Por Nicoly Ambrosio
Na imagem acima, fumaça das queimadas ao longo da BR 163, entre Santarém e Novo Presgresso no Pará (Foto: Alberto César Araújo/ Amazônia Real/Setembro de 2024).
Manaus (AM) – Faltando apenas quatro meses para o início da COP30 em Belém (PA), 267 parlamentares aprovaram na calada da noite, por volta das 3h40 da madrugada, na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei 2.159/2021, chamado por cientistas, especialistas do clima e movimentos sociais e ambientais de “PL da Devastação” devido aos retrocessos ao sistema de proteção ambiental do país. Conduzida pelo deputado Hugo Motta (Republicanos-PB), a aprovação consolidou a bancada ruralista e defensora de projetos antiambientais, derrubando a liderança do governo, que conseguiu apenas 116 votos contra o texto que vai flexibilizar as licenças ambientais do agronegócio e de grandes e médios empreendimentos.
Em plena crise climática, o setor empresarial poderá ter autorização de construir sem necessidade de estudos técnicos, de análises prévias de impactos e desastres, de consultas a comunidades locais e sem mecanismos de proteção ambiental. As condicionantes ambientais serão enfraquecidas e territórios indígenas, quilombolas e áreas protegidas, muitas delas já devastadas, ficarão ainda mais ameaçadas.
Mal amanheceu o dia, a ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, já iniciou as articulações para o veto presidencial ou até no Supremo Tribunal Federal (STF), através de uma ação de inconstitucionalidade. Segundo a ministra, as flexibilizações podem acelerar os licenciamentos de projetos com histórico de contestação por parte de populações indígenas e ribeirinhas, como a pavimentação da BR-319, estrada que liga Manaus a Porto Velho, e a exploração de petróleo na Margem Equatorial. Isso tudo sem considerar os impactos ambientais, o que, de acordo com Marina, pode comprometer a imagem do Brasil diante de compromissos assumidos em acordos globais de conservação.
Sob a responsabilidade do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o projeto de lei pode ser vetado em até 15 dias úteis de forma total ou parcial, mas com risco de que o Congresso ainda possa derrubar os vetos após a sanção presidencial.
O PL, que tramita no Congresso há mais de 20 anos, propõe a flexibilização nas regras ambienais, como a dispensa de licenciamento para atividades agropecuárias. De acordo com o texto do projeto, um procedimento de autolicenciamento será criado para projetos considerados de impacto “pequeno” ou “médio” como rodovias, hidrovias, ferrovias, portos, usinas termelétricas, pequenas centrais hidrelétricas e linhas de transmissão.
Essas obras, que são de grande porte e geram impacto ambiental, poderão ser autorizadas sem a necessidade de estudos técnicos prévios, como o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e o Relatório de Impacto Ambiental (Rima), que normalmente exigem análise técnica, vistoria no território e consulta livre, prévia e informada a comunidades potencialmente afetadas, conforme as diretrizes da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Uma das novidades é a Licença Ambiental Especial (LAE), que facilitará empreendimentos considerados “estratégicos” por um conselho do governo mesmo que ele seja considerado causador de “significativa degradação do meio ambiente”.
O PL aprovado também amplia a cobertura da Licença por Adesão e Compromisso (LAC), que permite ao empreendedor de médio porte e médio potencial poluidor de obter licença automaticamente com uma autodeclaração, feita pela internet, sem necessidade de análise técnica prévia.

Leusa Munduruku, liderança do povo Munduruku que atua no Movimento Ipereğ Ayũ da região do Alto Tapajós, no Pará, afirma que o projeto de lei aprovado pela Câmara dos Deputados é um “projeto de morte” que ameaça diretamente os povos indígenas, seus territórios e futuras gerações. “O povo Munduruku está há muito tempo lutando pela demarcação do território, e com esse novo projeto de morte que acabaram de aprovar na Câmara nesta madrugada, a gente fica muito revoltado. Querem entrar em nossas terras indígenas”, disse em entrevista à Amazônia Real.
Mesmo sem a homologação oficial da Terra Indígena Sawré Muybu, que passa ainda pelo processo de demarcação, o povo Munduruku segue em resistência com a autodemarcação e mobilizações para pressionar o governo federal. Segundo Leusa, o PL representa uma legalização da violência e das invasões já em curso no território Munduruku.
“Eles tentam legalizar o que já acontece na irregularidade dentro do nosso território. A gente já sofre esses impactos, principalmente de garimpo no território e demais empreendimentos que estão previstos, como a Ferrogrão, as hidrelétricas no Tapajós, a invasão de garimpeiros, grileiros, fazendeiros. Rasgam o nosso protocolo Munduruku e a nossa Constituição. A gente fica muito revoltado com isso, porque a nossa história e a nossa Constituição estão sendo ignoradas”, denunciou a liderança.
Em audiência da Comissão de Meio Ambiente da Câmara dos Deputados no dia 10 de julho, representantes do governo já haviam apontado um “dano irremediável” no projeto de lei e um elevado risco de judicialização do tema.
Bloco da Amazônia Legal

Entre os parlamentares que votaram “sim” à proposta que desmonta o atual sistema de licenciamento ambiental brasileiro, 59 são representantes da Amazônia Legal, região que abrange nove estados e concentra a maior parte das áreas protegidas do país.
Os deputados da Amazônia Legal que votaram a favor ao PL da Devastação:
Amazonas: Adail Filho (Republicanos); Capitão Alberto Neto (PL); Fausto Santos Jr. (União); Sidney Leite (PSD); Silas Câmara (Republicanos); Átila Lins (PSD).
Acre: Antônia Lúcia (Republicanos); Coronel Ulysses (União); Eduardo Velloso (União); Roberto Duarte (Republicanos); Zé Adriano (PP).
Rondônia: Cel. Chrisóstomo (PL); Cristiane Lopes (União); Dr. Fernando Máximo (União); Lebrão (União); Maurício Carvalho (União).
Roraima: Duda Ramos (MDB); Gabriel Mota (Republicanos); Nicoletti (União); Pastor Diniz (União).
Amapá: Acácio Favacho (MDB); Augusto Puppio (MDB); Josenildo (PDT); Vinícius Gurgel (PL).
Maranhão: Aluísio Mendes (Republicanos); Amanda Gentil (PP); Cleber Verde (MDB); Detinha (PL); Duarte Jr. (PSB); Fábio Macedo (Podemos); Josimar Maranhãozinho (PL); Josivaldo JP (PSD); Juscelino Filho (União); Márcio Honaiser (PDT).
Tocantins: Antonio Andrade (Republicanos); Carlos Gaguim (União); Eli Borges (PL); Filipe Martins (PL); Lázaro Botelho (PP); Vicentinho Júnior (PP).
Mato Grosso: Coronel Assis (União); Coronel Fernanda (PL); Gisela Simona (União); José Medeiros (PL); Juarez Costa (MDB); Nelson Barbudo (PL); Rodrigo da Zaeli (PL).
Pará: Andreia Siqueira (MDB); Antônio Doido (MDB); Delegado Caveira (PL); Dra. Alessandra Haber (MDB); Henderson Pinto (MDB); Delegado Éder Mauro (PL); Joaquim Passarinho (PL); Júnior Ferrari (PSD); Keniston Braga (MDB); Olival Marques (MDB); Pastor Cláudio Mariano (União); Raimundo Santos (PSD).
Deputados que disseram Não

Entre os poucos parlamentares da região que se opuseram ao texto, estão: Airton Faleiro (PT-PA); Amom Mandel (Cidadania-AM); Dilvanda Faro (PT-PA); Dorinaldo Malafaia (PDT-AP); Márcio Jerry (PCdoB-MA) e Socorro Neri (PP-AC).
“Enquanto a maioria na Câmara infelizmente cedeu nesta madrugada aos interesses do agronegócio predatório, mantive meu compromisso com o povo do Maranhão e com o meio ambiente. Votei contra esse retrocesso chamado ‘Lei Geral do Licenciamento Ambiental’. Esse projeto enfraquece o controle ambiental, ameaça biomas com a Amazônia e o Cerrado e libera geral para grandes obras sem estudo de impacto!”, afirmou o deputado Márcio Jerry, do Maranhão.
“BR-319 como exemplo”

Na véspera da votação, o deputado Pauderney Avelino (União-AM), que estava ausente na sessão desta madrugada, defendeu o projeto de lei e ainda declarou que o novo despacho feito no sistema da Câmara não alterava o teor do projeto, apenas reorganizava os artigos com relação ao saneamento básico.
Um dos principais argumentos usados pelo parlamentar foi a suposta desburocratização para obras de pavimentação, como a da rodovia BR-319. “Este é o caso da BR-319, que por anos a fio está se buscando uma solução e não se consegue uma liberação ambiental para asfaltar e recapear essa rodovia, que é a única ligação que tem do Amazonas para o restante do país”, afirmou.
Votação silenciada

A votação foi concluída na madrugada sob críticas de parlamentares da oposição e de organizações socioambientais, que denunciam o texto como um grave retrocesso na proteção ambiental e nos direitos dos povos indígenas e tradicionais do Brasil. Em nota, o Observatório do Clima (OC) classificou a aprovação do projeto como o maior retrocesso ambiental legislativo desde a ditadura militar (1964-1985).
Alberto Fonseca, professor da Escola de Minas da Universidade Federal de Ouro Preto e especialista em licenciamento e avaliação de impactos, indicadores de sustentabilidade e análises espaciais de políticas ambientais, foi um dos pesquisadores e autores do parecer técnico do OC, divulgado nesta segunda-feira (14/7). Ele aponta que o projeto de lei busca reduzir exigências como estudos de impacto e consultas públicas, tornando o processo de licenciamento mais rápido, mas também menos rigoroso e menos eficaz.
“Ninguém é contra desburocratizar, o problema é como vai se fazer isso”, afirmou à Amazônia Real. No caso do PL, a estratégia adotada é simplificar e isentar empreendimentos de forma generalizada, sem critérios técnicos adequados nem garantias institucionais mínimas. Alberto alerta que essa abordagem ignora o bom senso e o rigor necessários ao processo, colocando o meio ambiente e a sociedade em risco.
“O projeto tenta fazer com que o Brasil volte à lógica dos anos 1970 e 1980, quando se autorizava uma obra e só depois se resolviam os impactos”, critica. Para ele, trata-se de um modelo ultrapassado, que legitima práticas predatórias sob o pretexto de eficiência.
O parecer do OC conclui que PL 2.159 “além de não solucionar os problemas do licenciamento ambiental no país, traz riscos e problemas adicionais, representando, portanto, um caso claro de oportunidade perdida pelo Congresso Nacional”.
Na última terça-feira (16), a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) divulgou um manifesto de mais de 160 organizações contra o PL. No documento, a entidade afirma que o projeto representa “o mais grave retrocesso do sistema ambiental do país” desde a redemocratização.
“Quatro biomas brasileiros estão muito próximos dos chamados pontos de não retorno”, diz um trecho do documento.
A Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) também se manifestou, alertando que o projeto é um retrocesso e institucionaliza a exclusão de povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais dos processos decisórios sobre empreendimentos em seus territórios. Como no caso da Potássio do Brasil, que pretende explorar reservas de potássio em áreas sensíveis da bacia do rio Madeira, em território ancestral Mura, no município de Autazes (AM).
A entidade pediu que o presidente Lula vete integralmente o texto e que o Congresso respeite os direitos constitucionais dos povos originários. “Diante desse cenário, a Coiab também tem reforçado a importância do protagonismo indígena nesses espaços de mobilização de lideranças indígenas e campanhas de sensibilização na mídia e nas redes sociais, buscando ampliar e visibilizar a resistência nacional e internacional contra o ‘PL da Devastação’”, disse em nota enviada à reportagem.
O Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM) se posicionou por meio de uma nota pública de repúdio. O órgão afirmou que a aprovação do PL abre caminho para mais desmatamento e enfraquece a capacidade do Estado de prevenir danos ao meio ambiente. “No momento em que o Brasil se prepara para um dos eventos mais importantes para o futuro da humanidade, a COP30 em Belém, nosso Congresso nos brinda com uma agenda que vai na contramão de nossa liderança global”, disse André Guimarães, diretor executivo do IPAM.
A organização alerta que a nova legislação desconsidera critérios técnicos robustos, dispensa a consulta prévia a povos originários e rompe com os princípios básicos da boa governança ambiental.
O relator do projeto de lei, Zé Vitor (PL-MG), que é coordenador político da Frente Parlamentar do Agronegócio (FPA), rebate a acusação de cientistas e pesquisadores e declarou que não há afrouxamento das leis, mas a “adoção de padrões e estabelecimento de prazos”.
Durante a votação, a deputada federal Célia Xakriabá (PSOL-MG), uma das vozes mais ativas da bancada indígena no Congresso, foi chamada, em tom de ironia, de “cosplay de pavão” por Kim Kataguiri (União-SP). Ela estava usando um cocar. Ao ouvir a fala, a deputada pediu direito de resposta. A parlamentar acabou deixando o plenário após as ofensas.“Ontem, durante a votação do PL da Devastação, fui atacada de forma racista por parlamentares que zombaram do meu cocar, tentando me deslegitimar enquanto parlamentar e mulher indígena. O cocar que carrego não é adereço. É um elemento sagrado, carregado de história, ancestralidade, espiritualidade e resistência. É a voz de muitos povos que caminham junto”, disse a deputada em pronunciamento nas redes sociais.

Fonte: https://amazoniareal.com.br/pl-da-devastacao-e-aprovado-e-governo-articula-veto/
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