Por Wérica Lima

Há 20 dias a balsa de garimpo Dubai tira o sono de ribeirinhos e indígenas que temem a chegada de garimpeiros na região, após autorização do Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas para pesquisas sobre o minério. Áreas de conservação e preservação estão ameaçadas, entre elas as terras indígenas do povo Apurinã (Foto cedida por Márcia Apurinã). 


Manaus (AM)- A presença de uma balsa de dragagem de minérios de grande porte no leito do rio Purus, em Tapauá, município do interior do Amazonas, provoca revolta em comunidades indígenas e ribeirinhas. Os moradores locais temem a transformação da região em área de garimpo “legal” após a emissão de uma licença de operação para exploração de ouro pelo Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam), autarquia estadual vinculada à Secretaria de Meio Ambiente do Estado do Amazonas (Sema).

Sem terem sido consultados, indígenas e ribeirinhos estão em alerta com a presença da balsa de garimpo chamada Dubai, que até a quarta-feira (17) encontrava-se na comunidade Beabá, dentro da Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) Piagaçu-Purus. 

No final de abril, a balsa já havia sido vista nas proximidades de Tapauá (a 449 quilômetros de Manaus) e em áreas próximas à Reserva Biológica Abufari, à Floresta Estadual de Tapauá e em áreas de influência das Terras Indígenas Igarapé São João, Itixi Mitari e Lago Aiapuá. 

“Nós queremos ajuda das autoridades para retirar essa balsa daqui porque eles estão na área que a gente pesca para comer, que nós moradores sobrevivemos”, afirma uma moradora de Beabá que prefere não se identificar por medo de retaliação. 

A fonte revelou à Amazônia Real as movimentações da balsa. “Já está com uns cinco, seis dias que eles (os garimpeiros) estão ancorados e cada vez mais ela está se camuflando na mata. Os moradores que passam por perto dizem que eles passam a noite trabalhando e o gancho deles também estava arriado por debaixo fazendo escavação”, disse.

Reuniões, um ato público, um abaixo-assinado e até um grupo de Whatsapp fazem parte da mobilização de um grupo de moradores contra a ameaça do garimpo. Na quinta-feira (18), dezenas de pessoas participaram de um protesto nas ruas de Tapauá. O abaixo-assinado será encaminhado para órgãos públicos como o Ibama, o Ipaam, a Agência Nacional de Mineração (ANM), o Ministério Público Federal e o Ministério do Meio Ambiente, liderado pela ambientalista Marina Silva.

Segundo José Pereira da Silva, liderança local de Tapauá, entre os objetivos do abaixo-assinado está o pedido de revogação da licença do Ipaam e a formalização de um dispositivo municipal que proíba o garimpo na cidade. Os moradores também querem a revogação de um alvará da Agência Nacional de Mineração que pode facilitar o garimpo na região.  

A Licença de Operação (L.O) foi emitida pelo Ipaam no dia 17 de fevereiro e concede ao garimpeiro responsável pela balsa, João Leonardo Leismann De Sá Chaves, a permissão para fazer pesquisa mineral de ouro por um ano em uma área de 421 hectares. O documento permite, ainda, a prospecção de minério de ouro sem guia de utilização. Já o Alvará de Nº 1903/2021, da Agência Nacional de Mineração, concede permissão para pesquisar ouro por três anos em uma área de 8.166,23 hectares. 

O parecer técnico nº 0117, do Ipaam, ao qual a Amazônia Real teve acesso, declara que a atividade não é de risco e por isso não requer Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e Relatório de Impacto Ambiental (Rima). Na Licença de Operação consta que o nível de potencial poluidor e degradador da atividade é “médio”. 

“Considerando que a atividade de pesquisa, aplicando prospecção em profundidade, não se enquadra como atividade de grande impacto, não se faz necessário a apresentação de EIA/RIMA nesta fase. Estando passível de apresentação de EIA/RIMA o Regime de Concessão de Lavra, que apenas será iniciado se o Relatório Final de Pesquisa Mineral apresentado se mostrar positivo para exploração”, diz trecho do documento. 

À Amazônia Real, como justificativa e resposta às perguntas sobre a autorização, o Ipaam afirmou que tudo está dentro da lei e que fará uma fiscalização no segundo semestre.  “O Ipaam informa que o cidadão citado possui uma  L.O. para atividade de pesquisa mineral, com fiscalização programada para o mês de julho deste ano. Afirma, ainda, que a expedição se deu dentro dos rigores das leis de mineração estadual e nacional”. 

João Leismann, que é dono da Cooperativa dos Trabalhadores em Garimpo, Extrativismo, Pesca e Ambientalismo do Estado de Rondônia e sócio na empresa “Nacional Intermediações LTDA”, foi procurado pela Amazônia Real através de um número de celular disponibilizado em seu CNPJ, mas não respondeu até esta publicação.

Não ao garimpo

Os argumentos não convencem os moradores, que temem ser afetados pelo garimpo. No grupo de WhatsApp chamado “Diga não ao garimpo em Tapauá”, que conta com mais de mil pessoas, é debatido o temor causado pela permanência da balsa e pela possibilidade de instalação de outros equipamentos para o garimpo. 

“Se eu estivesse de frente com o presidente do Ipaam, gostaria de falar para ele desfazer essa autorização que ele deu para esses pesquisadores de garimpo. Para eles saírem no município de Tapauá porque nós não queremos pesquisas de garimpo no nosso município, seja ela legal ou ilegal. Nós não queremos porque nós já estamos vivendo bem”, declara Márcia Apurinã, que integra o movimento indígena de Tapauá e tem origem na Terra Indígena Igarapé São João, uma das áreas ameaçadas. Na opinião dela, o Ipaam deveria ter consultado a população.

Há 40 anos na região, uma moradora entrevistada pela Amazônia Real teme pela segurança. “Segundo informações que temos, chegou gente para trabalhar na balsa, mas daqui da comunidade não foi ninguém, até porque nós, moradores, estamos com medo, pois são garimpeiros e a gente vê na na televisão que os garimpeiros, quando querem entrar numa área, até matam pessoas. Então a gente ainda não foi nem lá ainda porque não tem nenhuma segurança”.

Há a suspeita de que uma equipe de garimpeiros tenha ficado em uma mata próxima à comunidade Jatuarana, acima da Baturité, lugar onde a balsa ficou instalada inicialmente. 

“Tem fala de moradores de que tem uma equipe dentro do pedral de Itaparanã, indo para lá e para cá. Tem notícias da comunidade Jatuarana de que eles entraram em Itaparanã à noite. Tem muitas falas assim, a gente mesmo não sabe se é verdade, mas é provável, muito provável”, relata a liderança José Pereira da Silva. 

Irregularidades e fiscalização

Balsa de garimpo Dubai em Tapauá no rio Purus (Foto: Reprodução redes sociais)

O vai e vem teria começado há pouco mais de uma semana, quando a Secretaria de Meio Ambiente e Turismo (Semmatur) de Tapauá coordenou, junto com as polícias Civil e Militar, a Operação Dubai para interromper as atividades da balsa. Isso porque, apesar de existir a Licença de Operação emitida pelo Ipaam e o alvará de funcionamento da AMN, o equipamento não tinha autorização municipal. 

À Amazônia Real, o secretário de Meio Ambiente e Turismo, Jaciel dos Santos, informou que duas diligências foram realizadas, a primeira no dia 28 de abril e a segunda em 10 de maio. Segundo ele, os responsáveis pela balsa foram autuados de acordo com o previsto no Código Ambiental do Município e retirados da área até segunda ordem dos órgãos superiores. 

O relatório da Operação Dubai aponta que os garimpeiros não obedeceram o artigo 55 da Lei 9.695/98 de crimes ambientais, que criminaliza a exploração sem a devida autorização; e os artigos 85 e 86 da Lei Municipal Nº 223, que trata da exploração de recursos minerais e declara a Semmatur como responsável por fiscalizar, regularizar e também autorizar as atividades no município.

Conforme a Polícia Civil, quatros indivíduos que apresentaram a autorização do Ipaam para pesquisa na região foram conduzidos ao 64º DIP de Tapauá para prestar esclarecimentos e assinaram um Termo Circunstanciado de Ocorrência (TCO). Já a Polícia Militar disse que “prestou apenas apoio ostensivo às ações de fiscalização da Secretaria Municipal do Meio Ambiente de Tapauá”. 

O secretário suspeita que havia outra intenção além da pesquisa. “As características do equipamento usado denotam que pretendiam fazer extração de minério e não uma simples pesquisa superficial de prospecção, conforme está na L.O.”, diz. 

Jaciel afirma que o Ipaam e o  Ibama têm ciência do caso, mas que apenas o Ibama retornou a tentativa de contato por telefone. Sobre o posicionamento da secretaria a respeito da presença de garimpo na região, ele diz ser contra. “Não queremos e nem compactuamos com a atividade de garimpo em nossos rios”. 

O superintendente do Ibama no Amazonas, Joel Araújo,  informou à Amazônia Real que a posição do órgão só poderá ser emitida após vistoria no local e que não pode revelar detalhes sobre as operações.”O fato é que o Ibama já foi acionado pelo Ministério Público Federal para tomar providências sobre o caso”, afirmou. 

Amazônia Real encaminhou perguntas ao MPF sobre a situação, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem.

O responsável pela balsa também foi procurado, mas não respondeu.

  Governo pró-mineração  

Ato contra o garimpo ilegal em Tapauá no dia 18/05, quarta-feira (Foto cedida por José Walter

Apesar de atualmente a balsa estar ancorada em frente à comunidade Beabá, dentro da RDS Piagaçu Purus, o parecer técnico do Ipaam afirma que a área liberada para pesquisa não deve estar dentro de unidades de conservação ou terras indígenas.

“Neste órgão foi caracterizada a área do projeto a qual se encontra fora de

Unidades de Conservação Municipal, Estadual e Federal, inclusive distando mais de

10km de Terras Indígenas”, ressalta o parecer, que se baseou no artigo 14º do Código de Mineração e também na definição de Pesquisa Mineral contida na Lei Estadual n° 3.785/2021. 

Conforme apuração da reportagem um conflito entre o parecer técnico de nº 0117 e a Licença de Operação. O próprio relatório da Operação Dubai produzido pela Semmatur acusa a contradição. 

“Sobre a L.O. do Ipaam, verificamos descumprimento das condicionantes 1, 4, 6, além de incoerências com os estudos PCA e RCA (Relatório e Plano de Controle Ambiental), uma vez que na L.O. consta “Pesquisa mineral aplicando o processo de prospecção superficial sem guia de utilização”, enquanto nos estudos consta “Pesquisa mineral para ouro em leito de rio com guia de utilização ouro”, diz o documento. 

A Semmatur afirma no relatório que não teve conhecimento prévio do licenciamento e acesso aos estudos como Plano de Controle Ambiental (PCA), Relatório de Controle Ambiental (RCA) e Memorial descritivo exigidos antes da emissão da L.O.

Marcelo Horta, pesquisador do Grupo de Pesquisa em Gestão do Território e Geografia Agrária da Amazônia GTGA/UNIR e do projeto Nova Cartografia Social da Amazônia, acredita que a emissão da licença é a prova que o governo do Amazonas e o governador Wilson Lima (União Brasil) incentivam a atividade minerária de risco ambiental. 

“Eu enxergo como uma posição política do Estado do Amazonas e da Assembleia Legislativa do Amazonas. Claramente, a gestão Wilson Lima é pró-mineração, eles estão vendo isso como eixo de desenvolvimento, tem esse discurso”, opina. 

O pesquisador afirma ainda que é uma posição política temerária do governo, que está dando aval até mesmo em uma região que abastece a capital com pescado de qualidade sem contaminação e bom preço.

“Ele [Ipaam] está muito errado no que fez, não está certo. Assinou a licença lá com ele [garimpeiro]. A gente sabe que está errado, o Ipaam deu essa licença sabendo a quantidade de gente que mora em Tapauá, sabendo que vai prejudicar os ribeirinhos querendo ou não, que precisam desse rio. O Ipaam deveria ter analisado isso tudo antes de dar essa licença”, afirma a liderança Márcia Batista Apurinã.

Há o temor de que garimpeiros que estão saindo da Terra Indígena Yanomami migrem para a região de  Tapauá.

Desconfiança  

Indígenas Apurinã contra o garimpo em Tapauá (Foto cedida por Marcia Apurinã)

A população  da região tem suspeitas em relação à Secretaria de Meio Ambiente e Turismo, à Prefeitura de Tapauá e aos próprios órgãos ambientais, como o Ipaam. O temor é que estejam alinhados ao garimpo.

Apesar da Operação Dubai ter se mostrado contra o funcionamento das atividades, o secretário Jaciel Souza posicionou-se de forma contraditória em entrevista a uma rádio local. Ele demonstrou ser a favor do garimpo quando a prática estiver legalizada, com a alegação de ser uma nova forma de arrecadação para o município. 

“A nossa arrecadação hoje é muito pouca e com o empreendimento desse tipo, se houver, acontecer tudo legalzinho, sem dano ao meio ambiente, não tenha dúvida que o município passaria a arrecadar uma quantidade considerável que não estava programada”, disse. “Eu não tenho dúvida, respondendo ao ouvinte, que isso seria benéfico se fosse executado de forma legalzinha”.

O locutor do programa, identificado como Tancredo e que segundo apuração da Amazônia Real é policial militar, definiu a mobilização da população como “histeria total”. Também disse para os ouvintes ficarem tranquilos e afirmou que as informações estão distorcidas e geram um clima de insegurança.

“Não há como esconder um empreendimento dessa natureza, eles vão precisar de mão de obra, vão movimentar outras embarcações e compras de combustível”, disse o secretário na mesma entrevista. 

O líder José Pereira da Silva, no entanto, estranha a falta de ações por parte das autoridades para a retirada da balsa. “Não queremos garimpo em Tapauá e não votaremos em projetos de governo que apoiam o garimpo e a grilagem de terra”, afirma.

  Ameaça 

Operação Dubai da Semmatur de Tapauá com a Policia Civil e Militar (Foto: Semmatur Tapauá)

O rio Purus, alvo da exploração, é considerado um dos mais fartos do Amazonas. É um eixo vital na vida da população local e também da capital. Contribui com a economia do Amazonas através do pescado e do manejo sustentável de frutíferas como a castanheira. 

“É importante deixar o garimpo longe do município porque, primeiro, a população vai sofrer um impacto destrutivo. Se a gente já tem problema com o crime organizado,  se a gente já tem problema com violência, prostituição, isso vai triplicar”,  teme José.

A liderança explica que a região precisa de mais investimentos e segurança, pois muitas reservas da região, como a Rebio Abufari, estão sem gestores. 

“O povo não precisa disso, nós temos tantas outras frentes para economia no Purus, a gente tem pescado, um potencial farmacêutico enorme e não se vê isso, não querem preservar a vida de como o povo vive e é feliz”.

Ele destaca ainda que o povo ribeirinho depende da floresta e do rio, ao contrário de empresários. “O povo da Amazônia tem o seu próprio modo de vida, não precisa dessas coisas, eu acho desrespeito com os povos originários, com o ribeirinho, eles [governos] não se importam com o povo”, critica.  

A Agência Nacional de Mineração afirma que os critérios utilizados para autorização são baseados no Código de Mineração “com a documentação essencial contida no artigo 16 e forma de análise do direito de prioridade nos artigos 11 e 18”. 

A respeito dos impactos na região, disse que “a outorga de alvarás de pesquisa não depende de análise de impacto” e que “essa avaliação é realizada na fase de obtenção de licenciamento ambiental para realizar trabalhos de lavra”. 

A ANM informou que o alvará está vigente até outubro de 2024 para João Leonardo Leismann De Sá Chaves. A reportagem também questionou sobre a possibilidade de suspensão do alvará a partir do posicionamento contrário da população local, mas a agência respondeu que não pode rever/suspender a outorga pela opinião pública. 

Amazônia Real procurou o governo do Amazonas para saber o posicionamento do Estado e do governador Wilson Lima, assim como se a Licença de Operação emitida faz parte do Plano de Mineração planejado para o mandato. O governo respondeu com uma nota de esclarecimento do Ipaam, sem responder às perguntas. 

“A licença concedida permite apenas a coleta de material mineral para pesquisa e não para exploração e comercialização. Qualquer atividade realizada fora do permitido pela licença é ilegal. O empreendimento deverá passar por fiscalização para apurar se a atividade está sendo executada de acordo com a Licença expedida”, informou a secretaria de Comunicação do Amazonas. 

Reportagem Noticiosa

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