Embora o processo de licenciamento do projeto de reconstrução da rodovia BR-319 (Manaus-Porto Velho) continue avançando em direção à aprovação, a obra ainda não é um fato consumado. O país precisa pensar melhor sobre os enormes impactos e parcos benefícios deste projeto antes que seja tarde demais. Publiquei hoje um editorial convidado pela prestigiada revista Ambio, disponível aqui, que explica este risco [1]. Segue uma tradução do conteúdo.

A Amazônia é reconhecida por sua importância global na regulação do clima e por sua extraordinária diversidade biológica e cultural, incluindo distinções como o status de Patrimônio Mundial da UNESCO da Área de Conservação da Amazônia Central. Infelizmente, as ações atuais e planejadas do governo brasileiro promovem amplo desmatamento e degradação que ameaçam os serviços ambientais que a floresta amazônica fornece ao Brasil e ao mundo. O último grande bloco de floresta intacto na Amazônia brasileira está agora ameaçado por estradas planejadas. Isso desencadearia processos que, apesar do discurso político, estão fora do controle do governo brasileiro [2].

A rodovia BR-319 (Fig. 1) ligaria o notório “arco do desmatamento”, no sul da Amazônia, a Manaus, na Amazônia central [3]. Esta estrada foi construída no início da década de 1970 e foi abandonada em 1988; desde 2015, um programa de “manutenção” a tornou marginalmente transitável durante a estação seca, e a estrada agora está planejada para “reconstrução”. Pode-se esperar que os atores e processos de desmatamento migrem para todas as áreas conectadas a Manaus por estrada, como Roraima, no norte da Amazônia [4], e para a vasta área de floresta no oeste do estado do Amazonas que seria aberta por estradas planejadas para ligar à BR-319 [5]. O Brasil está totalmente despreparado para conter a destruição que essa mudança na geografia do desmatamento representa [6]. 

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Fig. 1 Desmatamento na Amazônia Legal do Brasil até 2018 (Dados de: [7]). O desmatamento até agora se concentrou no “arco do desmatamento” ao longo das bordas sul e leste da floresta. A rodovia BR-319 (Manaus-Porto Velho) e vias secundárias associadas dariam acesso de desmatadores à vasta área de floresta no oeste do estado do Amazonas.


Essa situação foi agravada pelo desmonte dos órgãos e da legislação de controle ambiental durante o governo de Jair Bolsonaro, que começou em janeiro de 2019 [8]. Políticos de Manaus afirmam que a BR-319 seria um “modelo de sustentabilidade para o mundo”, mas tudo indica o contrário. A rota da rodovia é basicamente uma terra sem lei hoje [9, 10], e o governo dificilmente terá recursos para a construção da estrada em si, muito menos para um programa massivo de governança que seria necessário para proteger dezenas de de terras indígenas e unidades de conservação afetadas. A reconstrução da BR-319 deve aguardar uma época futura em termos de capacidade e vontade política na área ambiental. Felizmente, essa espera não representaria um sacrifício.

O projeto da rodovia não é economicamente viável [11, 12]. É o único grande projeto de infraestrutura no Brasil que carece de um estudo de viabilidade econômica (EVTEA), provavelmente pelo motivo óbvio de que tal estudo revelaria sua inviabilidade. Comparado ao transporte pela BR-319, o transporte dos produtos das fábricas da Zona Franca de Manaus para São Paulo é mais barato usando o atual sistema de barcaças com carretas até Belém, e seria muito mais barato ainda se fosse construído um porto adequado em Itacoatiara para transportar contêineres para o Sudeste do Brasil em navios oceânicos. Os políticos de Manaus são os beneficiários mais visíveis da BR-319, já que defender o projeto da rodovia é uma estratégia fundamental para conquistar votos na cidade.

Manaus tem uma população de 2,2 milhões, ou 1% da população do Brasil. Como a BR-319 será reconstruída pelo governo federal (ou seja, pelos contribuintes de todo o país), quase todo o custo será pago pelos 99% que não moram em Manaus. Um argumento apresentado pelos políticos de Manaus para justificar isso é que a Amazônia vem sendo explorada pelo resto do Brasil há séculos e, portanto, há uma dívida a ser paga com a região. Esse argumento pode repercutir em Manaus, mas dificilmente será convincente em São Paulo. Seria especialmente pouco convincente se a população de São Paulo percebesse que até 70% de sua água depende de manter a floresta amazônica em pé [13, 14]. [15].

Notas

[1]. Fearnside, P.M. 2022. Amazon environmental services: Why Brazil’s Highway BR-319 is so damagingAmbio 

[2] Fearnside, P.M., 2020. BR-319 – O começo do fim para a floresta amazônica brasileira. Amazônia Real, 06 de outubro de 2020. 

[3] Fearnside, P.M. & P.M.L.A. Graça. 2009. BR-319: A rodovia Manaus-Porto Velho e o impacto potencial de conectar o arco de desmatamento à Amazônia centralNovos Cadernos NAEA 12(1): 19-50. 

[4] Barni, P.E., P.M. Fearnside & P.M.L.A. Graça. 2018. Simulando desmatamento e perda de carbono na Amazônia: Impactos no Estado de Roraima devido à reconstrução da BR-319 (Manaus-Porto Velho). In: Oliveira, S.K.S. & Falcão, M.T. (Eds.). Roraima: Biodiversidade e Diversidades. Editora da Universidade Estadual de Roraima (UERR), Boa Vista, Roraima. p. 154-173. 

[5] Fearnside, P.M., L. Ferrante, A.M. Yanai & M.A. Isaac Júnior. 2020. Região Trans-Purus, a última floresta intactaAmazônia Real

[6] Fearnside, P.M. 2018. Challenges for sustainable development in Brazilian Amazonia. Sustainable Development 26: 141-149. 

[7] Brasil, INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais). 2021. Projeto PRODES – monitoramento da floresta amazônica brasileira por satélite. São José dos Campos: INPE. 

[8] Ferrante, L. & P.M. Fearnside. 2019. O novo presidente do Brasil e “ruralistas” ameaçam o meio ambiente, povos tradicionais da Amazônia e o clima globalAmazônia Real, 30 de julho de 2019. 

[9] Andrade. M., L. Ferrante & P.M. Fearnside. 2021. A rodovia BR-319, do Brasil, demonstra uma falta crucial de governança ambiental na Amazônia Amazônia Real, 02 de março de 2021. 

[10] Ferrante, L., M.B.T. de Andrade, L. Leite, C.A. Silva Junior, M. Lima, M.G. Coelho Junior, E.C. da Silva Neto, D. Campolina, K. Carolino, L.M. Diele-Viegas, E.J.A.L. Pereira & P.M. Fearnside. 2021. BR-319: O caminho para o colapso da Amazônia e a violação dos direitos indígenas. Amazônia Real, 23 de fevereiro de 2021. 

[11] Teixeira. K.M. 2007. Investigação de Opções de Transporte de Carga Geral em Contêineres nas Conexões com a Região Amazônica. Tese de doutorado, São Carlos: Universidade de São Paulo.

[12] Fleck, L. 2009. Eficiência Econômica, Riscos e Custos Ambientais da Reconstrução da BR 319Lagoa Santa: Conservation Strategy Fund. 

[13] van der Ent, R.J., H.H.G. Savenije, B. Schaefli & S.C. Steele-Dunne. 2010. Origin and fate of atmospheric moisture over continents. Water Resources Research 46: art. W09525. 

[14] Zemp, D.C., C.F. Schleussner, H.M.J. Barbosa, R.J. van der Ent, J.F. Donges, J. Heinke, G. Sampaio & A. Rammig. 2014. On the importance of cascading moisture recycling in South America. Atmospheric Chemistry and Physics 14: 13337–13359. 


[15] Este texto é uma tradução parcial de: Fearnside, P.M. 2022. Amazon environmental services: Why Brazil’s Highway BR-319 is so damagingAmbio As pesquisas do autor são financiadas pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq 311103/2015-4), Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM 01.02.016301.000289/2021 ) e Rede Brasileira de Pesquisa em Mudança do Clima (FINEP/Rede Clima 01.13.0353-00). MA dos Santos Junior preparou a Figura 1.

Philip

 Philip Martin Fearnside

É doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan (EUA) e pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus (AM), onde vive desde 1978. É membro da Academia Brasileira de Ciências. Recebeu o Prêmio Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), em 2007. Tem mais de 600 publicações científicas e mais de 500 textos de divulgação de sua autoria que podem ser acessados aqui. https://philip.inpa.gov.br

Fonte: https://amazoniareal.com.br/por-que-a-rodovia-br-319-e-tao-prejudicial-1-um-desastre-evitavelpor-que-a-rodovia-br-319-e-tao-prejudicial-1-um-desastre-evitavel/

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