O Presidente Lula já tomou um número grande de medidas promissoras para o futuro da Amazônia. No entanto, ainda há alguns assuntos chaves preocupantes. Uma grande dúvida é se Lula vai levar adiante o projeto de “reconstrução” da rodovia BR-319 (Manaus-Porto Velho). Ele afirmou em entrevista em junho de 2022 que a rodovia é importante para as economias do Amazonas e Rondônia e que deve ser construída se os governos federal, estaduais e municipais tiverem um compromisso com a “preservação” [1]. Infelizmente, mesmo que tal compromisso pudesse realmente impedir o impacto, os governos eleitos mudam a cada poucos anos, e não há garantia da presença ininterrupta da coragem política e dos recursos financeiros astronômicos que seriam necessários.

A rodovia BR-319 foi construída em 1972-1973, inaugurada em 1976 e abandonada em 1988; foi tornado minimamente transitável por um chamado programa de “manutenção” desde 2015. A BR-319 e suas estradas secundárias planejadas abririam o maior bloco remanescente de floresta amazônica para a entrada de desmatadores a partir do notório “arco do desmatamento” ao longo do bordas sul e leste da região [2]. O projeto é apoiado por todos os políticos de Manaus, inclusive os que apoiam Lula, desde que, é claro, o projeto seja custeado pelo governo federal com recursos dos contribuintes de todo o Brasil.

O projeto é incomum por não ter uma justificativa econômica, sendo o único grande projeto de infraestrutura no Brasil que não possui um estudo de viabilidade econômica (EVTEA). Transportar produtos para os mercados de São Paulo a partir das fábricas da Zona Franca de Manaus (SUFRAMA) é muito mais barato pelo atual sistema de transporte por barcaça e rodoviário do que seria pela BR-319, e seria ainda mais barato se transportado em contêineres em navios oceânicos [3]. A licença prévia para o projeto de reconstrução foi aprovada em julho de 2022, apesar da consulta necessária aos povos indígenas impactados não ter sido realizada (ver: [4-6]).

Argumentos alternativos para a BR-319 também são falaciosos. Se o objetivo fosse melhorar o acesso a escolas e postos de saúde para a população do interior do estado do Amazonas, os recursos seriam gastos na construção e operação dessas unidades em todo o interior do estado e não na reconstrução de uma estrada cara para os poucos sortudos que se estabeleceram ao longo da rota da rodovia. A estrada não é prioritária para a “segurança nacional” porque fica distante das fronteiras do Brasil, conforme afirmado em 2012 pelo comandante do Exército Brasileiro para a Amazônia (ver [7]), e não é mencionada em nenhuma parte do Estratégia Nacional de Defesa de 2008 dos militares (por exemplo, [8]) construir uma estrada até sua porta. Por fim, o argumento de que o resto do Brasil deveria pagar pela estrada porque tem uma “dívida histórica” com a Amazônia por ter explorado a região durante séculos em benefício dos ricos estados do sudeste do país dificilmente será convincente em São Paulo, especialmente se a população de lá percebesse que 70% da água que sustenta a cidade de São Paulo vem pelos ventos conhecidos como “rios voadores” justamente a área de floresta ameaçada pela BR-319 e suas vicinais [9-11].

A retórica em torno da rodovia BR-319 invariavelmente afirma que o desmatamento na área será evitado pela governança. O primeiro dos dois EIAs (Estudo de Impacto Ambiental) chegou a apresentar o Parque Nacional de Yellowstone como o exemplo de governança que se espera que prevaleça, mostrando um mapa desse parque norte-americano com as estradas pelas quais milhões de turistas dirigem sem cortar uma única árvore ([12]; ver [13]). Em 2010, Dilma Rousseff, então chefe da Casa Civil presidencial de Lula, anunciou que a BR-319 seria uma “estrada parque) onde os turistas passeariam de carro para admirar a mata [14].

Políticos de Manaus afirmam que a rodovia será “um exemplo de sustentabilidade para o mundo” [15]. Infelizmente, esse cenário é pura ficção, e a rota da rodovia hoje é basicamente uma área sem lei, onde a extração ilegal de madeira e a grilagem de terras estão à vista [16, 17]. A rápida multiplicação de estradas ilegais endógenas (“ramais) está dando acesso à invasão de áreas protegidas e terras públicas não destinadas [18-20]. Quanto ao argumento frequentemente ouvido de que a pavimentação da estrada resultará em melhor acesso para os fiscais e, portanto, menos violações das leis ambientais, isso é desmentido pela história até agora: com a melhoria gradual da estrada por “manutenção” desde 2015, as violações ambientais têm constantemente aumentado, ao invés de diminuir.


A imagem que abre este artigo mostra trecho da BR-319 (Foto cedida por Carolle Alarcon à Amazônia Real)


Notas

[1] Rádio Difusora Manaus. 2022. Lula fala para o Amazonas na Rádio DifusoraYoutube, 23 de junho de 2022.

[2] Fearnside, P.M. 2022. Por que a rodovia BR-319 é tão prejudicial. Amazônia Real,

[3] Teixeira. K.M. 2007. Investigação de Opções de Transporte de Carga Geral em Contêineres nas Conexões com a Região Amazônica. Tese de doutorado, Universidade de São Paulo, São Carlos, SP.

[4] Ferrante, L., M. Gomes & P.M. Fearnside. 2020. BR-319 ameaça povos indígenas. Série Amazônia Real.

[5] Ferrante, L., M.B.T. de Andrade, L. Leite, C.A. Silva Junior, M. Lima, M.G. Coelho Junior, E.C. da Silva Neto, D. Campolina, K. Carolino, L.M. Diele-Viegas, E.J.A.L. Pereira & P.M. Fearnside. 2021. BR-319: O caminho para o colapso da Amazônia e a violação dos direitos indígenas. Amazônia Real.

[6] Gabriel, J. 2022. Indígenas dizem que não foram ouvidos sobre obras da BR-319, que corta Amazônia. Folha de São Paulo, 16 de agosto de 2022.

[7] Fearnside, P.M. 2012a. Segurança nacional na Amazônia. p. 177 & 191. In: A.L. Val & G.M. dos Santos (eds.) GEEA: Grupo de Estudos Estratégicos Amazônicos. Tomo V, Editora do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), Manaus, AM. 191 p.

[8] Brasil, MD (Ministério da Defesa). 2008. Política Nacional de Defesa e Estratégia Nacional de DefesaMD, Brasília, DF. 41 p.

[9] Fearnside, P.M. 2015d. Rios voadores e a água de São Paulo. Amazônia Real.

[10] van der Ent, R.J., H.H.G. Savenije, B. Schaefli & S.C. Steele-Dunne. 2010. Origin and fate of atmospheric moisture over continentsWater Resources Research 46: art. W09525.

[11] Zemp, D.C., C.F. Schleussner, H.M.J. Barbosa, R.J. van der Ent, J.F. Donges, J. Heinke, G. Sampaio & A. Rammig. 2014. On the importance of cascading moisture recycling in South America. Atmospheric Chemistry and Physics 14: 13337–13359.

[12] UFAM (Universidade Federal do Amazonas). 2009. Estudo de Impacto Ambiental – EIA: Obras de reconstrucão/pavimentacão da rodovia BR‐319/AM, no segmento entre os km 250,0 e km 655,7. UFAM, Manaus, AM. 6 Vols. + Anexos.

[13] Fearnside, P.M. & P.M.L.A. Graça. 2009. BR-319: A rodovia Manaus-Porto Velho e o impacto potencial de conectar o arco de desmatamento à Amazônia central. Novos Cadernos NAEA 12(1): 19-50.

[14] Paraguassu, M. 2010. BR-319 será uma estrada parque, diz ministra Dilma em HumaitáTudo Rondônia, 24 de março de 2010.

[15] Amazonas em Tempo. 2020. BR-319 será exemplo sustentável para o mundo, dizem deputadosAmazonas em Tempo, 22 de setembro de 2020.

[16] Andrade, M.B.T., L. Ferrante & P.M. Fearnside. 2021. A rodovia BR-319, do Brasil, demonstra uma falta crucial de governança ambiental na Amazônia. Amazônia Real, 02 de março de 2021.

[17] Ferrante, L., M.B.T. Andrade & P.M. Fearnside. 2021. Grilagem na rodovia BR-319Amazônia Real,

[18] Fearnside, P.M., L. Ferrante, A.M. Yanai & M.A. Isaac Júnior. 2020. Trans-Purus, a última floresta intacta. Amazônia Real.

[19] Fearnside, P.M., L. Ferrante & M.B.T. de Andrade. 2020. Ramal ilegal a partir da rodovia BR-319 invade Reserva Extrativista e ameaça Terra Indígena. Amazônia Real, 09 de março de 2020.

[20] Garrido, B. 2022. Recorde de desmatamento na Amazônia está ligado à grilagem de terras públicas. Instituto de Pesquisas Ambientais da Amazônia (IPAM), 06 de maio de 2022.

É doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan (EUA) e pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus (AM), onde vive desde 1978. É membro da Academia Brasileira de Ciências. Recebeu o Prêmio Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), em 2007. Tem mais de 600 publicações científicas e mais de 500 textos de divulgação de sua autoria que podem ser acessados aqui. https://philip.inpa.gov.br

Fonte: https://amazoniareal.com.br/lula-e-a-rodovia-br-319/

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