Por:  04/06/2020 às 18:41

Manaus (AM) – Às 5 horas desta quinta-feira (04), um enfermeiro, dois técnicos de enfermagem e um agente de combate a endemias deixaram às pressas a aldeia São Luís, onde funciona o Polo-Base do Médio Javari do Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) Vale do Javari, por terem testado positivo para a Covid-19 um dia antes. Sem que houvesse a substituição imediata desses profissionais de saúde, os indígenas do povo Kanamari (autodenominados Tüküna) da aldeia São Luís ficaram desprotegidos.

Localizada no município de Atalaia do Norte (distante 1.136 KM de Manaus), fronteira do Amazonas com Peru e Colômbia, a Terra Indígena Vale do Javari tem povos contatados há pouco mais de 40 anos, outros há 20 anos e alguns em condição de isolamento voluntário, como os Korubo e os Flecheiros.

As condições de saúde, com doenças crônicas como hepatite, malária, diabetes e pneumonia, tornam essa população ainda mais suscetível à infecção do novo coronavírus Na maioria das aldeias do Vale do Javari, as necessidades médicas, que já não costumam ser bem atendidas, e as invasões constantes do território potencializam a pandemia da Covid-19.

“A situação está muito preocupante agora. Toda a equipe do Dsei ficou doente. Eles começaram a sentir sintomas de febre alta, gripe e tosse. Quando ficaram agoniados, fizeram o teste. Hoje (04) uma equipe do Dsei veio na aldeia às cinco da manhã para removê-los. Antes disso, eles tiveram contato com vários Kanamari daqui da aldeia”, disse a liderança Luzia Kanamari à Amazônia Real, por meio de um telefone (orelhão) que funciona com placa solar instalado na aldeia São Luís, localizada à margem do rio Javari. “Muitos de nós ficamos com gripe forte, dores no corpo. Eu fiquei muito mal. Estamos nos tratando com nossos remédios mesmo.”

Nesta quinta-feira (4), a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) informou que o Dsei Vale do Javari providenciou a remoção dos quatro profissionais e “designou uma equipe de resposta rápida (ERR) para o monitoramento e controle da covid-19 em todo o polo-base”.  Segundo Luzia Kanamari, a equipe retirada ainda não foi substituída. “Disseram que vão mandar uma equipe nova, mas ninguém chegou ainda”, disse ela.

Os Kanamari desconfiam que um agente de endemia tenha transmitido o coronavírus no Polo-Base Médio Javari, pois ele chegou na comunidade no dia 22 de maio, pouco mais de um mês depois do restante da equipe. “O que sabemos é que todo o pessoal do Dsei (distrito sanitário) que está em Atalaia do Norte pegou a doença. O agente de endemia disse que o primeiro teste dele deu negativo, ainda em Atalaia. Mas depois deu positivo. Por isso, a gente quer que todos passem por medidas rigorosas antes de entrar aqui”, disse Luzia.

Luzia e o marido, Korá Kanamari, vice-presidente da Associação Indígena Kanamari do Vale do Javari (Akavaja), estão em São Luís desde o dia 24 de março, quando eles decidiram retornar à sua aldeia de origem junto com outras famílias da etnia. A intenção também, segundo ela, era realizar atividades de conscientização nas demais aldeias para evitar o contágio da doença.

“Iríamos ficar aqui 15 dias. Mas não deu. Estamos até agora e não sabemos quando vamos sair. Estamos preocupados porque começa a faltar produtos como sal. O pessoal está pescando todos os dias, mas está faltando algumas coisas. A gente quer que a Funai nos ajude aqui, traga os utensílios para pesca e caça, traga gasolina, para que não precisemos sair das aldeias”, disse ela.

Sesai afirma que indígenas tiveram contato com peruanos

Mulher Kanamari, da TI Vale do Javari, no Amazonas (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)

Em nota, a Sesai garante que os profissionais de saúde entraram na terra indígena “após passarem por rigoroso cumprimento de quarentena” e que eles “relatam desconhecerem a forma de contaminação, pois não tiveram contato com nenhum caso positivo”. No documento, o órgão insinua que a contaminação pode ter iniciado pelos próprios indígenas. “Eles [os profissionais] afirmam que, no último mês, houve comercialização e permuta de gêneros alimentícios entre indígenas e não indígenas brasileiros e peruanos, no perímetro do polo-base”, diz a nota.

Luzia refuta essa versão da Sesai. Segundo ela, um pequeno grupo de peruanos foi até o porto da aldeia São Luís no início de maio para doar banana. Mas não houve contato. “Os peruanos estavam entregando essas bananas porque eles estavam sem poder comercializar, já que está fechado o comércio em Atalaia do Norte. Mas quem foi pegar foram os profissionais de saúde. A gente não teve contato com eles. Aqui está tudo fechado. Os profissionais disseram que foram bem equipados para se proteger da covid. Isso aconteceu bem antes da chegada do agente de endemia”, diz a liderança.

Amazônia Real procurou a assessoria de imprensa da Funai para o órgão se manifestar a respeito do caso de Covid-19 no Vale do Javari e sobre as demandas dos indígenas, mas não recebeu respostas até a publicação desta matéria.

Da Sesai, a reportagem pediu esclarecimentos sobre o teor da sua nota de hoje, que sugere que a contágio pode ter ocorrido entre os indígenas em contato com os peruanos, mas o órgão não respondeu.

Sobre as declarações de Luzia a respeito do agente de endemia, a Sesai disse que “todos os profissionais foram submetidos ao período de quarentena e, portanto, estavam foram do período de transmissão”. Segundo a Sesai, “não há qualquer indício de que tenha sido o Agente de Endemias a contaminar os colegas”. Sobre a equipe removida, o órgão disse que “os profissionais com Covid são substituídos imediatamente para que não haja interrupção do atendimento”.

Faltam informações para os indígenas

Margem do rio Javari, na cidade de Atalaia do Norte, no Amazonas (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)

No boletim epidemiológico que a Sesai publica diariamente em seu site, consta que há 4 casos de Covid-19 registrado pelo Dsei Vale Javari. Mas esses dados estão desatualizados e são diferentes dos divulgados pela Prefeitura de Atalaia do Norte. Pelo boletim municipal mais recente (divulgado nesta terça-feira, 03), há 89 casos de Covid-19, sendo que 12 são em indígenas.

Há dois meses, após a chegada da pandemia do novo coronavírus em Manaus, capital do Amazonas, os indígenas do Vale do Javari ficaram em alerta. Para evitar a propagação dos vírus no território, grande parte dos indígenas das etnias que viviam na cidade de Atalaia do Norte, onde está localizado o território, retornou às aldeias: Kanamari, Mayoruna, Matis, Marubo e Kulina Pano.

Na aldeia São Luís, onde fica a unidade do Polo-Base Médio Javari, vivem atualmente 280 pessoas do povo Kanamari. O Polo-Base atende outras oito aldeias dos povos Kanamari e Kulina.

A população total da etnia no Vale do Javari é estimada em 1.400 pessoas. Os Kanamari ocupam 12 aldeias em quatro áreas na TI Vale do Javari. No rio Itacoaí, onde está a maioria das aldeias, no Médio Javari, no rio Curuçá e no rio Jutaí. Os Kanamari estão entre os primeiros povos contatados, ainda na primeira metade do século 20.

A TI Vale do Javari não tem acesso a serviços de telefonia convencional ou a modernas tecnologias de comunicação. Também não há conexão de internet em nenhuma das localidades. A comunicação entre as aldeias é apenas por equipamento de radiofonia. Em períodos chuvosos, como ocorre atualmente, são comuns as falhas nos sinais.

“Pior é que agora a gente nem sabe como está a situação nas outras aldeias atendidas pelo polo-base, porque nem todas têm orelhão e a radiofonia que usamos fica dentro da casa onde trabalham os profissionais de saúde. E ninguém quer entrar lá. As pessoas aqui estão com medo de pegar a doença”, afirmou Luzia.

Procurado para esclarecer a diferença sobre os números da doença no Vale do Javari, o coordenador do Dsei, Jorge Marubo, disse apenas que “são indígenas que estão na sede do município de Atalaia do Norte, que não estão nas aldeias”. A reportagem também enviou uma série de perguntas sobre a situação da pandemia na região, mas ele não respondeu.

Indagado sobre como acompanha os casos mais recentes de coronavírus no município, o presidente da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), Paulo Marubo, disse que tomou conhecimento que se trata de “pacientes que estavam em Manaus e que chegaram a Tabatinga e ficaram em quarentena”.

“Agora que estão vindo para Atalaia, chegaram ontem (03). Foi feita triagem. Eles iam para o rio Ituí; então deve ser do povo Marubo. A gente não tem informações oficializadas. Até porque as informações que a gente sabe é através desse tipo: mensagens, imagens, textos em grupos do Whatsapp. Eles não publicam oficializado para a gente ter no arquivo. O que está faltando é essa transparência e confiança. A gente tem pedido há muito tempo isso, antes da pandemia”, afirmou Paulo.

Liderança afirma que podem ocorrer suicídios

Higson Kanamari está preocupado com possíveis suicídios (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)

O presidente da Associação Indígena Kanamari do Vale do Javari (Akavaja), Higson Kanamari, teme que a covid-19 aumente a letalidade dos povos da terra indígena e, em particular, nas aldeias da sua etnia.  Ele também se mostrou preocupado com as consequências na saúde mental, levando muitos deles a cometer suicídio.

“Quem aparece com sintoma gripal costuma se isolar. Se piorar, se perceberem que não tem cura, podem querer se suicidar. Se não tiver alguém conversando com eles, pode acontecer o pior.  É muito complicado”, afirmou. Ele destacou as longas distâncias para acesso de atenção clínica nos hospitais em caso de agravamento da doença.

Doença pode avançar para todos os rios

Embarcação no rio Itacoaí, na TI Vale do Javari, no Amazonas
(Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)

Os povos indígenas são particularmente vulneráveis a pandemias por sua vulnerabilidade social, por sua condição marginalizada e por ser uma população negligenciada pelo Estado brasileiro. No contexto do Vale do Javari, os Kanamari são considerados os povos contatados mais vulneráveis, conforme relatos de documentos da Coordenação Regional da Funai (CR) Atalaia do Norte que fizeram parte de uma ação civil pública do Ministério Público Federal.

A saída da equipe do Dsei da aldeia São Luís deixou descoberta a atenção à saúde, causando preocupação nos indígenas. Luzia Kanamari contou que um Kanamari foi diagnosticado recentemente com malária e deveria ter iniciado o tratamento nesta quinta-feira. Há muitos outros casos de malária entre esse povo. “O microscopista (agente de endemia) disse que 80% dos moradores da aldeia estão com malária. E pode piorar porque também temos pessoas com hepatite”, disse.

As condições excepcionais do Vale do Javari tornam a situação dos indígenas ainda mais preocupante, dizem especialistas ouvidos pela Amazônia Real. O antropólogo Lino João de Oliveira Neves, professor da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) que trabalhou durante anos entre os Kanamari e foi um dos autores do laudo que resultou na demarcação do território, disse que “apesar de ser algo que já se podia esperar, a notícia da infecção é muito grave.

Se não houver um enfrentamento rigoroso, vai avançar para todos os rios. Estou muito temeroso com o QUE pode vir acontecer com o Vale do Javari. Tomara que eu esteja enganado, mas aquela região tem tudo para explodir”, afirmou Lino João.

O indigenista aposentado Armando Soares se disse “nocauteado com informações sobre infecção nas aldeias” e mais ainda no Vale do Javari, onde ele trabalhou quando foi servidor da Fundação Nacional do Índio (Funai). “Com tanta informação e a gente que teve um convívio com os índios nas suas aldeias dentro das terras indígenas sabe das consequências que isto vai ter. Da dificuldade deles se isolarem na própria aldeia. A relação dos povos isolados com estes organismos invisíveis e novos é muito difícil”, afirmou.

Reverenciados por seu conhecimento, os anciões também são a maior preocupação para Armando. “Sabendo que estão morrendo tantos velhos e que é exatamente isso que vai acontecer em todas as aldeias nos deixa mais preocupado ainda. Todas as referências dos mais jovens, que já são poucas, vão embora e isto vai trazer um transtorno enorme”, afirmou Armando Soares.

Meninos Kanamari, da Terra Indígena Vale do Javari, no Amazonas
(Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)

 

 

Fonte: https://amazoniareal.com.br/profissionais-de-saude-do-vale-do-javari-com-covid-19-sao-removidos-as-pressas-de-terra-indigena/

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