Quase nunca nos damos conta da geograficidade imanente à nossa existência. Entretanto, é por meio da Geograficidade que se sabe quase tudo acerca da Pandemia Covid-19.

Por muitos anos se falou da geografia como uma disciplina enfadonha e decorativa, sem lugar fora das salas de aula. Mesmo após a ebulição teórica que foi o movimento da Geografia Crítica, foi esta a visão, a de uma Geografia que não teoriza, apenas descreve, a que prevaleceu na recente reforma educacional brasileira, que estabeleceu os BNCC (Base Nacional Comum Curricular), onde praticamente a importância desta disciplina encontra-se reduzida ao mapa e a geograficidade é tratada como raciocínio geográfico e/ou mero jogo de localizações. Mas a Geografia contemporânea e sua multiplicidade teórica e metodológica lhe permitem ir muito além desta visão simplista, em quem o geográfico se reduz ao mapa e seu ensino.

Isto porque a Pandemia permite observar claramente os diversos cortes que fraturam a sociedade e as múltiplas espacialidades dos sujeitos que não apenas jogam, mas lutam pela vida. Assim, enquanto alguns aparecem defendendo a continuidade de um sistema esquizofrênico no qual a solidariedade é reduzida a ações de caridade, outros estão, efetivamente, utilizando a pandemia para refetir sobre nossa vulnerabilidade de espécie. Além disso, a pandemia do Coronavírus evidencia a quebra final de paradigmas, já que tem o potencial catastrófico das grandes epidemias históricass, como a gripe espanhola (sec. XX) ou a peste bulbônica (sec. XIII) e a tuberculose (século XIX).

Particularmente, observa-se que as determinações territoriais, a que o geógrafo Milton Santos chamava de formações socioespaciais, nos permite considerar a posição dos sujeitos no interior da geometria social (para utilizar o termo de Massey) de uma dada sociedade. Assim, por exemplo, fatores como a precarização territorial contemporânea, o direito diferenciado à cidade ou ainda as diferenças ambientais cidade x campo estabelecem condições diferenciais para a propagação do virus, ao mesmo tempo em que demonstram com gravidade e acidez a vulnerabilidade destes grupos, factualmente vulnerabilizados pela precarização de seuss espaços de vida, ausência de condições sanitárias e alimentares mínimas. Poder-se-ia ainda abordar a vulnerabilidade dos povos indígenas, diante de uma pandemia tão grave.

Embora a Geografia tenha sua identidade associada ao registro cartográfico, o mapa deve ser tomado como um meio para demonstrar a geografia concreta ou imaginária de um fenômeno pensado ou vivido. O mapa é sempre uma representação da realidade e, portanto, fruto da inteligência geográfica que consiste na apreensão, recorte e universalização de um mundo que, no entanto, é sempre pessoal e subjetivo, é sempre uma percepção do mundo. Entrada para as chamada geografia fenomenológica e ambiental, a percepção, para os geógrafos, é um conceito elástico que permite como observar como um mesmo fenômeno pode ser compreendido de múltiplas formas, por diferentes sujeitos. Caso do próprio território, que pode ser apreendido de distintas maneiras conforme o grau de intimidade e envolvimento com ele. Seria possível mesmo afirmar que, quanto maior o des-envolvimento, menor a relação de intimidade com o território. Quantas pessoas na megalópole paulistana conseguem pisar um pedaço de chão sem asfalto?

O mapa é, deste modo, apenas o local onde os geógrafos registram a ocorrência de determinados fenômenos de maneira didática. Sua existência no mapa, contudo, está – ou deveria estar – atrelado a sua existência (ou possibilidade de existência) concreta no espaço geográfico. Isto implica que o mapa está a serviço seja da projeção de determinado fenômeno, possibilitando sua análise em relação a outros; quais sejam as escalas de sua projeção. Ora, quando se fala em escala, não se está a falar exclusivamente da escala cartográfica, aquela que caracteriza o produto da cartografia técnica e geralmente aparece na parte inferior dos mapas, uma régua velha conhecida de todos; mas, da escala geográfica dos fenômenos, que delimita sua existência ou possibilidade de existência concreta, de modo que no mapa, a escala cartográfica, está a serviço da segunda, a escala geográfica. Isto se exemplifica facilmente: a escala de expansão da Covid-19 viu-se ampliada rapidamente à escala do milionésimo  e, com a mesma velocidade, atingiu a escala de 1 para 5 e de 5 para 15 milhões. Enquanto em Wuhan, na China, ela poderia ser representada numa escala talvez de 1:50mil, agora a pandemia atinge o mundo todo e é representada acima da escala ao milionésimo. Para que fique ainda mais claro, a escala ao milionésimo foi escolhida ainda no século XIX por geógrafos e cartógrafos do mundo inteiro (mas principalmente europeus) para representar um país com a dimensões similares à França, Alemanha ou Espanha. No Brasil, ela representa uma área próxima à área dos estados de Minas Gerais ou Bahia. Quanto maior o denominador, maior a área abrangida pela escala.

Infelizmente, esta rápida ampliação da escala cartográfica apenas acompanha a rápida expansão geográfica do fenômeno, favorecida por outros fatores como a multi e a trans-territorialidade, como tratarei adiante e ainda, às formações sociespaciais e às redes de infraestrutura que favorecem o rápido deslocamento entre-lugares.

Dentre as muitas possibilidades possíveis de compreensão da pandemia, gostaria de enfatizar, portanto, aquela que diz respeito à sua geograficidade, ou seja, às várias possibilidades de leitura espacial da conjuntura de crise. De certo que tantas são estas possibilidades que este texto não poderia reportá-las. Apresento, a seguir, algumas hipóteses sobre a centralidade da geografia para a compreensão da pandemia e de sua rápida expansão pelo mundo.

Pandemia e Epidemia

Pessoas em situação de rua abrigadas na Escola Estadual Área Braga no bairro Compensa, em Manaus (Foto: Marcio James / Semcom/18/04/2020)

Primeiramente, o próprio termo “pandemia” remete já ao fato de que uma doença anômalo (que caracteria a epidemia) extrapolou os limites de um território ou região específica. E é isto que distingue a epidemia (anomalia) da pandemia (difusão geográfica desta anomalia). Enquanto a epidemia tem um caráter de anomalia que se registra em um localidade, provavelmente favorecida por condições geográficas locais (por exemplo: o Ébola na África, favorecido pela fome); a ideia de pandemia remete à perda de controle sobre sua difusão geográfica, ou seja, ao fato de um agente ativo no caso o Coronavírus) encontrar-se disseminando-se deliberadamente á revelia dos territórios juridicamente delimitados pelos diferentes Estados Nacionais.

Por sua vez, a ideia de quarentena, etmologicamente associada à ideia de isolamento por 40 dias,  tem na geograficidade seu caráter central (o isolamento é espacial). Em tudo, lembra as reflexões de Michel Foucault sobre a biopolítica. Por sua vez, aqueles que propõem o retorno à normalidade, em meio à pandemia, remetem principalmente à Necropolítica, isto é, ao fato de que, havendo morte entre os trabalhadores, há um exército industrial de reserva disposto a arriscar sua vida para garantir o mínimo de dignidade. Mas até que ponto, expor-se a Covid 19 assegura alguma dignidade? Não insistirei na questão para não insistir nos debates sobre ética e moral, inerentes ao debate sobre o referencial de dignidade. Certamente os filósofos poderão se manifestar com mais propriedade sobre este assunto.

De volta à geograficidade, tema sobre o qual estou mais habilitado a falar, e no entanto, tendo por referência um filósofo que buscou o debate sobre os assuntos de nossa disciplina, nos provocando fortemente, foi Michel Foucault o principal analista da quarentena, geralmente enfatizando o papel político do espaço para o funcionamento das estratégias de confinamento e isolamento.

Michel Foucault alertava que, infelizmente, a biopolítica e o discurso sanitarista não estão a serviço das liberdades individuais nem da vida, mas tem sido historicamente utilizadas por regimes autoritários e higienistas, vide a experiência prática, segundo a qual as crises sanitárias formaram sempre argumento para a retirada de cortiços e/ou a desterritorialização de populações precárias de áreas posteriormente valorizadas pela especulação imobiliária, estudadas por diversos geógrafos das metrópoles, que do Rio de Janeiro e São Paulo a Belém e Porto Alegre, nos permitem informar esta bricolagem entre saber (geográfico) e poder (higienismo ou biopolítica).

No entanto, a Covid-19 quebra este paradigma da quarentena e assegura a quarentena como o reverso desta ação (geográfica), impondo reflexões em contra a precarização, que desde o fortalecimento das redes públicas de saúde às políticas de renda mínima, tem obrigado os sujeitos a ficarem em casa e se entenderem com aquilo que somos – vícios e virtudes – e aquilo que nos rodeia – os vícios e virtudes dos nossos mais próximos. A quarentena, nos obrigando a ficar em casa, nos mostra aquilo que a alienação capitalista nos furta: o cotidiano e as escalas mínimas: doméstica, residencial e os afetos a ela inerentes.

De qualquer modo, a quarentena e o isolamento social não são outra coisa senão quarentena e isolamento geográficos.

Poder-se-ia afirmar, ainda, que a Covid-19 tem sido analisada por diversos pesquisadores, seja por aqueles que dedicaram-se ao mapeamento de sua estrutura genética, seja por pesquisadores que apontam os critérios que agravam a probabilidade de contágio da população. Destacam-se a idade, a presença de outras doenças, a falta de determinados nutrienes/proteínas, hepatite, diabetes e/ou a epilepsia, dentre outras.

Nenhum destes aspectos, nem mesmo o aspecto da idade que, excluem totalmente as explicações geográficas, já que as determinantes territoriais e formações espaciais, assim como os arranjos jurídicos-normativos podem intervir seja para a evitar a proliferação do vírus, seja para explicar a maior ou menor incidência destas doenças em termos de desigualdade social ou o que os profissionais da área de saúde chamam de iniquidades. Claro está que as condições de moradia afetam a evolução de doenças como a tuberculose e pneumonia, dentre outras. E Claro está que a desigualdade social pode ser mensurada em termos de espaço: nem todos estão sujeitos à moradia precária. Ou literalmente, quando se diz, como o o fez um empresário brasileiro, que “Estamos todos no mesmo barco!”, Não, estamos a maioria de nós em pequenas canoas. Apenas alguns estão em saveiros. O mesmo se diz em relação à alimentação: quem come melhor nem mais imunidade diante da Covid-19.

Pensa-se seja na precarização das habitações populares e mesmo dos sem-teto, seja na própria falta de água potável e alimentação adequada por parte das populações que chamamos de “aglomerados de exclusão”, como na proposta de Rogério Haesabert (2003). Poder-se-ia destacar a vulnerabilidade da população carcerária: enclausurada e encerrada emn grandes concentrações, a população carcerária é uma das mais vulneráveis diante da expansão da Covid 19. Diante do atual momento de expansão do conservadorismo, não será de assustar se um grupo de defensores do justiçamento (mais quqe da justiça) julgar por bem que a população carcerária, em sua maioria jovem e negra, morra aos montes de Covid 19 como punição por pequenos delitos associados ao porte e comércio de substâncias ilícitas.

Alguns pesquisadores tem destacado que já na sua origem, são as condições geográficas do mercado local de Wuhan, na China, que favoreceram o surgimento do Coronavirus e sua proliferação para os humanos. Novamente, a geograficidade encontra-se no centro das explicações, seja porque a formação espacial de Wuhan admite a criação de animais selvagens em feiras, seja porque a proximidade entre estes animais fez surgir um fenômeno novo, devidamente registrado e cartografado, embora curiosamente não o possamos ver segundo a tradição da Geografia (de ciência da imagem e da fala).

O mundo atual e suas condições geográficas

Hospital de campanha de Belém (Foto: Bruno Cecim/Agência Pará)

Não há dúvida de que a rápida proliferação da epidemia, convertendo-a em pandemia está diretamente relacionada às características do mundo atual, marcado pela multiterritorialidade, em particular dos operadores do sistema. E o que temos visto, por exemplo, no Brasil, ou ao menos o que nos informam os meios de comunicação, é que o Coronavírus chega a nós por meio de círculos privilegiados, envolvendo sujeitos cujos modos de vida lhes permite viver no trânsito turístico entre vários países europeus e ao mesmo tempo, as luxuosas praias da Bahia. Sem dúvida, a epidemia se espalha dada à grande disseminação destes modos de vida contemporâneamente, ou seja, da facilidade com que se vai de um canto a outro do mundo sem, ao mesmo tempo, viver efetivamente cada um destes lugares, mas isolando-se em “bolhas geográficas” (como lembrou o geógrafo Rogério Haesbaert) que são os hotéis de luxo e as praias de visitação restrita num mundo marcado pela fratura entre estes e aqueles cuja territorialidade não alcança mais que a própria região, muitas vezes o próprio local de origem.

Por fim, cabe ainda lembrar que se com o mundo hodierno ou ultramoderno se organizou em redes, particularmente as redes sociais, o isolamento geográfico nos impõe um retorno aos nossos territórios corporais e domésticos, nos devolvendo aos nossos espaços mínimos, na medida em que a quarentena nos impõe a restrição às outras escalas geográficas da existência concreta, que são o lugar, a região e o território. De certo modo, os conflitos que antes vivenciávamos nas escalas local, regional e nacional apenas encontram-se em debate quando observamos as fortes tensões em torno da narrativa sobre os perigos reais de colapso da saúde provocado pela Covid 19. Em verdade, um forte esforço por parte de grupos negacionistas esaquizofrênicos que se recusam a compreender a gravidade da situação e que, na esperança de que a sociedade prevaleça sobre estes impulso de morte por trás do negacionismo científico.

Assim, o que gostaria de ressaltar é que, quando falarmos da pandemia, é imprescindível notar que estamos diantes de um fenômeno que tem sido tratado por especialistas desde vários pontos de vista, um deles, de grande relevância, o ponto de vista da geograficidade, ou seja, o do mapeamento do código genético do virus e da necessidadede medidas de controle geográfico por parte da população, a saber, a quarentena e o isolamento social.

Entretanto, como toda a sociedade, a sobrevivência dos geógrafos, neste momento, também depende do sucesso da quarentena, retardando a proliferação exponencial do vírus e, evidentemente, dos profissionais da área de saúde, pesquisadores de diversas áreas, incluindo aqqueles que atuam na área da geografia médica, e que encontram-se na  linha de frente do combate ao vírus e do controle de sua propagação.

A fotografia que abre este artigo é da Floresta Amazônia, em Boa Vista do Ramos, no Amazonas (Foto: Alberto César Araújo)

Sandoval dos Santos Amparo é geógrafo, doutor em Geografia. Professor de Geografia Humana e Ensino de Geografia da Universidade do Estado do Pará em Conceição do Araguaia, no Pará.

Os colunistas da Amazônia Real têm liberdade para escolher os temas de seus artigos, que não são necessariamente da mesma opinião da agência de jornalismo independente, que defende as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

 

 

 

Fonte: https://amazoniareal.com.br/pandemia-e-geograficidade-da-expansao-do-coronavirus-as-estrategias-de-prevencao/

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