Manaus (AM) – O Ministério Público Federal quer a exclusão de emendas parlamentares incluídas na Medida Provisória no. 820, a MP dos Refugiados, que agilizam o processo de licenciamento ambiental da obra da linha de transmissão de energia elétrica de Tucuruí. A obra deverá cruzar a terra indígena Waimiri-Atroari, que fica entre as cidades de Manaus (AM) e Boa Vista (RR). Da extensão de 750 quilômetros do linhão de Tucuruí, 122 km passarão no território tradicional, mas os indígenas não autorizaram a obra do Ministério de Minas e Energia.

Em nota técnica publicada nesta terça-feira (22) pela 6a. Câmara de Coordenação e Revisão – Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais (6CCR) do MPF, sete procuradores da República consideram as emendas um “contrabando legislativo”. Eles afirmam que as emendas são inconstitucionais e violam a independência entre os Poderes Legislativo e Executivo. Também contraria a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que prevê o direito de consulta aos povos indígenas. Outro fato é que o licenciamento da obra está suspenso pela Justiça Federal.

“Ao suprimir o direito de consulta e das minorias indígenas envolvidas, a proposta legislativa viola os princípios democrático, da igualdade e da auto-organização dos povos indígenas, previstos na Constituição Federal”, diz a nota do MPF.

As emendas parlamentares referentes ao Linhão do Tucuruí foram aprovadas, no dia 16 de maio, pela Comissão Mista da Medida Provisória no. 820, no Congresso Nacional. A MP não trata do abastecimento de energia elétrica, mas da ajuda humanitária aos refugiados da Venezuela em Roraima, daí ser chamada de “emendas jabutis” por ser diferente do objetivo da medida.

As “emendas jabutis” foram apresentadas no artigo 11 pelo relator da MP 820, deputado Jhonatan de Jesus (PRB-RR), e pelo deputado César Halum (PRB/TO). No artigo 11, as emendas alteraram a Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981, que trata do licenciamento ambiental de empreendimentos. Trazem no artigo 10 vários dispositivos com a “finalidade de estabelecer regras para a manifestação das autoridades envolvidas no âmbito do licenciamento ambiental, garantindo que as contribuições recebidas serão consideradas na decisão da autoridade licenciadora, justificando-se seu acolhimento ou rejeição”, diz o texto do relator, que descreve:

“Com as inovações trazidas à Lei nº 6.938, de 1981, possibilita-se o prosseguimento do processo de licenciamento ambiental da Linha de Transmissão (LT) 500 kV Manaus – Boa Vista e Subestações Associadas, que já conta com licença prévia emitida pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), mas tem esbarrado na falta de autorização da Funai para entrada de consultores na Terra Indígena com a finalidade de coletar dados para os estudos necessários à elaboração do Plano Básico Ambiental (PBA) indígena”, diz o texto do deputado Jhonatan.

O relator da MP 820 também descreve como a Funai deve proceder. “Para fins de licenciamento ambiental, a Funai deverá, quando couber, se manifestar sobre a autorização para a realização de estudos ambientais no interior de terra indígena no prazo de 30 (trinta) dias, a contar da data de apresentação do plano de trabalho pelo empreendedor. Parágrafo único. O descumprimento do prazo estabelecido no caput autoriza o empreendedor a realizar o estudo ambiental com o uso de dados secundários”, diz a emenda.

Com relação à opinião dos indígenas Waimiri-Atroari, o artigo 10-C diz o seguinte: “A consulta aos povos indígenas e tribais, quando aplicável, será realizada no prazo de 90 (noventa dias) após apresentação de todas as informações pelo empreendedor.”

Comissão Mista da MP 820/18, que aprovou “emendas jabutis” (Foto Agência Câmara)

Entre os parlamentares que aprovaram as “emendas jabutis” na MP dos Refugiados estão os senadores Romero Jucá, de Roraima, Eduardo Braga, do Amazonas (ex-ministro de Minas e Energia) e Jader Barbalho, do Pará, os três do MDB, apoiadores das obras do Linhão de Tucuruí, que é uma prioridade do governo do presidente Michel Temer.

Em 2017, o presidente repassou um aporte financeiro de R$ 26 milhões à Eletronorte, acionista do consórcio Transnorte Energia S.A. (TNE), responsável pela obra. O investimento foi realizado após a Alupar (uma holding de controle nacional privado com atuação no setor de energia no Brasil e nos demais países da América Latina) solicitar a saída do consórcio, do qual é acionista. A Eletronorte é subsidiária da Eletrobras, estatal que pode ser privatizada.

Genocídio e impactos socioambientais

Os índios Waimiri Atroari (Foto: Mário Vilela/Funai)

A reportagem da Amazônia Real procurou a Associação da Comunidade Waimiri-Atroari para que as lideranças comentassem sobre as recentes mudanças em relação ao licenciamento da obra do Linhão de Tucuruí. Mas, segundo a coordenação do programa Waimiri-Atroari, eles estão reclusos nas aldeias e não tomaram conhecimento ainda da manobra dos parlamentares na MP dos Refugiados.

Na última carta que a Associação divulgou, em 18 de abril, os Waimiri-Atoari informam que cancelaram uma reunião para discutir o Plano de Trabalho para a elaboração do Plano Básico Ambiental da obra do Linhão de Tucuruí em seu território, devido à mudança na presidência da Funai.

Antes, o então presidente da fundação general da reserva Franklimberg Ribeiro de Freitas se reuniu, em 15 de março, com as lideranças para discutir a autorização do estudo básico ambiental da obra na terra indígena Waimiri-Atoari. Mas com a pressão da bancada ruralista sobre projetos em terras indígenas, o governo exonerou o general da reserva Franklimberg Ribeiro de Freitas.

Na carta, os Waimiri-Atroari se mostravam desconfiados sobre a possibilidade de compromissos assumidos por Freitas em relação ao Protocolo de consultas ser honrado pelo novo presidente da Funai. Eles aguardariam uma visita do novo presidente da Funai, economista Wallace Moreira Bastos, às comunidades para tratar do assunto. Procurada, a Funai não se manifestou sobre as “emendas jabutis” na MP-820.

Os Waimiri-Atroari, que se autodenominam de Kinja, dizem ser contrários à obra do Linhão de Tucuruí porque são previstas as construções de 250 a 300 torres de energia, cada uma com mais de 40 metros e altura, o que pode levar impactar socioambientais às mais de 30 aldeias com as presenças de centenas de operários para dentro do território tradicional. A população indígena está crescendo, tendo uma população atual de 2.025 Kinja. Entre as décadas de 70 e 80, esse povo quase foi à extinção com a redução da população para 332 indígenas devido aos impactos de grandes empreendimentos como a rodovia BR-174 (Manaus/Boa Vista) e a hidrelétrica de Balbina, em presidente Figueiredo (AM).

Jovem indígena com o general Franklimberg e o líder Mario Paruwe, ambos de óculos (Foto: Priscilla Torres/Funai)

Em nota divulgada nesta terça-feira (22), a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) destacou os impactos provocados aos Waimiri-Atroari pela construção da BR-174, quando centenas de índios morreram nos anos 1960 e 1970, conforme analisou a Comissão Nacional da Verdade (CNV) sobre as violações aos indígenas durante o período da ditadura militar.

“São os planos governamentais que sistematicamente desencadeiam esbulho das terras indígenas. Hoje, certamente a nova invasão congrega diversos segmentos do capital, corporações internacionais e setores empresariais nacionais vinculados na área de energia, grandes empreendimentos, mineração e agronegócio”, diz a nota da Apib.

Mapa apresentado pelo povo Waimiri-Atroari indicando em vermelho os locais sagrados (Fonte: MPF)

Diante da pressão política contra o direito de consulta aos Waimiri-Atroari, o Ministério Público Federal entrou com petições, nos dias 18 e 21 de maio, na Justiça Federal para garantir o respeito aos direitos dos índios previstos na Convenção 169 e também a proteção de locais sagrados (a maior parte deles em função da ocorrência de mortes durante a abertura da BR-174), já mapeados pelos próprios indígenas.

O procurador da República Julio Araújo explica que as petições estão relacionadas à ação civil pública que garantiu o direito à consulta prévia no início do ano, mas que está com os efeitos suspensos devido a embargos conseguidos pelo governo federal. “Nós estamos pedindo que o governo federal faça a sinalização e garanta a proteção desses locais sagrados, muitos deles na beira rodovia”, afirma o procurador.

Outros dois pontos são importantes nas ações, segundo explica Julio Araújo. Em primeiro lugar, as obras devem depender de um consentimento dos Waimiri-Atroari e não apenas de uma consulta, ou seja, os índios teriam que autorizar a execução da obra. O outro ponto é revisão do decreto que homologou a Terra Indígena em 1989, que deixou a rodovia e faixa de domínio fora dos limites da reserva e tem servido da argumento em favor da obra.

Segundo o procurador, além de pedir reparações, com indenização de R$ 50 milhões, pelas violações cometidas durante a ditadura militar, a ação quer evitar que ações semelhantes do governo voltem a ocorrer. O procurador critica o argumento do governo de que a construção do Linhão ao longo da BR-174 não causará grandes impactos ambientais. “Estamos dizendo que o assédio às terras Waimiri-Atroari continua até hoje e estão se valendo da construção da estrada como elemento facilitador”, diz o procurador Júlio Araújo.

Apagões em Roraima

Deputado Jhonatan de Jesus (PRB-RR) (Foto: Roque de Sá/Agência Senado)

O deputado Jhonatan justificou no relatório a necessidade de interligar Roraima ao sistema nacional de energia elétrica, pois hoje o estado sofre com constantes cortes “apagões” na energia gerada termelétricas ou importada da Venezuela.

Mas para o Ministério Público Federal, as emendas jabuti são uma tentativa de “insistir nos equívocos e fomentar a discriminação contra os povos indígenas, que jamais foram responsáveis pelas falhas no projeto de construção do linhão Manaus-Boa Vista”. Além de não ser uma solução efetiva para o abastecimento energético de Roraima, as emendas também não servem para dar resposta à questão migratória e atendimento humanitário aos venezuelanos, de acordo com o Ministério Público Federal.

A nota técnica preparada pela Sexta Câmara, que trata de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais, destaca que a inclusão de emendas que não tem relação com o tema tratado em Medidas Provisórias já foi considerada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Ao incluir em uma MP, que tem tramitação rápida no Congresso, de emendas que não precisariam ser discutidas em regime de urgência, deputados ou senadores estariam burlando o processo legislativo.

O texto destaca ainda que a consulta prévia a comunidades tradicionais é garantida pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que já foi transformada em lei pelo governo brasileiro. Para o MPF, diante da nulidade do artigo 11, que afeta a legislação ambiental, “urge que o Congresso Nacional rejeite parcialmente a proposta, afastando qualquer tentativa de impactar na Política Nacional do Meio Ambiente e no Direito de Consulta da Convenção nº 169 da OIT”.

Um possível abate no Plenário

Senador Paulo Paim (PT-RS) conduzia a audiência da MP-820 (Foto: Roque de Sá/Agência Senado)

A MP 820, que dispõe da ajuda humanitária aos refugiados da Venezuela em Roraima, mas que incluiu as “emendas jabutis” para atender o licenciamento ambiental do Linhão de Tucuruí, foi aprovada pela Comissão Mista do Congresso e agora é um Projeto de Lei de Conversão (PLV). O projeto, no entanto, depende de votação nos Plenários do Senado e da Câmara até 15 de junho. Caso contrário perde a validade como legislação.

O senador Paulo Paim (PT-RS) é o presidente da Comissão Mista da MP 820. Procurado pela agência Amazônia Real, ele disse que as emendas que alteraram o licenciamento ambiental podem ser derrubadas no Plenário do Congresso.

“Há um entendimento de uma certa maioria para derrubar no Plenário os jabutis que foram colocados ali”, afirmou o senador. De acordo com ele, essas emendas acabaram passando, para permitir que o texto da MP-820 fosse aprovado na Comissão.

O relatório original apresentou um outro ponto desfavorável às comunidades indígenas de Roraima. O relator da MP 820, deputado Jhonatan de Jesus, em seu parecer, pretendia reduzir a área geográfica da Terra Indígena São Marcos, onde vivem mais de 5.800 pessoas.

Segundo a organização não-governamental Instituto Socioambiental (ISA), que atua junto aos povos indígenas, o objetivo da redução do território era criar um perímetro urbano para a sede do município de Pacaraima, que fica na fronteira com a Venezuela.

No entanto, este ponto da MP-820 foi suprimido do texto aprovado. As terras descritas pelo deputado Jhonatan já estavam excluídas quando a TI São Marcos foi homologada em 29 de outubro de 1991. “Essas terras foram destinadas à instalação do Pelotão de Fronteira do Exército”, diz o relatório aprovado pela Comissão.

Roraima faz pressão pelo linhão

Governadora Suely Campos em reunião na aldeia Waimiri-Atroari, em 2016 (Mário Vilela/Funai)

A MP-820 foi publicada em 16 de fevereiro, após o presidente Michel Temer fazer uma viagem às pressas a Roraima, para acalmar os políticos locais após um incidente envolvendo ministros e a governadora do estado, Suely Campos.

Os ministros, em passagem para o Suriname, haviam agendado uma reunião no Palácio do Governo, mas mudaram de ideia e decidiram que receberia a governadora na Base Aérea de Boa Vista. Com o cerimonial já pronto, Suely se recusou a ir ao encontro e prometeu aguardar os ministros no Palácio.

A desatenção ministerial causou mal-estar e o principal aliado de Temer em Roraima, senador Romero Jucá (MDB-RR) interviu. Temer ainda articulava a aprovação da Reforma da Previdência e corria o risco de ter até oito deputados contra ele, em uma possível votação na Câmara.

Além dos ministros terem encontrado tempo para visitar locais em Boa Vista onde puderam conhecer melhor o problema, o próprio presidente da República interrompeu o feriado de Carnaval para viajar ao extremo Norte do país. No encontro com políticos locais, recebeu um pacote de reivindicações. Além da ajuda para a questão dos venezuelanos, as reivindicações incluíam o Linhão de Tucuruí e a abertura da Rodovia BR 174 na Terra Indígena Waimiri-Atroari.

Fonte: http://amazoniareal.com.br/mpf-diz-que-emendas-do-linhao-de-tucurui-na-mp-dos-refugiados-sao-inconstitucionais/

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