Cuiabá (MT) – Nos últimos anos, o povo Kanela, da região do Araguaia, no nordeste de Mato Grosso, sofre uma série de ataques de fazendeiros que disputam, com a comunidade, terras na região, que é banhada pelo rio Tapirapé, braço do rio Araguaia. Os ataques mais recentes contra os Kanela do Araguaia, como também são conhecidos, ocorreram na última semana de outubro.

No último dia 27, o vice-cacique da Aldeia Porto Velho, Vandermiro Pereira Rocha, teve o seu celular tomado à força por homens que fazem a segurança da Fazenda Paulista, que faz divisa com o território indígena. O local é reconhecido como território original por perícia antropológia encomendada pelo Ministério Público Federal. O estudo faz parte do processo de demarcação do território, que está parado desde 2008 na Fundação Nacional do Índio (Funai).

“Tomaram meu celular. Me ameaçaram de morte. Fui empurrado e levei chutes”, contou Vandermiro à reportagem. As agressões ocorreram porque ele foi filmar a ação de trabalhadores da fazenda que estavam “tratorando” na área indígena. “Nós escutamos uns barulhos de máquina, perto da Lagoa Suja, e fomos lá ver o que era. Era uma pá mecânica mexendo na nossa terra”, relatou. 

O indígena disse que foi falar com o rapaz que pilotava a máquina quando foi abordado pelos seguranças da fazenda. Em tom muito ríspido, os seguranças disseram ao vice-cacique da Aldeia de Porto Velho, que o serviço de tratoragem iria continuar, e que eles também derrubariam a cerca levantada pela comunidade, para delimitar o território. “Aí eu disse que o que eles estavam fazendo não era segurança e sim pistolagem, e eu mostrei também a liminar da justiça que nos concede a posse da terra, até que toda situação seja julgada”. 

Como os homens fizeram pouco caso do documento, Vandermiro decidiu filmar a situação, revoltando os seguranças. “Se você fizer essa filmagem,  vamos meter bala em você”, ameaçaram eles. Os seguranças da fazenda tomaram o equipamento do líder indígena e o agrediram com o empurrões e pontapés. 

“Eu acho que só não morri, porque havia mais testemunhas no local. Estava acompanhado de mais quatro parentes da comunidade”, disse Vandermiro.

O aparelho de celular foi recuperado dias depois pela Polícia Militar que atendeu ao chamados dos indígenas após eles registrarem um boletim de ocorrência sobre o caso. No entanto, o vídeo que revelaria a prática de turbação foi apagado pelos agressores. Turbação, em termos jurídicos, significa a  construção e derrubada de cercas, além de ameaças verbais e físicas praticadas contra os indígenas.

Cacique diz que discurso de Bolsonaro incentiva

Invasões ao território do povo Kanela, na aldeia Porto Velho, Mato Grosso (Reprodução/Arquivo do povo Kanela)

O episódio ocorrido mês passado faz parte da rotina na comunidade Kanela desde que os conflitos agrários com os fazendeiros se acentuaram; piorou no início do mês passado. O cacique da Aldeia Porto Velho, Lucas Pereira Rocha, acredita que os ataques são incentivados pelo discurso do presidente Jair Bolsonaro (PL), que no último dia 30 de outubro foi derrotado nas urnas por Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que assume o país, no dia 1º de janeiro. 

“O que esses fazendeiros estão fazendo, essa prática de turbação, são ações criminosas, incentivadas pelo presidente da república. O Bolsonaro passou essa ideia de que pode atirar nas pessoas e matar. Esse presidente é um genocida. As ações dele são de um criminoso”, enfatizou o cacique.

Ao longo das décadas, os Kanela já entraram em conflitos com diferentes famílias de fazendeiros, que alegam ter escrituras legais do território em disputa. O conflito mais recente , segundo Lucas, é com o fazendeiro Fabrício Gomes do Nascimento que, por outro lado, alega que já vendeu a terra para outra pessoa, e que não teria mais nada a ver com a questão.

Mas o cacique relata que no último dia 6 de outubro, Nascimento teria entrado com 15 seguranças armados no pátio da aldeia Porto Velho, com objetivo de expulsar a comunidade, que atualmente conta com 13 famílias. 

“Disse que tinha as escrituras da terra junto ao cartório de São Félix do Araguaia, e que era para gente sair de lá. Expliquei que a área estava em disputa, com liminar favorável ao povo Kanela, com a justiça federal reconhecendo o nosso direito à posse da terra. Ele ignorou essas informações e disse que, de um jeito ou de outro, ia tocar fogo em todas as casas”, recorda o cacique, que fez um boletim de ocorrência sobre o ocorrido.

A partir da investida do fazendeiro, o cacique tem feito uma peregrinação junto aos órgãos de fiscalização e proteção dos indígenas, incluindo a Fundação Nacional do Índio (Funai). Ele já registrou pelo menos três boletins de ocorrência junto a Polícia Militar e tem cobrado que delegados da Polícia Civil da região investiguem a turbação e as ameaças de morte sofridas pelas lideranças do povo Kanela.

Também no último dia 19 de outubro, o cacique decidiu acionar o Tribunal de Justiça de Mato Grosso, o Tribunal Regional Federal, a Defensoria Pública da União (DPU); além de promotores e procuradores e a Defensoria Pública de São Félix do Araguaia. No documento, protocolado via Ministério Público, o cacique relata todo estado de violência vivido pela comunidade nos últimos anos, e cobra providências das autoridades em questão. 

“(…) pedimos para vossas senhorias promotores e procuradores federal de justiça e defensorias públicas estadual e federal da união (DPU), que prestem a assistência jurídica a comunidade aldeia Porto Velho, para garantir diante do juiz este autêntico direto a etnia e as posses dos mesmos no território tradicional. (…) e assim, por se tratar de posse indígena, possa pedir anulação das matrículas citadas nestes documentos junto ao Estado e a União, devido ferir os princípios da Constituição Federal de 05 de outubro de 1998”, destaca o cacique em trecho do documento. 

Em 2016, o juiz federal Francisco Vieira Neto concedeu uma liminar reiterando o direito de posse ao povo Kanela da aldeia Porto Velho. Ele destacou que a perícia antropológica, encomendada pelo Ministério Público Federal (MPF), aponta a ocupação dos indígenas no território em questão, há, pelo menos, seis décadas. Outra questão que reforça o direito de posse é o fato da comunidade ter fundado, em 2013, a aldeia Porto Velho. Tal movimento, segundo o magistrado, demonstra que os indígenas já vem externando esse direito há muito tempo. 

“Neste sentido, os documentos elaborados a partir da demarcação daquela T.I., que atualmente tramita junto à Funai, mormente estudo denominado de ‘qualificação de reinvindicação’ (mídia de fl. 70), demonstram a ocupação da área pela citada comunidade, além da referida posse também haver sido atestada por diversos relatórios acostados aos autos (Relatório de fls. 76/85 elaborado pela FUNAI e perícia antropológica de fls. 92/117”, destacou Vieira, em sua decisão. 

Histórico de ocupação e perseguições

Marcas de bala em árvore na aldeia Porto Velho, Mato Grosso (Reprodução/Arquivo do povo Kanela)

Na perícia antropológica feita a pedido da 6ª Câmara  de Coordenação e Revisão Índios e Minorias da Procuradoria Geral da República é detalhado que os atuais Kanela do Araguaia fazem parte de um grupo indígena (Kanela-Apanyekra) que morava em terras situadas no município de Barra do Corda, no Maranhão. Mas, na metade do século 20, essas famílias tiveram que fugir da região por causa dos assassinatos e perseguições sofridas pelos membros da comunidade, por parte de fazendeiros maranhenses. Dessa forma, os relatos históricos apontam que os Kanelas residem em Luciara (MT), onde hoje encontra-se a aldeia Porto Velho, desde a década de 1950.

Além de Luciara, outros membros da comunidade também, no mesmo período, depois da fuga, ocuparam territórios que hoje estão nos municípios de Santa Terezinha, São Félix do Araguaia e Canabrava do Norte, todos na região nordeste de Mato Grosso. Esses grupos formaram quatro troncos familiares, que, além da aldeia Porto Velho, moram nas aldeias Nova Pukanu e Tapiraka. Essas aldeias também aguardam a demarcação da Funai. Atualmente cerca de 1000 mil indígenas Kanela do Araguaia vivem nessa região, de acordo com o cacique Lucas. 

“Embora a área da Aldeia Porto Velho, debatida nesta ação possessória, não se trate ainda de área declarada indígena pelo Estado brasileiro, a tradicionalidade da ocupação exercida pelo povo Kanela do Araguaia encontra-se evidenciada em diversos documentos oficiais, nos três níveis da federação (…) elementos de prova atestam a ocupação de dezenas de famílias da etnia Kanela sobre a área originalmente identificada como Fazenda Bom Jesus”, argumentou à época, a despeito da liminar de 2016, o procurador da República Wilson Rocha Fernandes Assis.

Ocupação originária

Em vermelho, o círculo representando a localização aproximada da Aldeia Porto Velho (Mapa: Reprodução/Arquivo do povo Kanela)

A perícia antropológica, feita a pedido do MPF, está no contexto do Memorando 209, de qualificação de demanda fundiária, feita pela Coordenação Técnica Local (CTL) da Funai, no município de Confresa-MT. Trata-se de um dos primeiros procedimentos que é realizado pelo órgão indigenista, com objetivo de demarcar um território como sendo pertencente a um povo originário. Para fazer o estudo, antropólogos da Funai foram a campo, em 2013, e identificaram vestígios de um antigo cemitério no território que é reivindicado pela comunidade Kanela da Aldeia Porto Velho. 

“(…) neste local em que podemos observar a vegetação, situa-se um cemitério, cujo indício é o pedaço de cruz que ao longo do tempo, foi incorporado ao tronco de uma das árvores do local. Ainda, segundo Candido, a “Fazenda Tapirapé 2 ” removeu com trator as pedras das sepulturas – cabendo a um estudo mais dedicado, a exumação do terreno que, seguramente, irá revelar os vestígios de pessoas ali enterradas”, destaca trecho do Memorando 209. 

A pessoa citada no documento trata-se de Candido Ferreira Rocha. Ele tem parentesco com os Kanela, sendo proprietário da Fazenda Bom Jesus, onde a Aldeia Porto Velho foi fundada em 2013. Tal fundação, segundo o memorando, só foi possível porque a família de Candido “tem um histórico bem peculiar de pioneirismo e resistência contra o latifúndio na região da bacia do Araguaia”. 

Amazônia Real tem reportado a violência sofrida pelos Kanela, não só na Aldeia Porto Velho, como nas outras comunidades também. Reportagem publicada em fevereiro deste ano relata o assassinato do líder da etnia Elizeu Santos Cardoso, que foi encontrado morto com marcas de faca na cidade de Confresa, também no nordeste de Mato Grosso. Cardoso, por sua vez, morava na aldeia Nova Pukanu.

O que diz o fazendeiro? 

Aldeia Porto Velho (Foto: Reprodução/Arquivo do povo Kanela)

Questionado pela Amazônia Real sobre os ataques à comunidade, Fabrício Gomes do Nascimento afirmou que não tem conhecimento do conflito.Sem especificar uma data, ele alegou à reportagem que vendeu a Fazenda Paulista para outra pessoa. 

Nascimento negou que esteve na aldeia Porto Velho com seguranças armados e que tenha ameaçado as famílias. Disse que só teve conhecimento do caso por terceiros, e que lhe repassaram outra versão.

“Acho que tem alguma informação desencontrada. Como sempre, o que fiquei sabendo é que colocaram uma segurança armada lá, porque estavam [indígenas] tentando invadir. A polícia foi lá e o pessoal que está lá, são todos legalizados”, disse em conversas via aplicativo Whatsapp. 

Indagado sobre quem seria o proprietário, Fabrício não respondeu. A reportagem também perguntou sobre o boletim de ocorrência da PM, feito no último dia 21 de outubro, em que os seguranças da fazenda afirmam que ele seria o proprietário do imóvel. No entanto, Fabrício Nascimento reiterou que já não tinha mais nada a ver com o conflito. “Como te disse, vendi [a fazenda] há algum tempo. Vai na fazenda e o pessoal tá lá. Você vai ficar sabendo dos fatos. Obrigado”, disse. 

A reportagem então pediu para Fabrício passar o contato de alguém da fazenda que pudesse relatar esses fatos. No entanto, ele não respondeu mais aos questionamentos. 

Defensoria Pública da União

Povo Kanela do Araguaia sofre há anos com invasões, ameaças e ataques de fazendeiros na região (Foto: Reprodução/Arquivo povo Kanela)

No último dia 26 de outubro, o defensor público da União, na área dos Direitos Humanos, Renan Oliveira, encaminhou ofício ao promotor de São Félix do Araguaia, Alysson Godoy, relatando episódios de violência na região. 

“Salienta-se que, a situação tem instaurado medo nos indígenas da comunidade, que temem por sua integridade em caso das constantes ameaças se concretizarem, bem como pelos atos hostis como as marcas de tiros nas árvores e as ameaças expressas à propriedade e à integridade psicofísica de seus integrantes”, destacou Oliveira, em trecho do ofício. 

Ele solicita que a promotoria atue de maneira mais ativa na região, como forma de coibir as agressões sofridas pelos Kanela. “A Defensoria Pública da União solicita informações acerca da possibilidade de um atendimento especial a ser promovido pelo MPE/MT no recebimento das denúncias supracitadas, em razão da particularidade do presente caso e da vulnerabilidade vivenciada pelos povos indígenas, sobretudo dos povos Kanela, bem como envia-lhe a fotos e vídeos anexos para que Vossa Excelência tome ciência e verifique as medidas pertinentes ao caso em concreto”. 

O que diz a Polícia Militar

Elizeu Santos Cardoso, indígena do povo Kanela, assassinado em fevereiro de 2022 (Foto: Reprodução/@kanela_araguaia)

À Amazônia Real, o comandante do Núcleo de Polícia Militar de Luciara, 3° Sargento Maxswel Freire de Oliveira, disse que está em contato direto com o cacique Lucas, e que tem reforçado patrulhas rurais na região do conflito, com objetivo de efetuar flagrantes das agressões denunciadas pelos indígenas. 

No entanto, ele lembrou que a atuação da PM é limitada por se tratar de um conflito envolvendo terras da União mas que, apesar disso, oferece apoio aos indígenas devido a Polícia Federal estar a mais de 700 quilômetros distante  do local dos acontecimentos. “Sempre estamos em contato com a Polícia Federal, informando o que está acontecendo, e encaminhando todos os boletins de ocorrência”, afirmou o comandante da PM.

A reportagem também entrou em contato com o Ministério Público Federal (MPF) e a Fundação Nacional do Índio (Funai), para saber quais providências os órgãos estão tomando diante da situação. No entanto, nem a Funai, nem o MPF responderam aos questionamentos enviados por email até a publicação desta matéria.

É jornalista cuiabano e remanescente da Comunidade Quilombola de Mato Cavalo (Nossa Senhora do Livramento – MT). Atua nas áreas de política, jurídico, cidades, esportes, cultura e reportagem. Já foi diretor de Cultura do Sindicato dos Jornalistas de Mato Grosso (Sindjor) – gestão 2013 a 2015 – e, em 2014, integrou o Comitê Popular Regional da Copa do Mundo, que discutiu os impactos das desapropriações nas comunidades periféricas de Cuiabá (MT). Atualmente é mestrando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Poder da Universidade Federal de Mato Grosso (PPGCOM-UFMT), no qual investiga o fenômeno do Jornalismo Declaratório na imprensa cuiabana.

Fonte: https://amazoniareal.com.br/lideranca-do-povo-kanela-do-araguaia-sofre-ataques-de-segurancas-de-fazenda/

Thank you for your upload