O isolamento de quase quatro séculos da Amazônia em relação ao Brasil começou a ser rompido na transição entre os anos 1950 e 1960 pelas rodovias Brasília-Acre, no sentido leste/oeste, e pela Belém-Brasília, no sul/norte. O grande efeito econômico dessas primeiras ligações terrestres entre a maior fronteira do país (e das maiores do mundo) e sua região central e mais antiga foi o fim da ilusão de um desenvolvimento à base do modelo nacional de substituição das importações.

As indústrias regionais existiam porque a falta de uma conexão mais rápida, menos complicada e mais barata do que o comércio de cabotagem, pelo litoral, funcionava como se fosse uma barreira alfandegária. Quando as indústrias do centro-sul puderam mandar seus produtos por caminhões, as manufaturas locais perderam sua vantagem competitiva diante da economia de escala dos novos donos do mercado. Foram quebrando. O que subsistiu de indústria é a ilha da zona franca de Manaus, mantida a um alto custo em dólar e em regime de renúncia fiscal único no Brasil.

Apesar do surgimento das duas rodovias de integração no final do governo de Juscelino Kubitscheck, cujo modelo de associação com multinacionais, sobretudo automotivas, impunha a opção rodoviária, a retórica do planejamento regional, iniciado no Brasil justamente pela Amazônia, ainda se mantinha vinculado à tradição, conduzida por novas formas de financiamento e ação públicas. Não por acaso, a agência pioneira se chamava SPVEA. Era a Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia.

O propósito era encontrar riquezas naturais que pudessem ser transformadas em mercadorias, ao mesmo tempo em que insumos seriam importados para induzir a produção de bens de uso mais intenso, substituindo a aquisição no exterior (nacional e internacional) de produtos industrializados, agregando mais valor ao processo produtivo.

Já a Transamazônica começou a ser construída, em outubro de 1970, em outro contexto. A SPVEA foi extinta em 1966. No seu lugar surgiram a Sudam, o Banco da Amazônia e uma política de incentivos fiscais que, no seu ponto extremo, permitia que o poder público financiasse até dois terços dos novos projetos através de renúncia fiscal ou por verba pública, que raramente teve retorno, mesmo sendo incorporada como capital privado.

A nova denominação do órgão encarregado de centralizar a ação federal na região era Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia, mas deveria ser para a Amazônia. A Sudam não surgiu para amparar a economia local ou valorizar a sua população, mas como órgão metropolitano (ou colonial), encarregado de promover atividades que pudessem atrair imigrantes, do posseiro João da Silva à sociedade anônima, nacional ou multinacional – de preferência, que rendessem dólares, as sempre tão escassas divisas, necessárias a um “milagre econômico” baseado em poupança externa através de transferência por endividamento.

Mais estradas, dirigidas para áreas selecionadas através de informação mais exata e abrangente (originada cada vez mais de satélites, a partir do levantamento sistemático do Projeto Radam) passaram a resultar em crescimento exponencial da população (para preencher os “vazios demográficos” em uma área equivalente à da Europa Ocidental, de alarmante gravidade para a doutrina de segurança nacional), salto tecnológico e de capital intensivo, vinculação e dependência de mercados externos, apesar da retórica geopolítica de “integrar para não entregar”.

O impacto desse modelo, que apenas completou meio século, não tem precedente nos séculos anteriores da história das sucessivas fronteiras brasileiras e é um caso de extrema relevância na história universal, sobretudo porque jamais a humanidade teve a oportunidade de saber tanto sobre o planeta em que vive – e instantaneamente, como testemunha dos acontecimentos, mesmo a milhares de quilômetros deles. Nunca o homem destruiu tanta floresta quanto a partir do rodoviarismo e seu modelo econômico associado. E isso no reino da maior floresta tropical do mundo, com a maior biodiversidade de vida.

Fatos que marcaram a abertura de outras fronteiras no passado são reeditados na atual “corrida” à Amazônia, como matança de índios, conflitos fatais pela posse da terra, pistoleiros de aluguel executando pessoas incômodas, trabalho mantido sob regime de escravidão, desrespeito aos mais essenciais direitos humanos, ocorrência de doenças já extintas nas partes mais desenvolvidas. Os que promovem essa regressão no tempo costumam se defender alegando que sempre foi assim e os genocidas ou predadores do passado defendem causas nobres apenas para impedir que o Brasil siga pelo mesmo caminho que esses países trilharam, se tornando seus competidores.

De fato, estrangeiros se mostram mais sensíveis aos pecados cometidos cotidianamente na Amazônia contra a natureza e os excluídos do modelo, que são a esmagadora maioria da população, e mais ativos na defesa dos direitos humanos e sociais. É verdade também que alguns desses benfeitores disfarçam seus apetites comerciais com louváveis palavras de ordem. Ainda assim, mesmo grandes multinacionais se antecipam nesse tipo de atitude às grandes empresas nacionais, revelando a existência de uma mudança ética e moral espelhada por expressões como governança e compliance.

Por que, então, os problemas revelados, denunciados e combatidos persistem e a situação buscada não se altera? Por que as ondas de protestos e ação, uma vez cumprido seu ciclo, são sucedidas pelas mesmas questões, com mais desmatamento, destruição, violência, irracionalidade e caos? Por que mesmo populações beneficiadas por iniciativas como as financiadas por países e empresas estrangeiras e brasileiras não se sentem felizes na maioria dos casos? Por que a melancolia e a saudade da vida anterior, aparentemente mais pobre e difícil pelas aferições quantitativas disponíveis pelo cálculo econômico?
Talvez porque, mesmo com a retórica da valorização das populações tradicionais, da racionalização do extrativismo, do incremento da diversidade biológica, o modelo de ocupação (mais do que de desenvolvimento) da Amazônia continua a ser rodoviarista, na vasta abrangência da expressão que se aplica a uma via de penetração no coração da Amazônia, trazendo para o seu interior um novo personagem, que será o dono das decisões, que traz consigo seus objetivos, sua cultura e seu poder. Sua matriz é de fora, não a da Amazônia. O mundo aquático e florestal lhe é estranho. E ele chega para im por um “destino manifesto” a uma vasta região que conhece apenas pelo que ela pode lhe render de produtos comerciais.

A felicidade, nesse contexto, jamais será brinde. Só existirá se for conquistada. E a conquista exige a substituição da cultura do colonizador pelo mundo do colonizado. Se isso ainda vier (ou puder) acontecer, os amazônidas (expressão que o dicionário não prevê) inscreverão e escreverão uma novidade na história da humanidade – desta vez, positiva.


A imagem que ilustra este artigo mostra a construção da rodovia Transamazônica nos anos de 1970 (Foto: Arquivo Público de SP)


Além de colaborar com a agência Amazônia Real, Lúcio Flávio Pinto mantém quatro blogs, que podem ser consultados gratuitamente nos seguintes endereços:

lucioflaviopinto.wordpress.com – acompanhamento sintonizado no dia a dia.

valeqvale.wordpress.com – inteiramente dedicado à maior mineradora do país, dona de Carajás, a maior província mineral do mundo.

amazoniahj.wordpress.com – uma enciclopédia da Amazônia contemporânea, já com centenas de verbetes, num banco de dados único, sem igual.

cabanagem180.wordpress.com – documentos e análises sobre a maior rebelião popular da história do Brasil.


Lúcio Flávio Pinto é jornalista desde 1966. Sociólogo formado pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo, em 1973. Editor do Jornal Pessoal, publicação alternativa que circula em Belém (PA) desde 1987. Autor de mais de 20 livros sobre a Amazônia, entre eles, Guerra Amazônica, Jornalismo na linha de tiro e Contra o Poder. Por seu trabalho em defesa da verdade e contra as injustiças sociais, recebeu em Roma, em 1997, o prêmio Colombe d’oro per La Pace. Em 2005 recebeu o prêmio anual do Comittee for Jornalists Protection (CPJ), em Nova York, pela defesa da Amazônia e dos direitos humanos. Lúcio Flávio é o único jornalista brasileiro eleito entre os 100 heróis da liberdade de imprensa, pela organização internacional Repórteres Sem Fronteiras em 2014. Acesse o novo site do jornalista aqui www.lucioflaviopinto.com.


Os colunistas da Amazônia Real têm liberdade para escolher os temas de seus artigos, que não são necessariamente da mesma opinião da agência de jornalismo independente, que defende as diversas tendências do pensamento contemporâneo.


Os textos, fotografias e vídeos produzidos pela equipe da agência Amazônia Real estão licenciados com uma Licença Creative Commons – Atribuição 4.0 Internacional e podem ser republicados na mídia: jornais impressos, revistas, sites, blogs, livros didáticos e de literatura; com o crédito do autor e da agência Amazônia Real. Fotografias cedidas ou produzidas por outros veículos e organizações não atendem a essa licença.

 

 

Fonte: https://amazoniareal.com.br/pode-a-amazonia-sobreviver/

Thank you for your upload