Os corpos de uma adolescente da etnia Tukano e de um rapaz Yanomami foram encontrados no rio Negro, mas a polícia descarta crimes de homicídio nos dois casos. As famílias suspeitam de violência

Duas mortes trágicas alertam os povos indígenas sobre o aumento da violência contra os jovens que vivem na periferia de São Gabriel da Cachoeira, município da região do Alto Rio Negro, no noroeste do Amazonas. No dia 19 deste mês, o corpo de Charles Maia da Silva, de 24 anos, da etnia Yanomami, foi encontrado boiando no rio Negro, na orla da cidade. O caso aconteceu pouco mais de uma semana depois da adolescente Fátima de Jesus Correa Lima, de 13 anos, da etnia Tukano, aparecer morta no mesmo rio, no dia 9 de fevereiro. Nos dois casos, a Polícia Civil diz que não há suspeita de homicídio. No entanto, as famílias das vítimas suspeitam de violência.

O Departamento de Adolescentes e Jovens da Federação das Organizações Indígenas do Alto Rio Negro (Dajirn/Foirn) divulgou uma carta aberta solicitando ações emergenciais para a segurança da juventude e investigações das duas mortes. Foi marcada para o próximo dia 3 de março uma convocação emergencial do Fórum Interinstitucional de São Gabriel da Cachoeira para debater medidas a serem tomadas para proteger os jovens da região.

A carta traz, entre outros dados, números do Mapa da Violência elaborado pela Secretaria Geral da Presidência, em 2014, que coloca São Gabriel da Cachoeira como a cidade com maior taxa de suicídios e homicídios por 100 mil habitantes no país. E aponta o crescimento da violência sexual contra crianças, adolescentes e mulheres, além da descontrolada venda de bebidas alcoólicas e falta de fiscalização dos órgãos competentes na orla do rio Negro.

O município de São Gabriel da Cachoeira está localizado na região do Alto Rio Negro, distante 810 quilômetros da capital Manaus. De acordo com a Fundação Nacional do Índio (Funai), existem na região sete terras indígenas. Segundo estimativas atualizadas do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), a população é de 40 mil pessoas. No Censo de 2010, quando o número era menor, dos 37.896 habitantes do município, 29.017 se autodeclararam indígenas, o que corresponde a 76,57% da população.

Suspeitas de violência

Charles Maia da Silva, de 24 anos, do povo Yanomami (Foto: Arquivo da Família)

A família do técnico em enfermagem Charles da Silva suspeita que sua morte foi latrocínio (homicídio com objetivo de roubo). O pai do rapaz, Estanislau Figueiredo, professor e liderança Yanomami, relatou que, por volta das 4h da madrugada de segunda-feira (17 de fevereiro), o jovem passou em casa para pegar dinheiro, depois não apareceu mais.

“Eu falei a ele: ‘dorme, não sai mais’. Parece que pegou dinheiro e foi embora. Não quis me ouvir. Esperei 7h, 8h, 9h. Não voltou e nada. Acendi vela à noite e disse à minha filha ‘ele não tá vivo. Algo aconteceu com ele’”, contou, emocionado, Estanislau Figueiredo.

Irmão da vítima, Fabiano Maia da Silva disse que também causou desconfiança à família a roupa com que ele foi encontrado. “Quando saiu, ele estava usando tênis novo, calça e camiseta. Quando foi achado, estava só de cueca e camiseta”, disse.

Fabiano da Silva disse à reportagem que familiares e amigos divulgaram, no dia 18, a informação do desaparecimento do jovem nas redes sociais. A notícia da morte do rapaz chegou na quarta-feira (19), por volta das 6h, logo após  o corpo ter sido achado no rio, na orla da cidade.

Praia de São Gabriel da Cachoeira (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

Para a família da estudante Fátima de Jesus Correa Lima, ela foi vítima de violência contra a mulher. A última pessoa que esteve com a garota, antes do afogamento, foi um ex-namorado. O nome dele não foi revelado pela Polícia Civil e nem pela família, que conhece o rapaz. Segundo familiares da adolescente, ele não é indígena, tem 18 anos e não seria de São Gabriel da Cachoeira, mas está morando na cidade.

A reportagem não localizou o advogado do rapaz para comentar o caso.

À agência Amazônia Real, Raquel Correa Lima, 20 anos, irmã de Fátima, disse que a família acredita que a adolescente teria sido atacada pelo rapaz. Um dos motivos dessa desconfiança é que a menina, ao ser encontrada já sem vida, tinha um machucado no nariz. “Lá, quando a gente viu, o nariz dela estava quebrado, estava muito feio”, afirmou.

Raquel confirmou que o rapaz era um ex-namorado da adolescente. “Eu já vi ele cercando minha irmã (na boate), mas achei que era só amizade. Mas uma vez ela disse para meu irmão que estava namorando um tal rapaz (de mesmo nome do acusado). Ela não falava pra minha mãe que estava namorando, porque ela não ia aceitar. Ela era muito nova.”

A irmã da adolescente diz que uma testemunha teria visto o rapaz  agredindo Fátima. Essa informação não foi confirmada pela polícia. “Pelo relato das amigas, ela (Fátima) já se envolvia com ele. E ele andava ameaçando ela”, revela Raquel Lima.

O que diz a polícia?

Vista da praia de São Gabriel da Cachoeira (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

Segundo a delegada Grace Jardim, titular da Delegacia de Polícia Interativa de São Gabriel da Cachoeira, testemunhas disseram em depoimento que a adolescente Fátima não sabia nadar direito e antes se encontrar com o rapaz, na madrugada do dia 8 de fevereiro, estava com as amigas bebendo em uma boate. Depois foi tomar banho na beira do rio com as amigas.

“Na praia, ela [Fátima] encontrou um rapaz, com quem ela mantinha um relacionamento não contínuo, um ficante. Parece que ela não queria ficar mais com ele, mas resolveram conversar. Quando ele chegou, ela se afastou das amigas e foi com ele para trás de uma duna. Assim, as meninas não conseguiam ver o que estava acontecendo”, disse a delegada.

A policial revelou que pessoas viram o momento do afogamento da menina. “Depois o rapaz retorna e diz que a menina [Fátima] desapareceu e se afogou. Ele estava só de cueca, pois tinha entrado na água também. Só que, nesse horário, já tem pessoas transitando na praia, correndo e andando de lancha, voadeira. Algumas pessoas avistaram a menina se afogando”, disse a delegada.

De acordo com a policial, as pessoas que viram a cena da orla relataram uma situação de omissão de socorro quando Fátima se afogou e não de violência contra a mulher ou crime de feminicídio. “As pessoas que viram disseram que ele não a agrediu nem nada, mas disseram que podia ter salvo ela”, disse. “O laudo médico também não detectou indícios de agressões físicas”, completou Grace Jardim.

Um inquérito policial foi aberto para investigar o caso. “Está sendo apurado se houve homicídio culposo (sem intenção de matar)”, disse a delegada. “O rapaz foi ouvido em termos de declaração, mas não em autos de qualificação do interrogatório, porque ainda não temos indícios o bastante que nos levem a crer que ele é um homicida”, disse a titular da Delegacia da Polícia Civil de São Gabriel.

A delegada informou que outra testemunha será ouvida. “Uma testemunha ocular está no rio Içana [rio que faz parte da bacia do Alto Rio Negro]. Estamos aguardando a pessoa retornar à cidade para ser ouvida”, completou.

Sobre as investigações da morte do técnico de enfermagem Charles Maia da Silva, a delegada Grace Jardim disse que, por enquanto, não há indícios de latrocínio (roubo seguido de morte). Todas as pessoas que estiveram com o jovem no dia de sua morte, ocorrida provavelmente na madrugada de segunda-feira, estão sendo ouvidas. A delegada informou que o corpo não apresentava sinais de violência.

“Então, estamos investigando a morte do Charles sim. O corpo dele não tinha indícios de violência. Mas estamos ouvindo todas as pessoas que estiveram com ele no dia da morte dele. A morte ocorreu possivelmente na madrugada de segunda”, explicou. “Por enquanto, nenhum relato de testemunhas nos levou à linha de investigação de latrocínio”, completou a delegada.

Um suspeito que pode ajudar a esclarecer o caso envolvendo Charles foi detido na quarta-feira (19), por outros motivos. “Existe uma pessoa que foi presa por outro motivo que conhecia o Charles e tinha encontrado ele no domingo. Mas não podemos divulgar nomes, devido à nova legislação”, explicou a delegada Grace Jardim.

Segundo a família, Charles tinha deixado seu celular em casa. O aparelho foi entregue à Polícia Civil. Familiares também dizem que, nos arredores da casa onde eles moram, em São Gabriel da Cachoeira, há câmeras de segurança de lojas que podem ter filmado a movimentação de Charles, ajudando a esclarecer se ele estava acompanhado quando foi buscar dinheiro. “Vamos analisar todas as provas disponíveis, inclusive as câmeras”, informou a delegada.

A violência contra a mulher em São Gabriel da Cachoeira é alta. Em 2019, segundo a Polícia Civil, 62 inquéritos policiais foram remetidos à Justiça pela Delegacia Especializada em Crimes contra crianças, adolescentes, mulheres e idosos. Além disso, foram registrados 242 boletins de ocorrência.

Para a coordenadora do Departamento de Adolescentes e Jovens Indígenas, Adelina Dessana, 26 anos, não há dúvidas de que Fátima foi mais uma vítima de violência contra a mulher. “Em nenhum momento tivemos dúvidas, por isso agimos com a carta. Quando acontecem casos assim, nos sentimos fracos, mas tomamos a atitude de elaborar e tornar pública essa carta”, disse.

Mortes violentas

Manifestação contra a violação em São Gabriel (Fotos: Ray Baniwa/Foirn/2016)

A carta traz, entre outros dados, números do Mapa da Violência elaborado pela Secretaria-Geral da Presidência,  em 2014, que coloca São Gabriel da Cachoeira como a cidade com maior taxa de suicídios e homicídios por 100 mil habitantes no país. E aponta o crescimento da violência sexual contra crianças e adolescentes indígenas, impunidade, descontrole de venda de bebidas alcoólicas nos bares, falta de fiscalização do Conselho Tutelar e acompanhamento da Marinha nas praias e dos outros pontos de banhos do rio Negro.

“Diante destes fatos exigimos que os órgãos públicos nesta carta tomem providências emergenciais para combater o uso de drogas, álcool e violência no nosso município. Ressaltamos a necessidade imediata de fiscalizar a venda de bebidas alcóolicas para menores de idade, que vem levando a um cenário de total descontrole e abandono dos jovens na cidade, aumentando o índice de violência, sobretudo contra as mulheres indígenas”, finaliza a carta.

O que diz o Conselho Tutelar?

Praia de São Gabriel da Cachoeira (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

A reportagem da agência Amazônia Real procurou o Conselho Tutelar de São Gabriel da Cachoeira. Por telefone, a presidente da entidade, Dayana Franco, relatou que o conselho não foi acionado sobre a morte de Fátima de Jesus Correia Lima, mas que está acompanhando a situação.

“A gente só atua quando os direitos da criança e do adolescente são violados, quando somos acionados, e é muito triste ver essas coisas acontecendo. Seria muito bom se a gente pudesse se antecipar, mas essa não é a realidade. Desde a morte dessa jovem, já realizamos uma reunião e estamos programando outras. Vamos atuar na prevenção”, revelou a Dayana Franco, que é assistente social e indígena do povo Baré.

O Conselho Tutelar de São Gabriel da Cachoeira dispõe de cinco conselheiros, espaço físico e um carro. A assistência social e psicológica vem da Secretaria Municipal de Assistência Social, ligada à Prefeitura de São Gabriel da Cachoeira.

“Quando acontece alguma fiscalização ou ação em campo, o Conselho Tutelar só vai se for convocado e tiver a companhia da polícia militar, guarda municipal e outros órgãos, pois não andamos armados ou temos treinamento para lidar com situações de maior tensão”, explica Dayana Franco.

Os últimos passos dos jovens

Estanislau Figueiredo da Silva, pai Charles, no cemitério de São Gabriel (Foto: Ana Amélia Hamdan)

Os dois jovens encontrados mortos no rio Negro pertencem a famílias indígenas que deslocam há muitos anos das aldeias em busca de trabalho, tratamento de saúde e estudo na cidade de São Gabriel da Cachoeira.

A família de Charles Maia é da aldeia Maturacá, que fica na Terra Indígena Yanomami, localizada entre os estados do Amazonas e Roraima. Em São Gabriel da Cachoeira, os Yanomami contam com uma casa de apoio, mas alguns alugam quartos ou têm moradia própria. Eles se deslocam para a cidade em busca de trabalho, estudos, assistência médica, além de virem buscar seus benefícios e fazerem compras.

O pai do jovem, Estanislau Figueiredo, é liderança na comunidade Nossa Senhora de Fátima, que fica em território indígena, e contou que o filho foi o primeiro jovem Yanomami a ter curso técnico, formado em Manaus. Segundo ele, Charles Maia morava e trabalhava em Maturacá e estava em São Gabriel da Cachoeira de férias.

Estanislau Figueiredo contou que na noite do domingo (16) que antecedeu seu desaparecimento, o jovem saiu com uma irmã e outros familiares. Eles foram até a orla e fizeram um lanche. Por volta das 22h, Charles disse que iria se encontrar com colegas no final da praia, mas não se sabe quem eram essas pessoas. Depois, apareceu em casa apenas para pegar dinheiro na madrugada de segunda. Após isso, a família só teve notícias quando o corpo do jovem foi encontrado.

O sepultamento de Charles Maia foi realizado, sob comoção da comunidade, na tarde de quarta-feira (19), no cemitério municipal. Uma celebração foi realizada no local pelo bispo Dom Edson Damian. O pai do jovem queria levar o corpo do filho à aldeia Maturacá, para que fosse cremado, conforme costume dos Yanomami. Mas devido ao estado de decomposição do corpo, não foi possível fazer o traslado.

A estudante Fátima de Jesus Correia Lima era a caçula de quatro irmãos. Ela estava cursando o 7º ano do ensino fundamental na Escola Estadual Sagrada Família, em São Gabriel. Na tarde de terça-feira (18), a Amazônia Real visitou a casa onde ela morava no bairro Miguel Quirino, na periferia de São Gabriela da Cachoeira.

A família da etnia Tukano se deslocou da Terra Indígena Alto Rio Negro em busca de trabalho na cidade. Os pais da menina são a empregada doméstica Tânia Maria Cordeiro Correia e o auxiliar de serviços gerais Aglair Peixoto. Quem falou com a reportagem na casa foi a irmã mais velha, Raquel Lima.

Segundo a jovem, ela e Fátima estiveram em uma boate, no dia 7 de fevereiro. “A gente foi junto. Chegando lá, ela ficou um bom tempo comigo. Eu achei minhas colegas. E ela ficou com as amigas dela. Eu fiquei olhando. Ela começou a beber. Eu falei: ‘’Fátima, não bebe não. Não exagera’. Ela praticamente me ignorou. Quando eu ia falar com ela, ela fugia, ia para o banheiro. Aí também ignorei”, conta.

Raquel contou que depois viu quando o rapaz, suspeito de envolvimento na morte de Fátima, abordou sua irmã. “Vi quando ela foi ao banheiro, ele (o rapaz) foi atrás dela. Depois ele foi atrás dela de novo e não sei o que ele falou. Ela pegou e empurrou. Só fiquei olhando”, disse a jovem.

Depois da boate, um grupo de amigos foi para a praia. Fátima e Raquel também seguiram até a orla. Entretanto, Raquel voltou para casa antes da irmã mais nova. “Quando deu 6h, eu falei: ‘eu já vou’, para minhas colegas. Minhas colegas disseram ‘bora aproveitar carona. A gente te deixa lá’. Quando eu vi ela (Fátima) bem em pé, pedi para o cara (que deu a carona) parar. Eu disse: ‘bora aproveitar carona’. Ela fez assim. ‘não, depois eu vou’”, relata Raquel.

A irmã de Fátima disse que a adolescente não apareceu em casa no sábado (8 de fevereiro).  “Quando deu quatro horas da tarde no sábado, chegou um áudio no celular da minha colega. Ela me mostrou. Falava que tinha uma menina, de 14 anos, que estava tomando banho com um grupo de amigos e tinha morrido afogada. Mas não falaram ainda o total da história. Essa minha amiga falou: Raquel, não é sua irmã. Eu falei, não. Ela deve estar na casa de alguma amiga dela”, conta.

Raquel disse que ficou preocupada e que a família continuou estranhando a ausência de Fátima. Mesmo assim, à noite voltou para boate. No local, uma outra amiga voltou a dizer que a ela que a vítima do afogamento deveria ser sua irmã.

No domingo (9), Raquel acordou às 8h. “Acordei às 8h já com a notícia dizendo que era minha irmã. Fui no WhatsApp da pessoa que estava dando a notícia e pedi que dissesse as características dessa menina que morreu. Ele falou que ela tinha cabelo batendo na cintura. Eu perguntei a cor da roupa dela, para eu ter certeza. Foi quando ele falou que era um short e um ‘cropped’ (top) vermelho. Quando eu soube que era ela, no domingo, eu ainda falei ‘não pode ser’”, disse.

Ela então contou para os irmãos e, em seguida, falou com o pai, que foi à delegacia e registrou queixa do desaparecimento. A mãe da adolescente estava fora e só ficou sabendo que sua filha teria se afogado na tarde de domingo, tendo entrado em desespero. No final da tarde de domingo, o corpo de Fátima apareceu na outra ponta da praia.

“Chegou a notícia: ‘acharam o corpo da sua irmã’.  Eu vi a foto dela boiando. Parece que o mundo acabou”, desabafa Raquel. O enterro aconteceu na segunda-feira (10) de manhã, no mesmo cemitério em que foi sepultado o jovem Charles Maia Yanomami.

Praia de São Gabriel da Cachoeira (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

 

 

 

Fonte: https://amazoniareal.com.br/mortes-de-jovens-alertam-povos-indigenas-sobre-violencia-urbana-em-sao-gabriel-da-cachoeira/

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