Boa Vista (RR) – O Conselho Municipal de Saúde, vinculado à Prefeitura de Boa Vista (RR), decidiu em 5 de abril recomendar o remanejamento de vacinas destinadas às aldeias de Roraima para destinar à população da área urbana da capital. A alegação é a de que os indígenas estariam se recusando a se imunizar. A medida revoltou lideranças do Conselho Indígena de Roraima (CIR), que em nota considerou a justificativa criminosa e absurda, não levando em conta o direito fundamental dos povos indígenas à saúde e ignorando que centenas de indígenas já foram exterminados pela pandemia.

“Tirar as vacinas dos povos indígenas dá um grande impacto nas comunidades, que estão com a expectativa que a vacina é uma esperança para acabar de vez com a Covid”, disse o coordenador-geral do CIR, Edinho Batista, do povo Macuxi. “Quando se fala que os povos indígenas estão se recusando a tomar a vacina é uma inverdade, discriminação e preconceito com os povos indígenas.”

Assinado pelo secretário municipal de saúde de Boa Vista, Claudio Galvão dos Santos, o documento do Conselho Municipal de Saúde afirma que, “considerando as taxas de ocupação dos leitos clínicos e de UTI e o crescimento do número de casos e óbitos por Covid-19” e a “recusa da parte dos indígenas de serem imunizados contra a Covid-19 devido às suas crenças e costumes”, recomenda-se que as vacinas disponibilizadas e ainda em estoque para os indígenas sejam remanejadas para população urbana da capital Boa Vista.

Em entrevista à Amazônia Real, o presidente do Conselho Municipal de Saúde, Ricardo Matos, tentou justificar a recomendação. “Essa resolução surgiu quando começamos a observar que o estoque de vacinas para os povos indígenas se mantém estável, e nós temos vários amigos, conhecidos que são da área indígena, que nos reportaram que tinha um problema cultural, é um problema de convencimento dessa população”, disse Matos. Ele não explicou quem são estes “vários amigos” a que se referiu, nem qual tipo de relação estes mantêm com os indígenas para fazerem tal afirmação. Matos também não explicou o que seria esse “problema cultural”.

Dados do vacinômetro da Secretaria Estadual de Saúde de Roraima (Sesau) mostra que se encontram em estoque 25.559 doses de imunizantes contra o Sars-CoV-2, sendo que 21.800 devem ser destinadas à vacinação da população indígena aldeada e 3.759 doses em estoque para os demais grupos.

Questionado pela Amazônia Real se o Conselho Municipal de Saúde visitou alguma comunidade indígena e presenciou a recusa da vacina, o presidente disse que a recomendação foi criada com base no vacinômetro. “Trabalhamos com os dados oficiais que são lançados pela Secretaria Estadual de Saúde. Partindo desse princípio a resolução é recomendatória, nós comunicamos ao Ministério de Saúde, Ministério Público Federal, Ministério Público Estadual, a Secretária Estadual de Saúde, para que haja ciência”, alegou Ricardo Matos.

O CIR, representante dos povos Wapichana, Macuxi, Ingarikó, Sapará, Wai Wai, Taurepang, Yanomami e Yekuana, de 255 comunidades indígenas, repudiou a recomendação dos conselheiros. À Amazônia Real, o coordenador-geral do CIR lembrou que a atuação do poder público, principalmente dos órgãos de saúde, no atendimento às comunidades indígenas nesse período de pandemia continua sendo frágil e ineficiente.

“Reafirmamos que não aceitamos que nossas comunidades sejam sacrificadas e nossos parentes continuem morrendo nos hospitais pela falta de empenho do governador de Roraima, aliado do presidente da República, que não se empenhou na compra de vacina e que ignora a ciência”, afirma Edinho Batista. O Ministério Público Federal esclareceu que já existe investigação para apurar denúncias de desvio de doses de vacinas destinadas a indígenas.

Segundo o coordenador do CIR, as lideranças e as comunidades não foram consultadas sobre a estocagem das vacinas. “O Conselho Municipal de Saúde desconhece a realidade de nossas comunidades e não aceitamos que as vacinas destinadas aos povos indígenas sejam remanejadas, queremos que as vacinas cheguem às nossas comunidades o mais rápido possível”, protestou Edinho Batista.

Poucas recusas

Vacinação na região do Surucucu, em Roraima (Foto: Condisi-Y)

Rômulo Pinheiro, coordenador do Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami e Yekuana (Dsei), relatou que a recusa por parte dos indígenas para se imunizarem é mínima, e que o órgão enfrenta dificuldades para armazenar as vacinas nas comunidades.

“Aqui no Distrito Sanitário Yanomami a recusa é muito mínima”, garantiu, acrescentando que as equipes de vacinação conseguem convencer os que se recusam inicialmente estão tendo sucesso no trabalho de orientação.

Mas, segundo Pinheiro, há dificuldades que precisam ser sanadas pelas equipes de saúde, e um dos mais emergenciais é a questão da estocagem. “Nem todas as localidades têm energia elétrica com um freezer da vacina. Nesses locais, a equipe de saúde pega um isopor térmico com termômetro para que não haja perda da vacina, e esse isopor térmico dura só em torno de três dias”, enfatizou Rômulo Pinheiro.

Em nota enviada à Amazônia Real, a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), vinculada ao Ministério da Saúde, informou que, até esta quarta-feira (14), foram aplicadas a primeira dose da vacina contra a Covid-19 em 75% da população indígena a partir de 18 anos e 58% com a segunda dose.

O órgão confirmou que estuda a entrega de doses contra a Covid-19 para o Programa de Imunizações (PNI), quando possível, e desde que as doses sejam restituídas aos Dsei. A Sesai, sem explicar o motivo de destacar essa informação, ressaltou ainda que a vacinação não é obrigatória, reproduzindo retórica do presidente Jair Bolsonaro (sem partido).

Tuxaua diz que falta orientação

O povo Yanomami de Maturacá recebendo vacina (Foto: Condisi-Y)

“Eu fiz a minha parte como tuxaua. Tomei o medicamento para o meu povo me acompanhar. As pessoas que já foram vacinadas entenderam a importância”, afirmou Neudinho Costa, da comunidade Maturuca, região das serras, na Terra Indígena Raposa Serra do Sol.

Com uma população de 678 moradores, a comunidade já tem 517 indígenas vacinados, entre as primeira e segunda doses. Existem 167 pessoas pendentes para tomar a vacina, entre elas crianças e jovens até 18 anos, mulheres gestantes e que estão amamentando. De acordo com o vacinômetro da Sesau, o Dsei Yanomami apresenta 3.019 doses aplicadas e o Dsei Leste, 20.733.

Para o tuxaua, as notícias de que os povos indígenas não querem se vacinar não são verdadeiras. O que ocorre é a falta de um trabalho de conscientização dentro das comunidades.

“Toda essa questão que sai na mídia falando da vacina, que vai virar isso vai virar aquilo, faz com que alguns parentes fiquem com medo. E tem comunidades que ainda não tomaram nenhuma dose. O que falta são as equipes de saúde multidisciplinares atuarem nas áreas para aconselhar, explicar, ter palestra nessas comunidades”, afirmou.

A Sesai e os distritos sanitários deveriam, segundo o tuxaua, acompanhar as pessoas que vêm do interior para cidade, prestar mais apoio e organização para atender os povos indígenas.

Neudinho teme que se houver o remanejamento das vacinas as comunidades que ainda não receberam as doses serão as mais prejudicadas. “Se deixar as comunidades sem vacinas vai continuar como está, os povos indígenas morrendo, nossas lideranças morrendo. Tem comunidades indígenas que são de difícil acesso para a equipe de saúde chegar. Se deixar essas comunidades sem vacina, vão deixar esses povos desprotegidos”, resumiu.

A primeira pessoa a receber a vacina contra a Covid-19 em Roraima foi Iolanda Pereira da Silva, do povo Macuxi (Foto CIR)

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Esta reportagem é apoiada pela Open Society Foundations dentro do projeto “Marcas da Covid-19 na Amazônia”

 

 

Fonte: https://amazoniareal.com.br/prefeitura-de-boa-vista-quer-usar-vacinas-de-indigenas/

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