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Após 23 dias de resistência, o líder da região da TI Andirá Marau, de 64 anos, faleceu em decorrência de complicações da Covid-19, no hospital Jofre Cohen, em Parintins. (A foto acima, de 2015, é de Danilo Mello/Foto Amazonas/Amazônia Real)


Manaus (AM) – A luta do tuxaua-geral dos Sateré-Mawé pela vida, Amado Menezes, terminou nesta quinta-feira (15), por volta de 17h. Aos 64 anos, a maior liderança da etnia no Amazonas faleceu no hospital Jofre Cohen, no município de Parintins, onde estava internado desde o dia 23 de setembro em decorrência da Covid-19.

Amado Menezes foi uma liderança histórica da luta do povo Sateré-Mawé pela demarcação da Terra Indígena Andirá Marau, localizada nos municípios amazonenses de Barreirinha, Maués e Parintins, na região do Baixo Rio Amazonas. O território, homologado em 1986, também abrange uma parte dos municípios de Aveiro e Itaituba, no Pará. Ele também atuou na luta contra a exploração de petróleo dentro da TI Andirá Marau, assunto que ele abordou, em reportagem da Amazônia Real publicada em 2016, na qual ele também criticava a falta de consulta aos Sateré-Mawé a respeito das obras da Hidrelétrica do Tapajós.

De acordo com informações do hospital, o quadro clínico do tuxaua agravou-se no dia 09 de outubro. No dia 10, ele conseguiu uma liminar autorizando sua remoção para um leito de UTI em Manaus, mas já não foi possível realizar o transporte aéreo. Amado Menezes faleceu em decorrência de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG), parada cardiorrespiratoria e Covid-19, segundo a direção da unidade de saúde.

Em postagem em sua rede social, o filho do tuxaua, Elias Menezes, comunicou o falecimento do pai que definiu como “irreparável perda”. “O tuxaua Amado, ou Tuisa Amadinho, nos deixa muitos ensinamentos. Líder nato de muita sabedoria. Assim como todos nós, passou por altos e baixos em sua vida. Em sua trajetória foi um grande defensor, articulador das causas indígenas. Nos deixa seu legado de nunca esquecer a terra de onde partimos. Nesse momento de tristeza, ficamos sem palavras para descrever o que estamos passando”.

Após negociação de lideranças locais e o compromisso de seguir rigorosamente os protocolos de segurança, o corpo de Amado Menezes deverá ser enterrado nesta sexta-feira (16) na aldeia Ponta Alegre, à margem do rio Andirá, em Barreirinha, onde morava. Ela é a aldeia mais numerosa do território indígena, com aproximadamente mil pessoas e onde está a maior ocorrência de casos de contaminação de Covid-19 na TI Andirá Marau.

O Distrito Sanitário Especial Indígena de Parintins (Dsei Parintins) registra 189 casos confirmados de Covid-19 e sete óbitos em sua jurisdição. No entanto, o boletim da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), a qual o Dsei é subordinado, não especifica as etnias e os territórios onde há infecção do novo coronavírus. Além dos Sateré-Mawé, o Dsei Parintins dá atenção de saúde à etnia Hixkaryana, cujo território fica no município de Nhamundá, também no Baixo Amazonas. O Dsei Parintins não conta casos de indígenas que moram em contexto urbano.

À Amazônia Real, o presidente do Conselho Geral da Tribo Sateré-Mawé (CGTSM), Obadias Garcia, enfatizou o exemplo de liderança vivenciado pelo tuxaua, fato que o acompanhou desde muito cedo.

“Amado foi uma grande liderança. Sempre nos acompanhou no Conselho, junto de seu sogro, o nosso tuxaua-geral, Antônio Michiles, com quem aprendeu a liderança. Ele tinha muita experiência com relação às leis dos índios, conhecia toda a luta do povo Sateré. Quando o sogro dele faleceu, foi automaticamente reconhecido como liderança. Houve 10 candidatos, mas ele é que foi eleito. Tinha uma grande influência política. Ele já era reconhecido e tornou se muito mais, principalmente durante a nossa luta nessa pandemia”, afirmou.

Garcia ressaltou ainda que, embora fosse do grupo de risco, Amado Menezes atuou na linha de frente dos indígenas contra a pandemia do novo coronavírus. “Ele era hipertenso e diabético, mas não mediu esforços para lutar na barreira conosco, comigo principalmente, durante quatro meses. E não tivemos nesse período nenhum caso, muito menos óbito. Foi muito triste esse desfecho da luta dele”, afirma.

‘No luto e na luta’

Lideranças indígenas reunidas na TI Andirá Marau (Foto: Arquivo Nara Baré)

“Infelizmente o Estado brasileiro continua omitindo a real situação da população em relação à Covid-19, subnotificando casos entre os indígenas. Nós que estamos nos territórios sentindo e vendo as perdas sabemos o que está se passando. A pandemia não passou”, declarou à Amazônia Real, Nara Baré, coordenadora-geral Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab). Amado Menezes foi um dos fundadores da Coiab, no final da década de 80.

Ela classificou o falecimento do tuxaua geral dos Sateré-Mawé, Amado Menezes, como uma perda da história, memória e cultura do povo por conta de toda sua trajetória em favor de uma educação e saúde diferenciada dos povos indígenas.

“Esperamos que esse compromisso do tuxaua Amado perpasse às demais gerações, aos que estão conseguindo sobreviver a essa perda de direitos e ao coronavírus. Para nós, não são só os ensinamentos que ficam, mas o compromisso de continuar com a luta pelo bem estar de todo o nosso povo, para uma vida plena, digna e de continuidade de demarcação dos nossos territórios. O tuxaua Amado traz essa resistência essa forca de conduzir seu povo”.

Nara Baré ressaltou que o tuxaua Amado Menezes sempre foi uma pessoa muito importante para a construção do movimento indígena, não somente pela luta em favor dos Sateré, mas de todos os povos da Amazônia, atuando diretamente para a consolidação da Coiab.

“Essa sempre foi a visão e o ensinamento dele: de reunir a diversidade dos povos, se respeitando mesmo diante das diferenças, em nome do bem comum, do coletivo. A perda hoje dele só faz com que a gente possa cada vez mais deixar de lado as diferenças e ter compromisso com o nosso bem estar e das futuras gerações. Ele deixa esse legado: sua resistência e sua forma carinhosa de conduzir, com firmeza, mas carinhosa, nunca  desrespeitando o outro, mesmo o inimigo, e isso é muito lindo”, completou.

A necessidade de uma liminar para garantir o direito à luta pela sobrevivência foi um dos apontamentos feito por Nara Baré como exemplo de omissão do Estado diante da situação dos indígenas que disputam, de forma injusta, uma guerra de narrativas, principalmente contra o governo federal, por meio da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) que tem afirmado não faltar recursos para o combate à covid-19 entre os indígenas.

“São eles dizendo que está tudo bem e nós dizendo que não. É muita fake news do governo tentando deslegitimar lideranças, fazendo até mesmo a cabeça ate de alguns indígenas. Mas nós não vamos nos calar, não vamos parar, a pandemia não acabou. Precisamos continuar nos protegendo, apesar de os Estados já estarem fazendo relaxamento das medidas de segurança. Faz sete meses e continuamos ainda em luto incansável, sem tempo de vivenciar o luto. É no luta e na luta”, afirmou.

Em nota de pesar divulgar na tarde desta sexta-feira, a Coiab destaca que “junto com outras lideranças, o tuxaua articulou o movimento indígena da Amazônia para dentro e fora das aldeias”.

“Na região do Baixo Amazonas, Amado lutou contra a invasão dos territórios indígenas pelos extratores de madeira e grileiros. No início deste ano, denunciou o desmonte e o enfraquecimento da Funai e a paralisação da demarcação das Terras Indígenas no Brasil”, diz a Coiab (leia a nota completa)

Plano emergencial

Amado Menezes, ao lado de outra liderança histórica, Zezinho Sateré-Mawé, falecido em 2017 (Foto: Tito Menezes)

O advogado Sateré-Mawé Tito Menezes lembrou, em postagem no Facebook, que Amado Menezes era membro fundador da Livre Academia do Wará (LAW), colégio de anciãos indígenas.

“Sempre foi uma grande liderança à frente de seu povo. Ao seu lado lutamos o bom combate, principalmente na educação e saúde e aprendemos muito com suas palavras e atitudes de nag (sábio). Defendeu o seu povo com todas as forças contra a covid-19, inclusive denunciando o fim das barreiras sanitárias que contribuiu no aumento dos casos. Lutou até o fim. Vamos continuar sua luta e o seu legado meu líder e muito obrigado por tudo. Agora nos resta guiar na ancestralidade junto aos nossos grandes tuxauas.”

Em comentário na postagem de Tito, a juíza federal Jaiza Fraxe, responsável pela decisão que obrigou a União, a Fundação Nacional do Índio (Funai) e a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) a elaborar plano emergencial para fornecimento de alimentos a indígenas, comunidades quilombolas e tradicionais no Amazonas no mês de maio, manifestou solidariedade aos povos da TI Andirá Marau.

A liderança Aldamir Sateré também manifestou seu pesar por meio de sua rede social. “Quero em nome da minha família e dos meus familiares transmitir nossas condolências à família do Tuxaua Amado Menezes. Descanse em paz, Tuisa!”

Já a Associação Cultural Boi Bumbá Touro Branco postou um trecho de toada para homenagear o líder dos Sateré-Mawé, Amado Menezes: “Sou índio nascido aqui/manejo minha lança potente/ sou filho de um Sateré/ e vivo entre as floresta tecendo peneiras e sarité/ Tupana me proteja nos perigos do rio-mar e Deus Tupã me guarda nas matas do Andirá”, e ressaltou que “o modo de vida, costumes e tradições desse povo tradicional e a sua importância para a formação étnica e cultural de Barreirinha, sempre fazem parte das apresentações do Bumbá”.

O Dsei Parintins emitiu nota de pesar lamentando o falecimento, em nome da equipe e do Conselho Distrital de Saúde Indígena local (Condisi) destacando que tuxaua “lutava para manter o dialeto tradicional nas aldeias com proposta curricular diferenciada nas escolas indígenas, costumes e danças” e na “luta pela implantação do Subsistema de Saúde Indígena do SUS – SASISUS, com o objetivo de proporcionar o acesso dos povos indígenas ao Sistema de Saúde Nacional de forma diferenciada e constante”.

Batalhas históricas

Vista do rio Andirá, na TI Andirá Marau (Foto: Danilo Mello/Foto Amazonas/Amazônia Real)

O tuxaua-geral Amado Menezes encerra um capítulo de 50 anos de luta em favor da história dos Sateré-Mawé, de sua cultura e sua língua e também da intensa mobilização indígena pela implantação do modelo descentralizado de atenção à saúde indígena em vigor hoje no Brasil por meio dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (Dsei): unidades gestoras independentes e com autonomia administrativa, divididas por critérios territoriais conforme a distribuição geográfica das comunidades indígenas. Atualmente são 34 Dsei no Brasil, uma reivindicação antiga dos povos indígenas.

Em sua tese de doutorado defendida em 2018, a professora da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), Ignês Tereza Peixoto de Paiva, retratou o protagonismo de lideranças vivenciado pelo povo Sateré-Mawé. Ela diz que o tuxaua Amado Menezes se destacava por sua preocupação e luta por uma “legítima educação escolar indígena, a revitalização da memória dos conhecimentos tradicionais e da língua”.

O tuxaua Amado afirma a importância do estudo, registra a pesquisadora, “pois muitos parentes voltaram e são professores, trouxeram boas ideias e ajudam no melhor conhecimento dos alunos, por isso devemos saber ouvir a todos e depois tirar o melhor para o nosso povo”.

Durante sua pesquisa acadêmica com os Sateré-Mawé, ela observou a defesa que ele fez do papel das lideranças, enquanto representante de todos os tuxauas do Andirá, de saber as necessidades de seu povo e que, para isso, ele fazia visitas às aldeias, reuniões com os tuxauas para organizar pautas de reivindicações, cujo principal desafio seria apaziguar conflitos existentes decorrentes de posicionamentos diferentes.

No dia 02 de junho, em um dos últimos atos públicos enquanto liderança, o tuxaua geral Amado Menezes outras duas lideranças do Conselho Geral da Tribo Sateré-Mawé (CGTSM) protocolaram nota de repúdio denunciando a retirada do Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) Parintins da barreira sanitária montada na entrada da área indígena, no Rio Andirá, o que acabou enfraquecendo a força tarefa composta pela Funai Parintins, Prefeitura de Barreirinha e indígenas.

A ausência de medidas de bloqueio expôs ao coronavírus as comunidades da Terra Indígena Andirá Marau, na região do Baixo Rio Amazonas (AM).

A perda de Amado Menezes é também a perda de parte da memória do povo Sateré-Mawé. Em comunidades indígenas a transmissão da história e da tradição é oral.

Ele é a terceira liderança de Andirá Marau vítima do novo coronavírus. No dia 28 de setembro, outra liderança Sateré-Mawé da região do rio Andirá, Plácido Dias de Oliveira, 80, morreu de Covid-19. Ele era tuxaua da aldeia Boa Vista e um dos fundadores do Conselho Geral da Tribo Sateré-Mawé (CGTSM). Já a região do Marau, dentro da área do município de Maués, perdeu seu líder histórico, o tuxaua Otávio dos Santos, 67, da aldeia São Benedito, no dia 16 de abril, também vítima da doença.

O caixão com o corpo do Tuxaua sendo transportado pela lancha (Foto: Aldamir Sateré)

Fonte: https://amazoniareal.com.br/povo-satere-mawe-perde-sua-maior-lideranca-o-tuxaua-geral-amado-menezes-16-10-2020/

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