Em entrevista à Amazônia Real, o líder indígena Dário Yanomami diz que as medidas do governo federal não podem durar apenas dois ou três meses na terra indígena. É preciso eliminar de uma vez o garimpo (Foto: Tiago Orihuela/ALERR).


Manaus (AM) – Na cidade ou nas comunidades da terra indígena, Dário Yanomami está permanentemente desperto sobre o que acontece com seu povo. Depois de Davi Kopenawa Yanomami, seu pai, ele é a liderança de maior projeção dentro e fora do território. De Davi, Dário recebe o legado de seguir adiante. “Meu futuro também são meus antepassados, que já viveram há muitos anos. E agora cheguei como futuro”, responde de forma quase lírica, a uma pergunta.

Para um país que sempre conheceu os indígenas como povos do passado, desaparecidos, foi uma “surpresa” quando a sociedade esteve tão próxima de uma tragédia humanitária como há muito não se via. Em janeiro deste ano, enfim, o país entendeu o que se passava com os Yanomami vítimas do garimpo. Dário, um pouco enfastiado dessa ‘novidade’, diz:

“Agora a sociedade brasileira ouviu o som, o grito, das crianças. Antes a sociedade não escutava a gente. Escutava outras coisas. E como somos os povos da floresta, a gente gritava”, diz ele.

O líder indígena também se incomoda quando uma parte da simpatia humanitária que se manifestou após as notícias da crise dos Yanomami acha que a catástrofe se limite à “fome”. Seu receio é que esse reducionismo comprometa e ofusque as medidas mais profundas para eliminar de uma vez o garimpo na Terra Yanomami.

Para ele, é preciso que a sociedade compreenda que as necessidades dos Yanomami vão muito além. “A sociedade tem que pensar qual é o problema que está causando na Terra Yanomami. Foram destruídos quase 4.400 hectares. Isso significa que as crianças estão morrendo de doença de contaminação de mercúrio. É isso que a sociedade tem que pensar agora”.

O líder indígena não critica ações emergenciais como envio de alimentos ou remédios, especialmente para regiões onde as áreas estão devastadas, mas lembra que o plano deve ser a longo prazo também. Serão necessários anos para a Terra Yanomami se renovar e se recuperar.

“A natureza vai ajudar, mas eu não sei qual será a consequência do veneno abaixo da água, que é o mercúrio. O governo tem que ajudar os Yanomami agora. Tem que fazer poço artesiano para eles tomarem água. Para ficar limpo totalmente vai levar uns 30 anos”, diz. Leia a entrevista que ele concedeu à Amazônia Real, no dia 15 de fevereiro, em Boa Vista (RR):

Dário Yanomami durante a entrevista (Foto: Amazônia Real)

Amazônia Real – Passado um mês desde as operações de combate ao garimpo e apoio ao povo Yanomami doente, como você analisa essas ações?

Dário Yanomami – Há quatro anos, 20 anos, 30 anos, já queríamos fazer essa operação. Hoje está acontecendo, mas já fizemos nosso trabalho, nossas denúncias, nossos próprios relatórios, as denúncias das comunidades. É um trabalho longo. Uma luta longa. Nos governos passados não fomos atendidos. Fizemos bastante campanhas, nas mídias, jornais, televisões. O Bolsonaro [ex-presidente do país] fechou totalmente as portas para a gente. Ele não atendeu nossas denúncias. Hoje chegou a hora, porque conseguimos esse grande trabalho, de resistência da população Yanomami.

Amazônia Real – Será uma batalha de quanto tempo para acabar com o garimpo?

Dário Yanomami – Nosso objetivo não é para seis meses, não é para dez meses. Nosso objetivo tem que ter continuidade. Durante dois anos, três, quatro anos. Tem que fazer operações, instalações de postos de fiscalização para bloquear a entrada dos invasores. O governo tem que acatar nosso objetivo. Tem que ser muito forte para eliminar garimpo ilegal, acabar de uma vez. Não sei o que vai acontecer daqui a três, quatro meses na Terra Yanomami. Mas nós precisamos que a operação continue, seja permanente. O governo tem que fazer isso.

Amazônia Real – Soubemos que ainda há muitos garimpeiros no território Yanomami, mesmo com as operações de retirada. Estão se escondendo?

Dário Yanomami – Garimpeiro é um bicho muito esperto. Eles têm um conhecimento. Eles sabem quando vai acontecer, quantos meses vai durar. E quantos anos vão durar. Eles são muito inteligentes, eles sabem. Eles têm 30 pontos de wifi na Terra Yanomami. Eles compartilham todas as conversas nas redes sociais, eles sabem de ações judiciais, sabem sobre autoridades como o [presidente] Lula. Eles sabem os limites, onde não vai alcançar essa operação. Fizeram outra estratégia… Eles sabem.. Eles estão escondendo os maquinários, comida, combustível. Porque depois de um mês, dois meses, três meses, podem voltar. Mas tem outros garimpeiros que estão indo para a Venezuela, Colômbia, Guiana Inglesa.. E o Brasil. Os garimpeiros têm estratégia para se esconder. E para onde estão fugindo. Quando acabar a operação eles vão voltar. Por isso que tem que ser um trabalho bem forte, com soberania nacional. E grande. Os países têm que ter controle de monitoramento. Tem que atuar para que eles não voltem.

Amazônia Real – Vocês, líderes Yanomami, sempre enfatizaram, isso há muito tempo, que é preciso investigar também os financiadores. Finalmente isto está começando a acontecer? O que é preciso fazer mais?

Dário Yanomami – Esse é um trabalho da Polícia Federal. Não somos responsáveis por isso. Agora também é trabalho do Ministério Público Federal, da Inteligência. Tem que investigar quem são os donos das mercadorias, das joalherias, quem são os donos de empresas. Quem compra, quem vende. Quem manda para o exterior. Mas nós já tínhamos falado isso: ‘vocês têm que investigar quem são os responsáveis, quem compra, quem manda nos maquinários, quem paga hora-voo, alimentação’. Já avisamos isso antes. O garimpo é grande, mas tem que pegar quem são os chefes. Pegar financeiramente eles. Hoje um maquinário custa 2 milhões de reais.

Amazônia Real – Quantas denúncias vocês fizeram no governo Bolsonaro?

Dário Yanomami – Imagina, quase 22 denúncias encaminhamos na gaveta dele. Isso sem falar nas outras denúncias que enviamos para Ministério Público Federal, Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), Exército, Força Nacional, Ministério da Justiça. De nossa parte, cobramos todos. Quando estourou, ultrapassou o limite, quase 30 mil garimpeiros… Perdemos até nossa contagem, nossa matemática. É muita gente. Foi importante também a nossa resistência, a nossa luta, a nossa coragem. Por isso criamos nosso trabalho como relatórios. ‘O governo não vai sobrevoar lá, a PF não vai andar e contar quantas cabeças dos garimpeiros’. Por isso fizemos nossa responsabilidade para poder mostrar as provas, as cicatrizes, de estrago de nosso território.

Amazônia Real – Você acha que somente agora grande parte da sociedade conheceu a situação real dos Yanomami?

Dário Yanomami – Agora a sociedade brasileira ouviu o som, o grito, das crianças. Antes a sociedade não escutava a gente. Escutava outras coisas. E como somos os povos da floresta, a gente gritava. Como eu fiz campanhas como o Fora Garimpo, o Fora Covid. Foram 400 assinaturas em petições. Mas o povo não acreditou. Eu, como Dário Yanomami, falava nas redes sociais, na internet, nas ocupações. Eu vejo que sociedade onde a gente mora, no mesmo Brasil, não escutou a gente. Demorou muito. Assim mesmo, a gente cobrava o Estado brasileiro. A lei ampara onde temos direito.

Amazônia Real – Acredita que agora a sociedade brasileira, não indígena, começa a compreender a realidade, a lógica, o modo de vida, enfim, do povo Yanomami?

Dário Yanomami – Eu acho que não. Ela não conseguiu entender ainda. Hoje, televisões e jornais, estão pensando, falando… A sociedade tem que pensar qual é o problema que está causando na Terra Yanomami. Foram destruídos quase 4.400 hectares. Isso significa que as crianças estão morrendo de doença de contaminação de mercúrio. É isso que a sociedade tem que pensar agora. Não é para pensar em fome. Eu fico receoso, incomodado. Será que a sociedade está enxergando onde é o perigo? Só pensando ‘fome, fome’. Não é assim. As crianças estão morrendo desnutridas porque o rio está poluído, estão sujos. A terra tem muita prostituição, tem muita cachaça, tem muita arma. Tem muito assassinato. A sociedade tem que entender o maior problema. Onde não tem garimpo na Terra Yanomami, como na parte do Amazonas (norte do estado), as crianças não estão morrendo de fome. Onde tem garimpo as crianças ficam desnutridas porque tem muita malária, diarreia, muita verme, porque a comunidade está totalmente destruída. As crianças estão morrendo contaminada por mercúrio.

Amazônia Real – Com isso, a fonte alimentação fica afetada?

Dário Yanomami – Como esses rios principais que estamos consumindo, como o rio Uraricoera, rio Apiaú, rio Mucajaí, rio Catrimani.. estão totalmente poluídos. Esses rios grandes, a gente consome. A gente bebe água, a gente pesca. Quando, por exemplo, queixada, anta, paca, tomam água, eles morrem também. Onde vamos comer? Que comida saudável vamos comer?

Amazônia Real – Então não basta envio de comida por pessoas com preocupação humanitária?

Dário Yanomami – A população precisa pensar onde a comunidade é mais impactada. O rio está poluído. Descontrolou a família. O pai está doente, por exemplo. Acho que pode ajudar sim. Por outro lado, tem que ajudar com medicações, remédios, equipe de saúde. Sem remédio, vamos sobreviver? Não. Então é importante as duas soluções emergenciais.

Amazônia Real – Dário, como você vê o retorno dos Yanomami para as áreas devastadas pelo garimpo? Você acha possível voltar para o mesmo lugar ou é o caso de levá-los para outras áreas da terra indígena?

Dário Yanomami – A região mais impactada é Homoxi [no rio Mucajaí]. Lá são quase 600 pessoas correndo risco. Onde tinha atendimento de saúde e tinha um rio limpo, totalmente acabou. Queimaram o posto de saúde. Eles fugiram. Então, vão voltar um ano, dois anos, para viver de novo. Mas quando acabar o garimpo, será um pouco difícil para quem já comeu a comida do garimpo; vai sofrer. Mas quem não consumiu, estão trabalhando. Futuramente tem que voltar. Porque é a casa deles, a terra deles. No Xitei também. Está totalmente destruído. São 2.000 nessa região, estão impactados. Não tem posto de saúde. O rio destruído. Eles ‘fugiram’, mas futuramente vão voltar quando acabar o garimpo. Vão sofrer, mas a independência vai voltar para esquecer. Nossa cultura funciona assim.

Amazônia Real – E sobre as famílias que estão em tratamento em Boa Vista, neste período mais grave da crise Yanomami, o que você acha que vai acontecer com elas quando voltarem para o território destruído?

Dário Yanomami – A gente falou lá atrás, como a década de 80, a região foi destruída. Depois, 15 anos, 20 anos, estava quase estava renovando. O rio voltou normal, os peixes voltaram. Demorou muito. Se agora tiver 20 anos para a frente, a própria natureza vai recuperar a vida da terra. A natureza vai ajudar, mas eu não sei qual será a consequência do veneno abaixo da água, que é o mercúrio. O governo tem que ajudar os Yanomami agora. Tem que fazer poço artesiano para eles tomarem água. Para ficar limpo totalmente vai levar uns 30 anos. É um plano longo. Na emergência, para ajudar, tem que fazer poço artesiano para eles tomarem água limpa. Para ficar saudável de novo.

Amazônia Real – Existe a prática de mudar de lugar ou aldeia entre os Yanomami?

Dário Yanomami – Isso acontece dentro dos limites dele, quando tem parentes perto. Que conviveu mais ou menos 20 anos, 30 anos. Mas não vão andar por aí. Vão ficar permanecendo onde estão.

Amazônia Real – Qual sua esperança para o futuro dos Yanomami?

Dário Yanomami – O futuro tem muitos séculos. Por isso estou aqui. Meu futuro também são meus antepassados, que já viveram há muitos anos. E agora cheguei como futuro. Depois deste meu futuro, continua outro futuro como Yanomami, com harmonia, sem ameaças, sem morrer pessoas. A gente precisa um futuro melhor para a sociedade brasileiro. O meu futuro é os Yanomami continuarem como Yanomami.

Dário Yanomami (Foto: Tiago Orihuela/ALERR)

Cofundadora da Agência Amazônia Real e editora de conteúdo. É referência em reportagens sobre povos originários, populações tradicionais, denúncias de violações de direitos territoriais e direitos humanos, violências socioambientais e impactos de grandes obras na natureza e nas populações amazônicas. Entre as premiações recebidas, está o Prêmio Imprensa Embratel. Em 2021, foi homenageada no 16º Congresso Internacional de Jornalismo Investigativo, da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), junto com Kátia Brasil, também fundadora da Amazônia Real. Em 2022, recebeu o Prêmio Especial Vladimir Herzog. É jornalista formada pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM).

Fonte: https://amazoniareal.com.br/meu-futuro-e-os-yanomami-continuarem-como-yanomami/

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