo sobre possíveis condutas da Polícia Federal que possam representar cerceamento de direitos ou excessos. 

“Para se evitarem situações de dúvida quanto à correção da atuação da PF, determinei a ida, pelo menos de Amarildo, para um presídio federal”, disse Verli ao G1. Na decisão, o juiz ressaltou ainda a observância do direito dos acusados de serem assistidos pelos seus advogados sempre que o solicitarem. 

Rede criminosa

  • Dom Phillips e Bruno PereiraAmarildo Oliveira, o Pelado confessou o assassinato de Dom Phillips e Bruno Pereira (Foto: Avener Prado/Agência Pública)
  • Amarildo da Costa de Oliveira, 41 anos, e conhecido como “Pelado” (Foto: Reprodução TV Globo)
  • Jefferson, o Pelado da Dinha (Foto: José Medeiros/Agência Pública)
  • Jefferson, o Pelado da Dinha (Foto: José Medeiros/Agência Pública)
  • Oseney da Costa de Oliveira, o Dos Santos, um dos acusados pelas mortes de Dom Phillips e Bruno Pereira (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

Os mandados de prisão expedidos pela PF em 5 de agosto acabaram levando mais quatro familiares de “Pelado” para a cadeia, acusados de colaborarem com os assassinatos e por fazerem parte da rede criminosa que atuava na TI Vale do Javari: Otávio Costa de Oliveira e Eliclei Costa de Oliveira (o “Sirinha”), ambos irmãos de “Pelado. Também foi preso Amarílio Oliveira, filho de “Pelado” , detido durante uma festa, na cidade de Tabatinga.

Entre os presos também está Jânio Freitas de Souza, pescador e residente na comunidade São Rafael, entrevistado pela Amazônia Real, quando a reportagem esteve na comunidade para refazer os últimos passos de Bruno e Dom, que haviam desaparecido na altura da comunidade ribeirinha Cachoeira, nos limites da TI Vale do Javari. 

Jânio, segundo investigação da Abraji, era um dos principais fornecedores de pescados ilegais para os comércios de Atalaia do Norte, além de ser funcionário da prefeitura do município, lotado como auxiliar de serviços gerais na Secretaria de Interior, com o salário de 1.202 reais. Outro funcionário contratado pela prefeitura é Otávio Costa de Oliveira, irmão de “Pelado”, que exercia a função de microscopista na Secretaria de Saúde de Atalaia do Norte.

Na comunidade, Jânio se apresentou à reportagem como presidente da Associação dos Produtores Rurais da Comunidade São Rafael e disse ter sido a última pessoa a falar com Bruno Pereira no dia dos assassinatos. Isso aconteceu quando Bruno e Dom desembarcaram no porto da escola de ensino fundamental da comunidade São Rafael, em busca de Manoel Vitor Sabino da Costa, mais conhecido como “Churrasco”, e autodeclarado tio de “Pelado”.

Segundo descreveu a Amazônia Real, Bruno foi-se encontrar com “Churrasco”, líder comunitário, para combinar uma reunião em que o indigenista pretendia apresentar sugestões para a subsistência dos comunitários por meio do manejo do pirarucu. “Churrasco” negou saber da reunião e afirmou não ter nenhuma relação com o desaparecimento de ambos àquela altura. 

De acordo com Eliesio Marubo, advogado indígena da Univaja, Manoel sabia da reunião, bem como sabia que Bruno iria encontrá-lo naquele dia. Conscientemente ou não, foi ele a pessoa a cravar pela primeira vez o que poderia ter acontecido com a dupla: “Pra estar esse tempo todo sumido desse jeito, ou está morto ou está amarrado por aí por dentro do mato”, disse “Churrasco” em entrevista à Amazônia Real, em junho. “Churrasco” chegou a ser preso preventivamente dias depois do duplo assassinato, mas foi liberado em seguida.

No dia 28 de setembro, a Univaja informou ter encontrado um aparelho celular satelital e uma carteira com documentos pertencentes a Dom Phillips, bem como documentos de Bruno Pereira. Não há informações sobre a perícia realizada no dispositivo que, segundo a organização indígena, foi encaminhado para a PF. O celular encontrado pode conter informações fundamentais sobre os momentos que antecederam aos assassinatos, assim como também devem ser encontradas imagens feitas por Dom de pescadores ilegais e dos seus algozes.

Proteção aos Indígenas

Buscas por Dom e Bruno próximo à Basa da EVU (Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real)

Por conta do clima de risco iminente em que se encontram indígenas e servidores da Univaja, a instituição entrou, em 27 de julho, com um pedido de ampliação da medida cautelar 449/22, protocolada pela Comissão Interamericana de Direitos Humano (CIDH) junto ao Estado brasileiro, pedindo para que constassem os nomes dessas pessoas no pedido de providências aos órgãos governamentais. A Univaja pede que a CIDH intermedeie os pedidos de proteção dessas pessoas, considerando o nível de exposição em que elas se encontram por atuarem diretamente nas denúncias e investigações sobre os assassinatos de Bruno Pereira e Dom Phillips.

A representação da Univaja informou que “a Terra Indígena (TI) Vale do Javari, é especificamente palco de inúmeras violações de direitos humanos. Contando com 8,5 milhões de hectares demarcados, o que faz dela a segunda maior terra indígena do país, a TI Vale do Javari é rica em recursos almejados por garimpeiros, pescadores e madeireiros, o que cria um cenário de extrema violência contra os indígenas locais, bem como contra aqueles que atuam na proteção dos povos e recursos da região”, diz o documento.

O documento cita ainda a falta de ações do governo brasileiro em garantir a proteção dos indígenas e outros agentes que lutam pela manutenção dos modos de vida indígenas na região, mencionando o crime que vitimou o servidor da Funai, Maxciel Pereira dos Santos, assassinado com um tiro na cabeça, em 2018. O crime aconteceu após uma operação que destruiu balsas garimpeiras que dragavam o fundo do rio Itacoaí, nos limites da TI Vale do Javari. A operação em questão, ressalta ainda o documento, foi comandada pelo indigenista Bruno Pereira, motivo que o levou a ser afastado do cargo de coordenação que ele exercia no órgão.

Os nomes que constam no pedido de proteção da CIDH, publicados em 27 de outubro, são de pessoas que atuavam diretamente com Bruno Pereira na Univaja e na Equipe de Vigilância da Univaja (EVU). São elas: Beto Marubo, liderança indígena da Univaja; Orlando Possuelo, indigenista e colaborador da EVU; Cristovão Pissango Negreiro, indígena conhecido como “Tataco”, integrante da EVU; Higson Dias Castelo Branco, indígena do povo Kanamary, membro da EVU, e pessoa que presenciou as ameaças de “Pelado” a Bruno e Dom, um dia antes dos assassinatos; Valdir Estevão Marubo, indígena Marubo e integrante da EVU; Paulo Dollis, indígena e coordenador da Univaja; Eliesio da Silva Vargas Marubo, advogado indígena e assessor jurídico da Univaja; Juliana Oliveira, antropóloga e assessora da Univaja; Natália France Carvalho, advogada e colaboradora da Univaja; Manoel Barbosa da Silva, indígena e colaborador da Univaja.  

“[…] A Comissão observa que a situação das 11 pessoas da Univaja identificadas se relaciona com o trabalho adotado inicialmente pela organização para denunciar o desaparecimento dos dois beneficiários e impulsionar e participar dos trabalhos de busca. Após a confirmação da morte dos atuais beneficiários, a representação alegou que as pessoas propostas beneficiárias continuariam demandando justiça pelos assassinatos”, reitera a CIDH sobre a inclusão dos nomes propostos pela Univaja na medida cautelar.

Ainda não há respostas do governo brasileiro se irá atender as demandas urgentes apontadas pela CIDH, mas ainda há prazo para a manifestação dos órgãos de proteção social e direitos humanos. Em entrevista à reportagem em agosto, indígenas pediam por proteção do Estado por temerem ser assassinados pela rede criminosa que atua na região, vinculada com o narcotráfico, com lavagem de dinheiro, pesca ilegal e outros delitos.

Silêncio dos órgãos de justiça

Rubem Villar, o Colômbia quando chegou preso na sede da PF em Manaus (reprodução TV)

Amazônia Real acompanha os desdobramentos do caso desde o desaparecimento de Bruno Pereira e Dom Phillips, mas poucas informações chegam aos órgãos de imprensa sobre o andamento das investigações e mesmo sobre quantas pessoas envolvidas com os crimes no Vale do Javari estão presas, e onde.

Uma fonte indígena ouvida nesta reportagem, que terá sua identidade preservada por ser classificada como uma das pessoas ameaçadas de morte na região, diz ter se assustado quando soube da soltura de “Colômbia”. “Eu não sabia mesmo, pensei que ele [“Colômbia”] ainda estivesse preso. Com isso, agora, a nossa situação fica ainda pior. Mesmo preso, ele continuava mandando em tudo por aqui”, afirma a fonte. Ela é uma das pessoas a indicar a relação direta de Ruben Villar como “patrão” de “Pelado” e, por conseguinte, como mandante dos assassinatos.

Questionada, a PF disse não poder dar informações sobre as investigações por elas estarem sob sigilo. “As informações sobre operações presentes e futuras da Polícia Federal são totalmente sigilosas. Quando há a deflagração e, no caso, se for pertinente à sociedade, os jornalistas, cadastrados no mailing deste setor, são cientificados imediatamente através de nota à imprensa”, disse o órgão em nota.

O MPF também foi procurado para informar sobre o andamento das investigações, sobre quantas pessoas foram presas até o momento e quantas já foram denunciadas. Mas, até o momento, não houve resposta. A Justiça Federal no Amazonas informou não ser possível dar maiores detalhes sobre as investigações, limitando-se apenas a confirmar as datas dos julgamentos. “Por existirem investigações em curso não é possível no momento precisar ou responder alguns dos quesitos apresentados pela imprensa”.

Cícero Pedrosa Neto é repórter multimídia e colaborador da agência Amazônia Real desde 2018, atuando em temas relacionados ao meio-ambiente, impactos sociambientais da mineração, populações quilombolas, populações indígenas e conflitos agrários. Em 2019 foi um dos jornalistas premiados com o 41º Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humano na categoria multimídia com a série “Sem Direitos: o rosto da exclusão social no Brasil”, um trabalho colaborativo entre mídias digitais independentes: #Colabora, Ponte Jornalismo e Amazônia Real. Foi bolsista do Rainforest Journalism Fund | Pulitzer Center em 2020. É fotógrafo, documentarista, roteirista, podcaster e mestre em sociologia e antropologia pela Universidade Federal do Pará. (pedrosaneto@amazoniareal.com.br)

Fonte: https://amazoniareal.com.br/julgamento-caso-bruno-e-dom/

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