Por Cristina Ávila e Leanderson Lima

Brasília (DF) e Manaus (AM) – “Viemos pra fazer história e estamos fazendo. Nosso povo resiste e está vivo”, afirmou Jean Crendo, do povo Xokleng, da Terra Indígena Ibirama-La Klãnõ (SC), durante a explosão de alegria que tomou conta dos povos indígenas logo após o procurador-geral da República, Augusto Aras, dar seu parecer contrário à tese do marco temporal e a favor da demarcação do território cujo processo de repercussão geral influenciará em todos os processos demarcatórios do país. Depois do posicionamento de Aras, o Supremo Tribunal Federal (STF) anunciou que o julgamento do “marco temporal” será retomado na próxima quarta-feira (8), abrindo com a exposição do relator do processo, ministro Edson Fachin. O julgamento se arrasta desde a última semana de agosto.

O parecer de Augusto Aras foi uma surpresa, mas seu posicionamento continua uma incógnita. O procurador-geral, reconduzido ao cargo, tem se posicionado favorável em questões de interesse de Jair Bolsonaro. O marco temporal, tese defendida pelos ruralistas, é apoiada pelo presidente. Só depois que Aras iniciou sua fala, os indígenas começaram a perceber que ele poderia dar um parecer contrário ao marco temporal. Os indígenas começaram com aplausos tímidos, mas o barulho começou a crescer enquanto o procurador-geral prosseguia.

“A Assembleia Constituinte registrou a importância do reconhecimento de que os índios foram os primeiros ocupantes do Brasil. O Brasil não foi descoberto. Não tem 521 anos. Não se pode inviabilizar os nossos ancestrais, que nos legaram esse país”, afirmou Aras. Não demorou para os chocalhos começassem a vibrar. Ao término de ler seu parecer, as emoções explodiram. Os Xokleng se juntaram em uma roda ritual que foi cercada e integrada por outros povos de todo o Brasil.

Augusto Aras endossou posicionamento do parecer da PGR, mas as entrelinhas na sua sustentação oral causaram desconfiança em especialistas do Direito pelo tom dúbio das argumentações.

Na parte sobre a proteção da posse permanente dos povos indígenas sobre suas terras, Aras afirmou: “por razões de segurança jurídica, a identificação e delimitação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios há de ser feita no caso concreto, com a regra do tempus regit actum, aplicando-se a cada fato a norma constitucional vigente ao seu tempo”.

“Ficou claro que ele não aplica o marco, porém impõe exigências para considerar possível o reconhecimento de território sem presença física em 1988. Talvez uma ideia mais larga que esbulho renitente, enfatizando ‘violências’, sem esclarecer outros aspectos antropológicos”, comentou o procurador da República Julio Araújo, em uma rede social.

“Ele afasta o marco temporal em discussão no STF, mas propõe, em seu lugar, vários outros, a depender do caso concreto, ou vinculado à demarcação em apreciação pelo poder público”, disse Roberto Liebgott, da assessoria jurídica do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) – Regional Sul, em nota pública divulgada nesta sexta-feira (03).

Segundo Liebgott, a manifestação de Aras compromete especialmente os povos do Nordeste, Sul, Sudeste e Mato Grosso do Sul, porque será preciso comprovar, cada caso, o esbulho e a expulsão, os massacres e isso pode descaracterizar o direito originário e a sua imprescritibilidade.

Após as sustentações no STF, os Xokleng fizeram “um ritual de motivação, para não desistir, que fala muito dos antepassados”. Jean Crendo explicou que eles cantaram uma canção que diz algo como “lá estão vindo os valentes, vieram em busca de sua terra e jamais vão parar”. Ele conta que a letra fala de um homem forte histórico da ancestralidade de seu povo, chamado Juvenbãg. “Quase fomos exterminados, mas estamos aqui, somos mais de 3 mil”. A história dos Xokleng foi de muitos massacres, provocados por “bugreiros” contratados para matá-los em expedições no interior de Santa Catarina, nos anos 30. Eram mortos a tiros e facão e suas orelhas levadas em troca de recompensas.

Na quinta-feira (2), depois de o presidente do STF, Luiz Fux, anunciar que o julgamento prosseguirá depois do feriado de 7 de Setembro, a Praça dos Três Poderes se transformou em uma grande eclosão estrondosa. Povos amazônicos e de todas as regiões se espalharam, se juntaram, misturaram rituais e abraços. Muitos indígenas choraram. Mulheres se ajoelharam com as mãos para o céu, como manifestação individual de agradecimento aos seus encantados. “É muita emoção”, disse Thaline Karajá, em lágrimas, da Ilha do Bananal (TO). “Agora a luta continua. Até o dia 8.”

Na próxima semana acontece a II Marcha das Mulheres Indígenas em Brasília, entre os dias 7 e 11 de outubro.

Primavera Indígena

Julgamento do marco temporal com mobilização indígena em Brasília
Julgamento da tese do marco temporal mobiliza indígenas em Brasília (Foto: Leonardo Milano)

Os indígenas desceram o Eixo Monumental, em Brasília, por volta das 13h30 e percorreram 4 quilômetros, do acampamento instalado no estacionamento do Planetário e da Funarte (Fundação Nacional de Artes), para assistir por telão ao vivo o segundo dia do julgamento, que começou às 14 horas de quinta-feira. Eles permaneceram sentados no chão, na Praça dos Três Poderes, em frente ao STF.

Em um dia de sol tórrido e ar seco, típico da época em Brasília, os indígenas vaiaram as sustentações orais de advogados de ruralistas. Demonstravam um uníssono cansaço após tantos dias acampados na capital federal. Eles estão agora no Acampamento Primavera Indígena, que nasceu espontaneamente após o encerramento do Acampamento Luta pela Vida que ocorreu de 22 a 28 de agosto e reuniu 6 mil indígenas de 176 povos. No novo acampamento, são cerca de 1.200 pessoas de 70 povos. O grupo ainda vai crescer, com a Marcha das Mulheres Indígenas, programada para 7 a 11 de setembro, e que segundo a Apib pode chegar a 4 mil mulheres.

Em outras partes do país, houve mobilizações para o julgamento do Recurso Extraordinário 1.017.365. Oscar Gamela, da aldeia retomada Taquaritua, do Maranhão, conta que na quarta-feira (31/8) o seu povo fechou a MA-014, que liga São Luís a Pinheiro, durante todo o período em que aconteceu o primeiro dia do julgamento no STF. “Para dar sustentabilidade para nós aqui”, disse. Ele comentou que todos os povos que estão em Brasília acompanham as notícias de Brasília e fazem protestos nas estradas e cidades.

Os amicus curiae

Julgamento do marco temporal
Caravana dos indígenas no Acampamento Luta pela Vida em Brasília (Foto: Pure Juma/Jovem Cidadão Indígena)

Na primeira fase do julgamento foram apresentadas as sustentações orais contrárias e favoráveis ao “marco temporal” pelos chamados amici curiae (amigos da corte, em latim). Um total de 23 instituições (13 mulheres) foram contrárias à tese da imposição de um marco temporal. Já outras 13 apresentaram-se a favor da tese. Entre os advogados que rechaçaram o marco temporal, estavam quatro indígenas: Samara Pataxó, Cristiane Soares Baré, Ivo Macuxi e Eloy Terena. O momento foi descrito pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) como “histórico”.

“A colonização não venceu. Os advogados indígenas garantiram suas falas no julgamento do STF que pode decidir o futuro dos povos indígenas. Eles estão representando o grito que vem dos territórios e dos ancestrais na defesa dos direitos constitucionais”, disse a APIB, em suas redes sociais.

Uma das falas mais marcantes foi a da advogada Samara Pataxó, representante do Movimento União dos Povos e Organizações Indígenas da Bahia (Mupoiba). “Não há como falar de vida sem a proteção aos nossos territórios”, disse Samara lembrando que há mais de cinco séculos os povos indígenas do Brasil ainda lutam para conseguir viver dignamente em seus territórios ancestrais.

“Já não basta historicamente terem nos imposto uma língua, uma fé, uma civilização? Ainda querem nos impor um padrão de sociedade, um padrão de desenvolvimento, um padrão de progresso e querem também limitar, interferir, ditar os moldes do nosso usufruto, e o gozo e efetivação dos nossos direitos territoriais, mesmo estando esses direitos consagrados na carta constitucional inclusive como cláusula pétrea”, defendeu Samara Pataxó.

Advogado da Associação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Eloy Terena, defendeu que aceitar a tese do marco é ignorar as violações. “Adotar o marco temporal é ignorar todas as violações a que os povos indígenas estão submetidos. Demarcar terra indígena é imperativo constitucional”, resumiu.

A advogada Lucimar Carvalho representou os povos Apãnjekra Canela, Memortumré Canela e Akroá-Gamella, do Maranhão, povos indígenas que têm seus territórios sob intensa disputa e que, de acordo com Lucimar, serão altamente prejudicados em caso da aprovação da tese do marco temporal.

Para o povo Akroá-Gamela, que vive na região da baixada maranhense, a realidade é da continuidade da violência física que historicamente sofreram. Foi um povo que sofreu um terrível massacre no dia 30 de abril de 2017, patrocinado por políticos, comerciantes e invasores da região, em que dezenas de indígenas ficaram feridos em seus corpos e suas almas. Inclusive, excelências, alguns tiveram suas mãos decepadas e joelhos cortados por golpes de facão. “Para os Akroá-Gamella o marco temporal significa matar a memória daqueles que lutaram antes e que seguem carregando essa presença dentro de cada um”, disse Lucimar.

Representando a Rede Eclesial Panamazônica, a advogada Chantelle da Silva Teixeira lembrou que a questão da regularização das terras indígenas parece um tema resolvido, mas está longe disso. “Atualmente, cerca de 65% das terras indígenas na Amazônia brasileira apresentam alguma pendência no processo de demarcação. E dessas, 70% sequer tiveram iniciado seu procedimento por parte da União.”

O procurador do Estado do Amazonas, Daniel Pinheiro Viegas, lembrou que o Brasil caminha para o terceiro ano consecutivo de recorde no desmatamento da floresta amazônica, uma devastação que se concentra quase que exclusivamente em terras da União, exceto as terras indígenas. “Defender o direito territorial indígena é defender a biodiversidade da Amazônia, mas este fato não está isolado, nós temos a maior população indígena do país, e somos o Estado com a maior diversidade étnica do Brasil”, afirmou.

Viegas lembrou que que os conflitos fundiários envolvendo povos indígenas e comunidades tradicionais exigiram que o Estado do Amazonas, por meio da procuradoria geral estabelecesse um diálogo permanente com a Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e com a Universidade do Estado do Amazonas (UEA) para poder compreender, com mais profundidade os direitos territoriais em conflitos através do projeto Nova Cartografia Social da Amazônia.

Se o STF não declarar o marco temporal como inconstitucional, o Congresso Nacional pode defini-lo por lei. Atualmente, tramita na Casa o PL 490, que transfere a processo para o legislativo, praticamente decretando o fim da demarcação. O Congresso Nacional é notoriamente defensor dos interesses dos ruralistas, contrários às terras indígenas.

Os inimigos da corte

Caravana dos indígenas no Acampamento Luta pela Vida em Brasília (Foto: Pure Juma/Jovem Cidadão Indígena)

O representante da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), Rudy Maia Ferraz, defendeu o marco temporal, porque, segundo ele, “é o único instrumento que traz segurança jurídica, previsibilidade, que traz estabilidade das relações sociais no País”, disse. “Não estamos aqui para buscar a extinção dos direitos indígenas ou retrocesso dos direitos indígenas. Estamos discutindo como implementá-los, se é através da extinção da violação do direito à propriedade ou se é a compatibilização dos direitos dos índios com o dos produtores, com o direito a propriedade”, assinalou.

A Sociedade Rural Brasileira, representada por Paulo Dorón Rheder de Araújo, qualificou-se como “uma entidade que representa o agronegócio há mais de 100 anos e que sempre colaborou para o desenvolvimento do País” para se manifestar favorável à imposição do marco temporal definido como a data de promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988. “Este caso resume-se a ideia de confiança com relação a ordem constitucional vigente a partir de 1988 (…) O texto literal, a interpretação gramatical, a maneira mais clara de ler o artigo 231 é no sentido da afirmação da tese do marco temporal”, apontou.

“É preciso ser observado neste julgamento a estabilidade da paz social. Excelências, a emissão da posse por parte dos indígenas tem que observar o devido processo legal e a existência de decreto homologatório, processo de demarcação definitivamente concluído”, reforçou a advogada Luana Ruiz Silva de Figueiredo, do Sindicato Rural de Antônio João, de Mato Grosso do Sul. “Não existe conflito entre esses direitos (territorial e indígena). O conflito é uma criação artificial de berço ideológico.”

A mobilização indígena

Mobilização dos indígenas em Brasília (Foto: Kamikia Kisedje)

A coordenadora do Conselho Indígena Tupinambá, Raquel Tupinambá, da aldeia Surucuá, no Baixo Rio Tapajós (PA), disse que nas sustentações orais lhe chamou a atenção argumentos de ruralistas de que há terra demais pra pouco índio, fazendo uma divisão do número de hectares pelo número de pessoas. “Não há como comparar nossos territórios coletivos com propriedades individuais. As florestas são essenciais não apenas para nossa sobrevivência física e cultural como humanos, mas também das plantas, dos animais e dos espíritos não-humanos. As florestas amazônicas são essenciais para o equilíbrio das chuvas no Sudeste e para o clima do planeta. E os curupiras não vivem na cidade”, explicou.

Raquel Tupinambá comentou que a marcha até o STF, principalmente nos horários de sol a pico, ficou mais longa no atual local de acampamento, e que ficou mais difícil pelo número menor de participantes e com isso a redução da “força dos cantos”, comentou. “Dá vontade de tomar banho de rio, estar na floresta, estar com a família, mas precisamos estar nesta luta.”

Os últimos dias em Brasília têm sido de muito calor, principalmente para os povos da Amazônia que sofrem a secura do ar. Alguns tiveram sangramento no nariz, diarreia e dor de cabeça. Eles foram atendidos pela equipe de saúde que tem o apoio da Fundação Oswaldo Cruz e Universidade de Brasília. Todos vieram a Brasília vacinados e a distribuição de máscaras de padrão recomendado por especialistas continua sendo feita todos os dias nos dois acampamentos, o Luta pela Vida e agora o Primavera Indígena, ambos localizados no Eixo Monumental de Brasília.

Desde o primeiro dia do Acampamento Luta pela Vida houve momentos de relaxamento, alegria, confraternização entre povos e também momentos de muita tensão. Nas redes sociais, circularam vídeos contrários aos povos indígenas e até mesmo tentando fazer acreditar que as manifestações seriam pró-governo. Seguranças indígenas se movimentaram para evitar a presença de “bolsonaristas infiltrados” nos locais de permanência tanto ao lado do Teatro Nacional como agora no Acampamento Primavera Indígena. Um dos dias mais tensos foi a terça-feira com a notícia de que a polícia havia derrubado casas com trator e levado presos lideranças Pataxó, de Coroa Vermelha, em Porto Seguro (BA), que em seguida foram soltos.

“São ondas repentinas que vem para desestabilizar”, comentou Cris Pankararu, que com Shirley Krenak convocou jornalistas na Tenda de Comunicação para um ritual de “limpeza de energias”. No início da tarde de quinta-feira, elas cuidavam do acampamento contra “maus desejos, sentimentos daninhos, buscar sabedorias para desenvolver o trabalho de todos os que estão aqui em busca do bem comum”.

Antes do melhor momento do dia, a sensação de todos era um misto de esperança e “ânimos acirrados”, como disse o presidente do Conselho Indígena Tapajós-Arapiuns, Ednei Arapium, da Terra Indígena Maró, do Baixo Tapajós. Ele se queixou da demora do julgamento, “com intervalos muito longos” e disse que os parentes estavam estressados, vindos de longe, sofrendo com as variações de clima.

Depois da interrupção do julgamento, a noite desta quinta-feira começou mais tranquila e com a voz e o som de Tico Santa Cruz. O músico chegou cedo, conversou com as pessoas e depois foi à cozinha para buscar sua porção de peixe, feijão e arroz servida na cozinha do acampamento. Subiu ao palco por volta das 21h30 e anunciou que daria um recado “para a assombração que está no Palácio do Planalto”. O artista agradeceu o convite feito por Sonia Guajajara e Célia Xakriabá.

“Já andei por muitos lugares, já viajei por rios da Amazônia, mas nunca senti a emoção que senti hoje aqui”, disse. O recado viria com a música “Carta ao Futuro”: “Hoje já chorei, já sorri, estou feliz com esse momento que o universo preparou para a minha vida. Demarcação, já”, gritou, acompanhado pelos indígenas. (Colaborou Elaíze Farias)

 

 

Fonte: https://amazoniareal.com.br/marco-temporal-julgamento/

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