Rio Branco (AC) – Um levantamento da Comissão Pró-Índio (CPI) do Acre aponta que a pandemia do novo coronavírus atinge oito povos indígenas que moram nas áreas urbanas dos municípios e nos territórios do estado. Até o momento não houve registros da doença entre os povos isolados, que vivem distantes voluntariamente da sociedade nacional. Em 2014, um grupo identificado como “povo do rio Xinane”, pertencente ao tronco linguístico Pano, fez contato com indígenas Ashaninka, na fronteira do Brasil com o Peru.

Os casos confirmados de Covid-19 entre os indígenas Huni Kuin da Terra Indígena Kaxinawá do rio Humaitá, no município de Feijó, acenderam o alerta das lideranças indígenas para a disseminação da doença na reserva Kampa e Isolados do Rio Envira. 

No total, 659 indígenas foram diagnosticados com coronavírus no estado do Acre, que também registrou 22 mortos, até o momento. Além dos Huni Kuin, os povos mais atingidos são Puyanawa, Jaminawa, Manxineru, Madijá/Kulina, Shadawãdawa Arara, Shanenawa e Yawanawa, segundo o levantamento da Comisão Pró-Índio publicado no dia 14 de julho.

No município de Santa Rosa do Purus, 125 indígenas testaram positivo para coronavírus. Em Tarauacá, foram 59 casos. Nesta região, as terras indígenas do Igarapé do Caucho são as mais afetadas pela pandemia. São 97 Huni Kui Kaxinawá contaminados pelo vírus, afirma o estudo da Comissão Pró-Índio.

Há algumas semanas, a indígena Kayá Lima, da etnia Shawãdawa Arara, perdeu o seu tio, Jorge Amado. Ele dedicou parte da sua vida a cuidar da saúde do seu povo e trabalhava do Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) Alto Juruá.

Jorge Amado

“Meu tio trabalhou no Dsei em Cruzeiro do Sul muitos anos e era muito conhecido e amado por todos. Perder o meu tio foi muito doloroso, muito sofrimento. Até hoje quando lembro, eu choro. Até agora a ficha não caiu. Foi muito triste porque ele era uma pessoa muito querida por nós. Ele era como um pai”, disse Kayá.

Ela disse que saiu da sua comunidade, Foz do Nilo, em Porto Walter, com 12 anos de idade, para morar na capital acreana. Mesmo assim, ela visita os mais de 700 familiares com frequência. Com a pandemia, as visitas foram suspensas e Kayá recebe informações da comunidade apenas por telefone.

“Não podemos entrar lá, e quem está lá, não está podendo sair. Só uma vez por semana. Só tenho contato através do telefone, mas pretendo voltar na aldeia após a pandemia”, relata.

Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), do Ministério da Saúde, informa que atende 18.208 indígenas de 14 etnias e de 162 aldeias pelo Dsei Alto Juruá, no Acre. O boletim epidemiológico desta segunda-feira (20) do órgão diz que foram registrados 284 casos confirmados de Covid e seis mortes. Outras 95 pessoas estão em tratamento com a infecção do vírus e 186 foram curadas. Procurado para falar sobre a situação da pandemia entre os indígenas, o Dsei Alto Juruá não respondeu as perguntas da reportagem.

Huni Kuin monitoram isolados

Contato dos isolados do Xinane em 2014 (Foto Funai)

Para evitar que o coronavírus chegue aos indígenas isolados, os Huni Kuin fazem uma barreira no rio Humaitá como prevenção, além de praticarem o distanciamento social entre as comunidades localizadas nos municípios de Feijó e Tarauacá. O acesso as aldeias é por viagem de até cinco dias de barco dos centros urbanos, mas o deslocamento está proibido no momento.

O assessor técnico e geógrafo da CPI-Acre, José Franck, afirma que a preocupação com relação ao avanço da doença entre os povos indígenas aumenta diariamente. Segundo ele, o povo Huni Kuin do Humaitá está realizando o monitoramento e ações coordenadas para proteção territorial dos indígenas isolados.

“Esse acompanhamento dos Huni Kuin é essencialmente estratégico para evitar que os isolados se aproximem de suas aldeias para levar utensílios domésticos e outros materiais. Os Huni Kuin do Humaitá têm uma casa de monitoramento nas cabeceiras do rio Humaitá, onde eles plantaram roçados diversificados para que os isolados utilizem. Essa foi uma das formas que os Huni Kuin do Humaitá planejaram para que evitar a aproximação e ao mesmo tempo manter boa convivência com seus parentes isolados”, disse Franck.

Ele explica que o monitoramento dos isolados é feito através de sinais deixados na mata. “Os Huni Kuin do Humaitá conhecem seus sinais na mata (rastros e outros vestígios de sua presença), mas não há contato. E a preocupação das lideranças é exatamente não fazer contato com seus “parentes isolados”, para preservar a integridade física e manter a saúde dos isolados”, afirma o assessor da CPI-Acre.

Lockdown no Rio Gregório deu certo

Os Yawanawá construíram uma cerca para impedir o tráfego de barcos
(Foto reprodução Facebook de Leandro Altheman Lopes)

povo Yawanawá das aldeias Sagrada e Nova Esperança, localizadas no município de Tarauacá, até o momento não foram infectados pelo vírus. Logo no início da pandemia, os indígenas decidiram fechar o limite do Rio Gregório, que dá acesso às aldeias, com troncos de árvores para evitar a entrada e saída de visitantes.

Apesar da preocupação com o avanço da doença entre os povos indígenas, o líder das aldeias, Biraci Yawanawá conta que seus familiares estão se protegendo da doença usando sua medicina tradicional.

“Por aqui na aldeia estamos bem. No final do mês passado, apareceu uma gripe muito estranha nas aldeias, algumas pessoas tiveram febre. Não estou dizendo que estávamos com a Covid-19, mas era uma gripe muito forte. Nós recorremos a nossas medicinas e fizemos chá para todo mundo. E até agora, estamos 100% bem, ninguém com nenhum sintoma”.

E acrescenta: “Estamos firmes no isolamento durante todo esse tempo. Quando precisamos sair, seguimos todas as orientações da Saúde. Todo o material que entra nas aldeias é higienizado.

Genocídio dos povos indígenas

Indígenas organizam ações na pandemia do coronavírus no Acre
(Foto cedida pela CPI Pró-Índio)

O avanço da doença entre os povos indígenas no Acre tem preocupado ativistas e lideranças tradicionais. A coordenadora Executiva da Comissão Pró-Índio (CPI) do Acre, Vera Olinda Sena, fala da preocupação com os indígenas, sobretudo devido à vulnerabilidade e o modo de vida tradicional desses povos.

“O avanço da doença é bastante preocupante porque esses povos têm modos de vida que os deixam mais vulneráveis. São modos de vida de muito compartilhamento, tem um histórico mais frágil para essas doenças infecto-respiratórias. Esse avanço preocupa muito, porque na verdade, não tem medidas concretas e permanentes, que atendam a saúde desses povos. Nesse contexto de pandemia, em que o contágio é muito acelerado e o vírus desconhecido, tudo vai contra as tradições e modo de vida desses povos”.

Vera Olinda acredita que, apesar dos avanços conquistados, ainda é preciso implantar políticas públicas que, de fato, atendam às comunidades desde o atendimento primário de saúde até a divulgação de informações sobre a Covid-19. Alimentos, testes, atendimento médico adequado e água potável precisam chegar nas aldeias.

“Se determinada terra indígena está em uma situação de insegurança alimentar, isso tem que ser resolvido. Tem que chegar alimentação adequada para a imunidade desses povos e para colaborar de fato com o isolamento e distanciamento social deles. Aonde tem terras com casos confirmados, precisa chegar testes, monitoramento e atendimento adequado”.

Ela destaca que o cenário em um futuro próximo, se não houver uma ação séria e rigorosa do Estado para proteger os povos indígenas, pode ser um genocídio. “Não estamos falando de 200 milhões de brasileiros. Estamos falando de povos que têm cinco mil pessoas, 20 mil pessoas, estamos falando de povos que tem 100 pessoas. E se essa população for atingida pela doença, é evidente que o futuro desses povos pode se acabar. Como essa doença atinge os mais vulneráveis, esses que estão morrendo estão levando conhecimentos inteiros, culturas, tradições, memórias, histórias”.

A coordenadora da Comissão Pró-Índio desabafa e afirma que, tão ameaçadora quanto a Covid-19, é a postura do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), em “declarar sua intenção de acelerar esse genocídio”, diz ela sobre os 16 vetos do presidente a Lei 14.021, que prevê medidas de proteção para comunidades indígenas durante a pandemia de coronavírus.

Entre os vetos estão o que obrigava o governo federal a fornecer acesso a água potável, materiais de higiene, leitos hospitalares e respiradores mecânicos aos povos indígenas brasileiros.

“Faltam ações estruturadas e permanentes de atendimento à saúde básica, falta valorização dos conhecimentos tradicionais, falta respeito aos modos de vida. É muito sério o que a gente está vendo em termos de ameaça do futuro desses povos, a partir desse contexto da pandemia. O acesso à água potável, por exemplo, além de ser um direito é um dos pontos importantes porque é um elemento de saúde preventiva. Se você não tem acesso a água potável, as pessoas ficam mais vulneráveis e doentes”, afirma Vera Olinda Sena.

No mesmo dia em que Bolsonaro vetou os 16 dispositivos na legislação de medidas de proteção aos indígenas, o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou que o governo federal adote uma série de medidas para conter o contágio e a mortalidade por Covid-19 na população indígena.

A decisão foi tomada em ação apresentada pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e por seis partidos políticos (PSB, PSOL, PCdoB, Rede, PT, PDT). Na ação, eles apontam a omissão do governo federal no combate à pandemia entre os indígenas.

O que diz o governo estadual

Indígenas organizam entrega de alimentos na pandemia do coronavírus no Acre
(Foto cedida pela CPI Pró-Índio)

No estado do Acre, o novo coronavírus já infectou 17.462 pessoas. São 465 mortes, segundo o boletim epidemiológico divulgado nesta segunda-feira (20) pela Secretaria de Estado de Saúde (Sesacre).

O governo do estado afirma que a curva epidemiológica “encontra-se estável”. A afirmação é do secretário de Saúde, Alysson Bestene. Ele explica que o número de casos positivos é devido a capacidade de testagem do Estado, apenas 300 exames diários.

“Estamos trabalhando para acelerar nossa capacidade de processamento de testes nos próximos dias, no qual vamos dobrar a testagem. Isso significa que vamos ter um aumento nos números de casos, mas isso é bom, pois permite que identificamos novos focos da doença e isolá-los a tempo, minimizando o impacto das formas graves da covid-19 e a sobrecargas nos hospitais”.

Desde o início da pandemia, o Estado investiu mais de R$ 32 milhões de recursos próprios nas ações de enfrentamento à Covid-19. O Acre também recebeu mais de R$ 68 milhões de repasses federais para compra de medicamentos e equipamentos. Com relação aos indígenas que vivem nas áreas urbanas, o governo disse que distribuiu cestas básicas.

No início da gestão, o governador Gledson Cameli (PP) extinguiu a Secretaria Indígena. Hoje, apenas uma técnica em referência para assuntos indígenas atua em um departamento da Secretaria de Estado de Assistência Social, Direitos Humanos e Mulheres. A profissional atua na orientação dos municípios a acompanhar as famílias indígenas da zona rural. O secretário de Saúde, Alysson Bestene, disse que “algumas famílias em Rio Branco foram contempladas com cestas básicas, e a orientação é que os municípios distribuam as que receberam, por meio da live solidária para as famílias indígenas”.

“Quanto às aldeias, a orientação é que somente a Funai, juntamente com a saúde indígena, faça essa abordagem. Em se tratando de casos confirmados de Covid-19 e óbitos pela doença, o Estado acompanha, por meio dos registros no Sistema de Informação, e todos são registrados no boletim epidemiológico. Igualmente a distribuição de cestas básicas, a orientação é que os indígenas que moram em aldeias sejam acompanhados pela Funai/Funasa, por meio dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (Dsei) de cada regional do Estado”, disse Bestene.


Os indígenas denominados pela Funai como o povo do Rio Xinane em contatado em 2014 (Foto: Funai)

 

 

Fonte: https://amazoniareal.com.br/pandemia-avanca-e-atinge-oito-povos-indigenas-no-acre/

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