Por Vivianny Matos

 

“Txaju Petywu” é uma nova forma de contar as narrativas do povo indígena Awaete, mas por meio de um formato mais moderno: um podcast. É pela narrativa dos contos da criação e do fim dos mundos Awaete que o Pajé Timei aborda o atual momento pelo qual o mundo inteiro passa: a pandemia do coronavírus e a crise mundial. Em cinco episódios, a série mostra não apenas a trajetória do povo Asurini, mas também os desafios presentes e futuros de sua construção social e cultural.

A partir da cosmovisão da etnia Awaete-Asurini do Xingu, no Pará, de recente contato e impactado pelo etnocídio da construção da hidrelétrica Belo Monte e dos maiores desmatamentos do mundo, o podcast Janeraka estreou em setembro e já entra em seu quarto episódio. Ele só se tornou possível ao ser contemplado em edital do “Center of Applied Human Rights”, um programa da Universidade de York (Inglaterra) que financia projetos que juntam ativismo e arte em resposta à Covid-19, no âmbito dos direitos humanos.

“A oralidade é uma linguagem que toca e se conecta com nosso coração Awaete. O objetivo do projeto ‘Agenda Awaete’ sempre foi a troca de saberes e práticas entre povos buscando pontos de conexões em comum”, explica Timei à Amazônia Real. Essa troca de conhecimentos passa por outros povos e também pelos não-indígenas, sempre respeitando o lugar de fala, e busca dar autonomia e protagonismo para o seu povo. “É fundamental encontrarmos metodologias e linguagens em comum. O podcast sempre esteve entre as ferramentas que almejávamos ter mais contato.” Leia a seguir a entrevista com o pajé.

Timei Assurini (Foto: Arquivo pessoal)

Amazônia Real – Como surgiu a ideia de fazer um podcast?

Pajé Timei – Desde o início do projeto “Agenda Awaete – Troca de Saberes e Práticas dos Povos das Águas Terras e Florestas”, cocriado por mim e minha família Marytykwawara em parceria com a produtora cultural Carla Romano, a facilitação de conteúdo sempre esteve como uma busca constante. O estudo de diversas linguagens faz parte desse processo, uma vez que conseguimos ampliar a mensagem para que cada vez mais corações e mentes consigam se conectar com a essência de compartilhamento. A oralidade é a base das metodologias de construção e transmissão de saberes dos povos originários e o podcast é uma ferramenta que dialoga e valoriza essa prática. A gravação de áudio foi uma forma de aproximação com os não-indígenas que apesar da desconfiança ficavam encantados com a tecnologia. Mesmo anciões têm muita alegria quando escutam as gravações de antigamente, revivendo a memória do tempo e dos parentes que se foram. Porém, devido à falta de humildade e empatia no contato, esses materiais até hoje têm gerado brigas e processos por parte dos povos por apropriação e uso indevido. Por isso, a importância do reconhecimento do lugar de fala, protagonismo e troca justa e horizontal entre os povos, seus conhecimentos e práticas.

Amazônia Real – Como foi o início do projeto?

Timei – Como nosso trabalho tem como base o voluntariado, a participação das pessoas, da rede e as oportunidades associadas à urgência das demandas, somente a partir de sermos apresentados por uma amiga que também estava voluntariando à Urutau (@vrvtvv), travesti, artista sonora e audiovisual que também é esta à frente na luta contra o preconceito, encontramos uma boa oportunidade de se conectar com alguém com conhecimento e empatia para aplicar nossos saberes. Assim saiu nosso podcast. O primeiro episódio “Retomada Awaete” é um tema muito recorrente em diálogo com a comunidade que ainda busca digerir as violências contínuas do contato. O trocadilho Assurini e Awaete já traz essa reflexão uma vez que apesar de sermos conhecidos como Assurini do Xingu, apelido dado por povos vizinhos, nossa autodenominação é Awaete, gente de verdade. Iniciamos com Urutau esse diálogo de entendimento da nossa narrativa Awaete com o formato podcast a partir de uma linguagem que todos se entendam. Fizemos o episódio bilíngue pensando nesse processo de reflexão. E assim mais amadurecidos como equipe e no contato com a ferramenta outra amiga rede falou sobre o edital e se ofereceu para nos inscrever e apoiar na tradução e mediação. Esperamos que aconteça mais oportunidade de diálogo e apoio como essa pois está sendo muito importante para nós e buscamos melhorar cada vez mais. Este é um trabalho de cocriação e mediação de línguas feito por mim Timei Assurini, Carla Romano e Urutau. Além de ter contado com o apoia da parceira  Júlia Chacur que achou o edital e ajudou a escrever e da parceira advogada Poliana Alves que nos orientou quanto ao nosso direito de isenção de composto para os povos indígenas o que tem redirecionado muitos recursos retidos em editais. É muito importante reforçar essa parceria pois buscamos reescrever a história reconhecendo a importância da união de diversas mentes e culturas com horizontalidade. Tanto o indígena como o não indígena tem seu papel, não precisamos competir e dividir é preciso aprender a somar e multiplicar.

Amazônia Real – A experiência está sendo boa?

Timei – Está sendo uma experiência de aprendizado de como funciona essa linguagem, suas tecnologias e equipamentos em meio a uma pandemia. Lidar com gravador, cartão de memória, computador e o meu tempo, da minha comunidade e do Iarakyga (não indígena). O confinamento, a conciliação da logística entre a cidade, a aldeia e parte da equipe que estavam distantes geograficamente, o acúmulo com outros editais. A gente gosta muito da internet e da oportunidade de diálogo com quem não pode estar junto fisicamente. Porém, principalmente para iniciar o estudo de uma tecnologia e linguagem, estar perto ajudaria muito, principalmente por conta da nossa desconfiança em relação a essas gravações desde sempre.

Pintural corporal, saberes ancestrais: Foto de Vivianny Matos/Amazônia Real)

Amazônia Real – Por quê?

Timei – Numa das histórias que os velhos contam, os pesquisadores estavam gravando o canto deles sem que tivessem conhecimento do que estava acontecendo. Eles não tinham consentimento nem deles nem dos espíritos. Um dos Pajés foi reclamar que tinham prendido a alma dele na gravação e que isso podia ser fatal para um pajé. Assim, ele se aproximou do gravador e soprou o tabaco apagando imediatamente a gravação. Existe uma relação muito íntima com essas vibrações. A voz, o canto, a língua e as histórias carregam isso. Essa experiência de aprendizado tem ido até além da questão tecnológica, mas o próprio revisitar da história traz outras perspectivas pelas narrativas. Quando você vai narrar algo que conhece, que passou, revisita essa história e, a partir desse revisitar, você revive. E com isso você tem outras experiências. Como um jovem Pajé pode falar de fundamentos sagrados como a criação do mundo? Falando sobre o nosso bem-viver, eu que cresci e continuo vivendo em meio ao etnocídio. Vivendo uma pandemia que achei nunca fosse viver para ver. Narrando a história do Uajare que fala justamente de uma das vezes que o mundo acabou para o meu povo justamente por não estar seguindo os ensinamentos para o equilíbrio do mundo como Maira ensinou a cultura do nosso bem-viver. E essa responsabilidade de como um jovem Pajé, um jovem ativista ter que aprender a lidar com essa mediação de mundos para poder pensar como o Awaete vai ser daqui pra frente. Esses episódios também serviram como facilitação de formação e amadurecimento minha e dos parceiros. Muita gente doente e isso mexe muito espiritualmente e emocionalmente com todos, mas principalmente comigo que sou Pajé. E tudo isso juntou o sentimento das memórias do meu povo, o que nós continuamos passando com o etnocídio e agora a pandemia, muitos parentes de outros povos morrendo.

Amazônia Real – Qual é o retorno de quem escuta?

Timei – A cada episódio, a cada compartilhamento, os retornos vão se tornando mais profundos, onde as pessoas vão passando por ciclos de conexão com o sentido de nossas histórias e nossa essência.

Amazônia Real – Como foi a escolha dos temas dos episódios?

Timei – O processo de escolha dos temas foi a partir de tópicos de informações e  experiências que consideramos importante ser trocadas para iniciarmos um diálogo e nos conhecermos a nós mesmos e aos demais povos. Gostaríamos muito de fazer outros desses com a participação de vários outros povos, culturas e visões diferentes nessa grande floresta da diversidade que é nosso planeta. Para iniciar o contato, acreditamos na importância de falarmos de como vemos o mundo e como acreditamos ter sido criado. Assim a história de Maira, entra como um início desse diálogo e desse encontro. Como uma forma de saudar e reconhecer esse mundo. Eu vejo o mundo assim e você? Tá ele criou o mundo, mas o que tem nele? Como vivem nele? Como esse mundo se relaciona? E assim, na sequência, vem o episódio sobre o Bem-viver Awaete que fala sobre o modo como nosso povo foi ensinado por Maira a viver nesse mundo. Mas esse mundo também não é finito. Se você não cuidar dele, ele também pode acabar e em algum momento se reiniciar. Porque o mundo acaba para o povo e não para o mundo, principalmente para quem não o respeita. É interessante que mesmo eu e nosso povo estarmos passando por vários momentos de transformações em que nos vemos tendo atitudes contrárias em relação a nossos princípios vejo esse episódio como um dos mais significativos para se refletir sobre as consequências das escolhas para o povo, pois podemos aprender com a experiência do Uajaré. Mas está muito difícil resistir a tanto assédios e interferências. Essa história traz fundamentos que precisamos retomar e fortalecer principalmente depois de tudo que aprendi nesses anos entre a cidade e a aldeia, sobre os hábitos da cultura Karai que estamos reproduzindo em nossa comunidade sem termos conhecimento necessário para refletir nas consequências. E com esse Covid num mundo em que ninguém está respeitando nada, o mundo pode reiniciar pra muita gente.

Timei Assurini com crianças e jovens em Belém (Foto: Arquivo pessoal)

Amazônia Real – Quando?

Timei – Desde o início da nossa jornada, o que muito nos uniu a Carla Romano, é esse objetivo de ressignificar o contato a partir de análises e reflexões. Olhar para esse contato como uma oportunidade de união planetária. Você vê, estou aqui fazendo uma narrativa da história que meus antepassados viveram e o que eu e meu povo viemos hoje na linguagem oral. Contando essa história para mim, paro o meu povo e para outros povos que vemos a importância de nos relacionarmos principalmente para conseguirmos digerir esses constantes contatos nocivos que temos pelo assédio em nosso território. Além de ter sido muito importante perceber que Iarakyga não é tudo igual. Tem os que querem Belo Monte e desmatamento, mas tem os que não querem isso e estão buscando fazer sua parte pelo planeta e pelos povos indígenas.  Quais as espécies da floresta nós vamos nos relacionar e como? E depois de todos esses acontecimentos, a gente, meio dormente, se pergunta: como será o futuro Awaete? Qual nossa expectativa? E assim fechamos com um canto sagrado como faixa-bônus. Os cantos são umas das principais ferramentas de mediação energética espiritual do nosso povo e de muitos outros pelo mundo. Eles são uma tecnologia milenar de conexão energética.

Amazônia Real – Quando será lançado o quarto episódio e qual será a temática?

Timei – A previsão de lançamento é para 18 de novembro, quarta. Ele fala sobre a história de contato entre os Awaete e os não-indígenas que se deu a partir do sonho de um poderoso pajé, tio da minha mãe. Ele acreditou na importância da união entre os povos para a sobrevivência de todos e de como esse sonho virou pesadelo pela diversidade de “Iarakyngas” (não indígenas) que foram chegando. É um episódio que fala da importância da empatia, da responsabilidade, da informação e da consciência no contato com outra vida. Não só ancestral, mas com todos porque cada conexão é uma oportunidade de fazer a diferença na vida para fortalecer ou destruir. Nele falamos como mesmo vidas de origens diferentes podem se conectar para fazer a diferença a partir de troca de saberes e práticas. Assim como a floresta nos ensina, a diversidade não deve ser vista como uma ameaça e sim como oportunidade e fortalecimento.

Amazônia Real – Como foi ser selecionado por um edital internacional?

Timei – Está sendo muito importante para nós ter o trabalho valorizado e apoiado num edital internacional de arte-ativismo de direitos humanos, principalmente porque esses são temas pertinentes de nosso projeto e nós, Awaete, estamos no Médio Xingu ameaçados por crimes contra humanidade provocados por Transamazônica, Belo Monte, mineradoras e faz tempo o maior desmatamento do mundo. Fico feliz com o reconhecimento da força de nosso trabalho coletivo, afinal este prêmio também está longe de ser somente para um indígena. Nesses quase seis anos de ativismo direto, só cheguei até aqui porque tive apoio incansável de minha companheira Carla Romano e de uma rede significativa de conexões de vários povos e culturas e esse prêmio recebemos juntos.

Timei em conversas com crianças em Belém (Foto Vivianny Matos/Amazônia Real)

Para ouvir os podcasts acesse:  https://anchor.fm/janeraka

Para saber mais sobre os projetos acesse:

janeraka.org

agendaawaete.org

Contatos: info@janeraka.org / (91) 999210426

Para doações:

Paypal: info@janeraka.org

Instituto Janeraka Fortalecimento da Cultura Tradicional Awaete Assurini do Xingu Troca de Saberes Praticas com Povos das Aguas Terras e Floresta

Cnpj: 35069094/0001-30

Banco: 290 – PagSeguro Internet S.A.

Ag: 0001

C/C: 11650814-4

 

 

Fonte: https://amazoniareal.com.br/paje-timei-produz-podcast-com-narrativas-awaete-de-recente-contato/

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