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Moradores da reserva reclamam da falta de vacinas para pessoas mordidas por morcegos. Instituto Evandro Chagas confirmou morte de garoto por raiva humana (Comunidade Floresta da Resex Rio Unini (Foto cedida por: Steve McCool/ University of Montana à Amazônia Real)  

 

O Ministério Público Federal no Amazonas vai investigar a assistência de saúde prestada pelos órgãos públicos municipal e estadual aos moradores da Reserva Extrativista (Resex) Rio Unini, no município de Barcelos, que foram mordidos por morcegos hematófagos nas comunidades de Lago das Pedras, Patauá, Tapiira, Terra Novo e Vista Alegre, onde há registro de ataques do animal silvestre desde 2016.

No sábado (25), o Instituto Evandro Chagas, em Belém (PA), confirmou que o adolescente Lucas Castro da Silva, de 17 anos, morreu no dia 16 de novembro de encefalite viral (inflamação no cérebro) causada pelo Lyssavirus, que transmite a raiva humana.

Conforme publicado pela Amazônia Real, Levi Castro, pai do garoto, disse que o filho foi mordido ao menos dez vezes por morcegos. Ele não recebeu vacinação antirrábica humana após o ataque, assim como vários moradores da Comunidade Tapiiri, que fica dentro da Resex Rio Unini.

Levi Castro criticou a falta de assistência de saúde aos moradores da Resex Rio Unini. “Falei para o pessoal da Saúde fazer algo, os morcegos são transmissores de doenças. É muito difícil [a vacinação], é muito complicado. Quando acontece essas coisas [a doença], aí todo mundo se mobiliza”, disse Levi.

Sua filha, Miriã, de dez anos, está internada há dez dias com os mesmos sintomas de encefalite viral na UTI do hospital da Fundação de Medicina Tropical (FMT), em Manaus.

Segundo a Secretaria de Estado da Saúde (Susam), o quadro de saúde da menina é considerado gravíssimo. Ela está sendo submetida ao tratamento da encefalite viral pelo Protocolo de Miwaukee, indicado pelo Ministério da Saúde. O tratamento foi o responsável pelos três únicos casos de cura de raiva humana registrados no mundo, um deles em Recife (PE).

À reportagem, o MPF informou que irá instaurar procedimento de apuração esta semana para requisitar informações aos órgãos e entidades competentes no atendimento aos moradores da Resex Rio Unini.

De acordo com Associação dos Moradores do Resex Rio Unini (Amoru), 88 pessoas da Comunidade Tapiira foram mordidas por morcegos, algumas por mais de 20 vezes, este ano.

O presidente da associação, José Dionísio da Silva, 75, disse que em dezembro de 2016 pediu providências à Fundação de Vigilância em Saúde, ligada à Susam, para vacinar moradores mordidos e combater a grande quantidade de morcegos nas comunidades da reserva.

“Realmente eles [FVS] foram ainda em dezembro, mas apenas em duas comunidades, Lagos das Pedras e Patauá. Passaram rapidinho em Terra Nova. Disseram que não tinham combustível para as embarcações irem nas demais comunidades. Prometeram voltar em março ou abril deste ano, mas isso não aconteceu”, disse.

Rio Unini, afluente do Rio Negro, margeia as comunidades da Resex (Foto cedida por Débora Menezes à Amazônia Real)

Na última sexta-feira (24), Dionísio Silva disse que voltou a pedir que a FVS realizasse uma vacinação em massa nas pessoas mordidas por morcegos dentro das comunidades reserva. “Até onde sei, eles (as equipes da FVS) só foram na comunidade onde aconteceu os acidentes (ataques de morcegos)”, disse ele referindo-se à comunidade Tapiira.

Segundo José Dionísio, a Resex Rio Unini tem dez comunidades: Lago das Pedras, Terra Nova, Tapiira, Patauá, Manapana, Lago das Pombas, Floresta, Vista Alegre e Vila Nunes; e uma desativada, que é Democracia, hoje em atividade apenas como sítio (localidade). Ele estima que a população total seja de 280 famílias. O acesso às comunidades, que ficam em Barcelos, é por via fluvial em viagem de barco pelo Rio Negro, num trajeto de até 36 horas a partir de Manaus.

Neste sábado (25), ao receber a informação de que o laudo do Instituto Evandro Chagas confirmou a morte de Lucas Castro como raiva humana, José Dionísio da Silva reagiu indignado. “Do meu ponto de vista, posso até está errado, mas se tivesse sido feito um trabalho completo de vacinação quando foi feito o alerta, em 2016, talvez não tivesse acontecido o óbito do Lucas”, afirmou.

Outro paciente da Comunidade Tapiira, Claudemir Nunes de Souza, de 44 anos, continua internado no hospital da FTM. Ele contou à Amazônia Real que foi mordido por morcegos 18 vezes. No entanto, segundo a Susam, os exames descartaram a suspeita de raiva humana no paciente. Ele segue internado, em observação e sem apresentar sintomas de encefalite viral, diz o boletim divulgado no sábado (25).

Conforme o documento o qual a reportagem teve acesso, o Relatório de Viagem de Campo de 17 de outubro de 2016, a Gerência de Endemias da FVS fez um levantamento na Resex Rio Unini. Segundo o relatório, de janeiro a setembro do ano passado foram atacados por morcegos 25 moradores da Comunidades Lago das Pedras e 70 da Comunidade Tapiira. O relatório recomendou “a necessidade de soro vacinação antirrábica humana a todas as pessoas agredidas por morcegos e o monitoramento de novas agressões”. A recomendação não foi atendida pela FVS.

Ministério da Saúde diz que a raiva é uma grave doença infecciosa causada pelo vírus do gênero Lyssavirus, da família Rhabdoviridae, que leva ao óbito praticamente 100% dos pacientes contaminados. Desde o século 19, porém, já existe vacina contra a raiva, sendo ela bastante efetiva em impedir o avanço da doença, caso administrada em tempo hábil.

A doença é transmitida ao homem pela inoculação do vírus presente na saliva e secreções do animal infectado, principalmente pela mordedura, como cães, gatos e, nas áreas rurais, por morcegos e macacos. O vírus provoca a encefalite viral com sintomas como dor de cabeça intensa, vômitos e desconforto gastrointestinal. Para pessoa atacadas por animais infectados é recomendada aplicação da vacina antirrábica e o soro antirrábico, diz o MS.

A morte de Lucas Castro da Silva por raiva humana pode ser o primeiro caso de raiva humana transmitida por animal silvestre, no caso, por morcegos hematófagos, registrado no Amazonas. Antes, os registros com transmissão de raiva eram por cães e gatos. Nos Estados do Maranhão e Pará há notificações de casos de raiva por morcegos, conforme dados do Ministério da Saúde.

No Amazonas, o primeiro caso de raiva humana foi registrado em 1977 com a transmissão do vírus por cães e gatos infectados.  Veja o infográfico abaixo:

 

 

Após a morte de Lucas Castro da Silva, a Susam enviou equipes da FVS à Comunidade de Tapiira para realizar ações de vacinação antirrábica nas comunidades da Resex Rio Unini, que fica em Barcelos, norte do Amazonas.

Vizinha ao Parque Nacional do Jaú, a reserva foi criada em 2006 pelo governo federal. Com uma área de 850 mil hectares, a gestão da Resex Rio Unini é de responsabilidade do Instituto Chico Mendes da Conservação da Biodiversidade (ICMBio), ligado pelo Ministério do Meio Ambiente. Até o momento, o ICMBio não divulgou uma nota à imprensa sobre os ataques de morcegos ao moradores da reserva.

 

Pai relata ataques à filha

Comunidade Tapiira, banhada pelo Rio Unini (Foto de Rosângela Jesus/ Facebook da Resex Unini)

A menina Miriã Castro da Silva está em tratamento da encefalite viral desde o dia 22 de novembro pelo Protocolo de Miwaukee, indicado pelo Ministério da Saúde. O pai disse à Amazônia Real que a menina, mesmo dormindo com mosquiteiro, “amanhecia quase todos os dias encharcada de sangue devido às mordidas de morcego.”

“Foi horrível. Minha filha amanhecia amarela de tanta mordida. Foram mais de 20 (mordidas). Era no cotovelo, nas mãos, nos dedos dos pés. Em setembro a gente forrou o quarto. Os sintomas da doença demoraram. Eles surgiram na mesma semana que apareceram no Lucas”, disse Levi.

Um dos fundadores da Resex Rio Unini, Levi disse estar confiante na recuperação de Miriã, embora reconheça que as condições dela são delicadas.

“Estamos em busca de um milagre. Se for da vontade de Deus, que opere o milagre através desse medicamento. A minha confiança está em Deus, com medicamento ou sem medicamento. A vontade de Deus vai ser feita. Eu sou evangélico, meu Deus é Deus. Operando milagre ou não. Meu filho já está nos braços do Senhor. A menina está na UTI. Mas Deus não vai deixar de ser meu Deus por isso”, disse ele.

Levi Castro criticou o tratamento que foi prestado ao filho Lucas no hospital público Pronto-Socorro 28 de Agosto, na zona centro-sul de Manaus. Ele disse que o menino começou a sentir os sintomas da encefalite viral no dia 9 de novembro. “Ele foi mordido nos pés, não chegou a dez mordidas”, disse.

No dia 15, segundo Levi, o menino foi transferido de Barcelos para o Pronto-Socorro 28 de Agosto, em Manaus. “Lucas ficou das 10h até o final da tarde deitado em uma maca no corredor. Repeti para três médicos os mesmos sintomas do meu filho. Uma médica chegou a me dizer que ‘estava tudo sob controle’”, contou o pai do garoto.

“Foi muito sofrimento para o meu filho. Teve uma hora em que ele pediu para sair dali. Tudo incomodava ele, o barulho, a luz. Até que ele foi desfalecendo”, disse. O rapaz morreu às 20h30 do dia 16 de novembro.

 

O que diz a Susam?

A agência Amazônia Real questionou à Susam a respeito das declarações de Levi Castro da Silva referentes ao tratamento recebido por seu filho no Hospital 28 de Agosto, mas o órgão não respondeu até o momento.

Sobre às declarações do presidente da Amoru, José Dionísio da Silva, a Susam disse por meio de nota à imprensa “todas as ações de vacinação, humana ou animal, são da responsabilidade das 62 Secretarias Municipais de Saúde do Amazonas, que devem executar anualmente as campanhas de vacinação de cães e gatos em todas as comunidades de seu território e também os esquemas de sorovacinação de profilaxia da raiva humana em todas as pessoas agredidas por animais.”

Na nota, a Susam diz que a Fundação de Vigilância em Saúde (FVS) é responsável pelo abastecimento e manutenção dos estoques dos soros e vacinas, que são dispensados pela fundação de acordo com os pedidos dos municípios. “Este ano, o município de Barcelos foi atendido com quantidade suficiente de doses de vacina antirrábica para animais, vacina antirrábica para humanos e soro antirrábico, conforme sua solicitação.”

A Susam disse que, na última semana (após a morte de Lucas Castro), “quem esteve à frente da vacinação foram as secretarias municipais de Barcelos e Novo Airão.”

“Em apoio às equipes municipais, a FVS estará nas localidades de Manapana, Lago das Pombas, Floresta, Vista Alegre e Vila Nunes, localizadas rio acima de Tapiira, para apoiar ações de controle animal, ou seja, censo canino, vacinação de cães e gatos, captura de morcegos hematófagos para coleta de material para exame laboratorial e tratamento com pasta vampiricida para controle de população desses animais”, prometeu a Susam.

A secretaria disse ainda que “será realizado também o registro de pessoas agredidas, para que a Secretaria Municipal de Saúde de Barcelos realize a sorovacinação profilática. A previsão de conclusão deste trabalho é no dia 30 de novembro”.

Sobre o atendimento na Comunidade Tapiira, onde mora a família de Lucas Castro, a Susam disse que desde o dia 19 de novembro (domingo), “equipes de vigilância ambiental da FVS com experiência na prevenção e controle de eventos que envolvem morcegos chegaram à comunidade (Tapira) para diagnóstico situacional na área e ações de prevenção e juntaram-se a profissionais da Secretaria Municipal de Saúde de Novo Airão, em apoio a Barcelos.”

Também em nota oficial da Susam, a diretora-presidente da FVS no Amazonas em exercício, Rosemary Costa Pinto, disse que o reforço deve-se ao deslocamento dos comunitários de outras localidades em busca de atendimento em Tapiira. “A nossa primeira equipe solicitou que fossem enviadas mais 500 doses de vacina para tratamento antirrábico humano para Barcelos e 250 doses para Novo Airão, além de 60 doses de soro antirrábico para Barcelos”, diz.

Um estudo o Ministério da Saúde diz que ataques de morcegos hematófagos, que tomam o sangue de galinhas, cães, bois e do homem, são comuns nos moradores de comunidades ribeirinhas e nos garimpos da Amazônia. As medidas preventivas são, entre outras:

Impedir que os morcegos hematófagos entrem durante a noite nas casas, utilizando telas de arame ou de plástico nas janelas; manter uma luz acesa durante toda a noite, uma vez que os morcegos hematófagos evitam a luminosidade; dormir em rede e/ou cama com mosquiteiro (cortinado) para evitar que o morcego vampiro se aproxime das pessoas dormindo.

A Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde tem um manual com as normas de prevenção e tratamento da raiva humana denominado “Normas Técnicas de Profilaxia da Raiva Humana”. (Colaborou Kátia Brasil)

Comunidade Patauá na Resex Rio Unini (Foto cedida por Débora Menezes à Amazônia Real)

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