Vinte e um de novembro de 2019 foi o dia em que o universo conspirou para meu primeiro e único encontro com Dom Pedro Casaldáliga, o homem que dedicou a vida para defender os direitos humanos e que lutou ao lado dos indígenas. Desde que soube que ele estava internado, há uma semana, as lembranças desse momento reacenderam em minha memória, fazendo com que tudo parecesse como se fosse ontem. Dom Pedro morreu aos 92 anos, em Batatais (SP), devido a uma infecção respiratória que evoluiu para embolia pulmonar.

Eu estava de passagem pelo município de São Félix do Araguaia (MT) e só tinha um dia ali, tempo necessário para os preparativos que antecederiam minha viagem para o encontro com os indígenas da etnia Karajá, na Ilha do Bananal, que eu acompanharia para uma reportagem sobre a Lei Maria da Penha entre as mulheres indígenas.

Meu marido e um amigo jornalista – as poucas pessoas que sabiam que eu estava ali – me escreveram e perguntaram sobre Dom Pedro. Se eu estava na mesma cidade em que ele morava, como não saber do bispo exemplo de luta e humanismo na luta com os povos indígenas da região? Era preciso ter notícias e jamais perder a chance de um encontro, pois a idade avançada talvez não permitisse uma nova oportunidade.

Mas já haviam me adiantado pelas  bandas da cidade que seria praticamente impossível qualquer tipo de contato, pois ele era guardado por seguranças por sofrer ameaças, o pároco da cidade não permitia visitas e encontrá-lo não era para qualquer um. Ele estava muito bem guardado, protegido e cuidado.

Eu era qualquer uma, mas resolvi tentar mesmo assim e perguntei para a recepcionista da pousada em que estava hospedada por onde será que andaria aquele homem que muitos tinham como santo. Recebi algumas coordenadas – sobe essa rua até o fim, passa a praça e vira à esquerda – e saí a procurar.

Perguntava aos caminhantes onde era a casa dele e se eu estava na direção correta e todos tinham algum complemento a fazer, até que encontrei a residência onde havia na frente uma torneira disponível e livre para saciar a sede de qualquer um que ali passasse. Esse era o ponto de referência da casa de Dom Pedro.

As janelas estavam fechadas e por alguns instantes pensei que os moradores da cidade tinham razão: eu jamais o encontraria. Bati palmas mesmo assim. Estava calor e a caminhada logo após a chuva que havia atingido a cidade, me fazia suar. Uma mulher apareceu, me apresentei, discursei sobre minha vontade de conhecer Dom Pedro e poucos segundos foram necessários para que chegasse o convite para entrar, em uma demonstração clara de que ali era também uma igreja, onde todos são chamados a se aproximar.

Aquela mulher era Diolice, a cuidadora de Pedro. Contou, enquanto me guiava pela casa, que há seis meses ele já não andava mais e também não falava, mas que a audição estava preservada. O estado de saúde vinha debilitado há tempos devido à idade e à doença de Parkinson, mas tudo ficou mais difícil após uma queda.

Observei a casa e todos os detalhes que mostravam que ali morava mesmo Dom Pedro Casaldáliga. Objetos indígenas decoravam as paredes. Um pôster com os rostos que inspirou a primeira versão da Aliança dos Povos da Floresta estava pendurado ao lado de uma homenagem do Movimento Sem-Terra (MST) com o poema Confissões do Latifúndio, de autoria de Dom Pedro. Ele descansava ali, ao lado de suas memórias, sentado em uma cadeira de tiras de plástico azul e com os pés esticados em outra, exatamente igual.

Aproveitei que ele podia me ouvir para dizer apenas da grande inspiração que era para mim, para os dias difíceis, em que a vontade de desistir era tanta que até faltava o ar. Mas que o vendo ali a gente entendia que o destino é uma jornada profunda e não um caminho com começo, meio e fim, com data de vencimento onde deixar de lutar seja uma opção. Ele acenou a cabeça e apertou a minha mão, que segurava nas dele e, naquele momento, senti a imensidão do mundo, grande como aquelas mãos, vastas como ele.

A visita não ultrapassou os vinte minutos, mas foi o suficiente para que eu voltasse a passos largos para o hotel, com o coração cheio e a alma extasiada, e terminasse os preparativos para a viagem, que começaria assim que o sol raiasse. Desanimar já não fazia mais parte dos planos. E assim, ainda é. Viva Dom Pedro Casaldáliga.

 

Fonte: https://amazoniareal.com.br/meu-encontro-com-dom-pedro-casaldaliga-09-08-2020/

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