Philip M. Fearnside, Lucas Ferrante, Aurora M. Yanai e Marcos Antonio Isaac Júnior


A Amazônia brasileira se encontra dividida entre seu lado leste, onde a floresta é bastante desmatada e fragmentada, e o lado oeste (ao oeste do Rio Purus, no Estado do Amazonas), onde a floresta está em grande parte intacta devido à falta de acessibilidade por estradas [1, 2]. Esta situação na parte ocidental da Amazônia está prestes a mudar radicalmente com uma série de ameaças explicadas nesta série. Os impactos de trazer para uma nova fronteira na região “Trans-Purus” os atores e processos do “arco de desmatamento” (a faixa nas bordas sul e leste da floresta amazônica onde o desmatamento tem sido historicamente concentrado) seriam enormes.

A região Trans-Purus é chave para a manutenção de biodiversidade, como mostrado pelo estudo publicado na revista Nature Climate Change por Gomes e colaboradores [3]. Essa tão necessária análise do efeito combinado do desmatamento projetado e da mudança climática na biodiversidade amazônica leva a conclusões sombrias, com cenários de desmatamento e mudança climática juntos, resultando em 49,6% das 6.394 espécies arbóreas com dados confiáveis sendo ameaçadas até 2050, segundo os Critérios A4, B1 e D2 da União Internacional pela Conservação da Natureza e dos Recursos Naturais (IUCN). No entanto, devido às ameaças à região Trans-Purus, a perspectiva na Amazônia é ainda mais terrível do que os resultados do estudo de Gomes e colaboradores [3].

A descoberta de que (apenas) metade das espécies de árvores fica ameaçada depende fortemente do grande bloco a oeste do rio Purus permanecer intacto. Esse bloco de floresta permanece intacto no cenário de desmatamento utilizado em Gomes e colaboradores [3] por ser baseado na projeção do modelo de Soares-Filho e colaboradores [4] (Figura 1), que não considera as estradas planejadas para a região Trans-Purus, onde abririam esse vasto bloco de floresta para a entrada de desmatadores, favorecendo a ocupação ilegal no entorno das estradas e expansão da fronteira agropecuária do sul do Amazonas.

Figura 1. A simulação de desmatamento na Amazônia até 2050 por Soares-Filho e colaboradores [4] usado nos cálculos de Gomes e colaboradores [3]. O grande bloco de floresta ao oeste do rio Purus continua completamente intacto pois o modelo não inclui as estradas planejadas para esta área, como a AM-366.

Além da biodiversidade, a região Trans-Purus é crítica para manter o estoque de carbono na floresta que evita o agravamento do aquecimento global. Os estoques nesta área são grandes, tanto devido à sua vasta extensão como pela alta biomassa da floresta [5]. Muito do carbono nas árvores e no solo abaixo da floresta seria emitido para a atmosfera se esta floresta for perdida, seja por desmatamento proposital [6] ou pelos incêndios florestais que são induzidos pela fragilização da floresta causada por exploração madeireira e pela presença de fontes de ignição nas queimadas de pastagens e desmatamentos vizinhos [7]. Este cenário tornaria a Amazônia uma fonte ainda maior de impacto sobre o efeito estufa [8]. A Amazônia também é um dos lugares do mundo com os maiores impactos previstos do aquecimento global [9].

A região Trans-Purus é chave para manter o regime de chuvas, tanto na própria Amazônia ocidental como em outras partes do Brasil e em países vizinhas como Argentina [10]. A cidade de São Paulo, maior cidade do País, dependente desta região até para a água que a população bebe. Mesmo com a Trans-Purus ainda intacta, em anos secos essa cidade já foi obrigada a recorrer ao “volume morto” dos seus reservatórios, com poucos dias de margem de antes de acabar a água por completo (e.g., [11]).

A época chuvosa em São Paulo, quando os reservatórios enchem, coincide com o máximo do transporte de vapor d’água pelos “rios voadores” – os ventos que passam de leste para oeste sobre a região Trans-Purus, fazem uma curva por não conseguirem passar por cima dos Andes, e seguem em direção a São Paulo. Estes ventos chegam a fornecer 70% da chuva na região Sudeste brasileira durante a sua época chuvosa de dezembro a fevereiro [12]. A continuação deste grande serviço ambiental depende de manter a floresta em pé, pois as árvores reciclam água, devolvendo ao ar uma boa parte da água que cai como chuva e assim abastecendo os rios voadores [13].

O impacto de abrir a região Trans-Purus ao desmatamento também trará graves impactos sobre as populações tradicionais que habitam a área. Os ribeirinhos e extrativistas tradicionais podem ser expulsos com a chegada de grandes grileiros e fazendeiros, como vem acontecendo em outras fronteiras de desmatamento (e.g., [14]). Os povos indígenas seriam severamente impactados [15].


A imagem deste artigo mostra árvore derrubada em período de estiagem do rio Purus, no município de Pauini, no sul do Amazonas (Foto: Alberto César Araújo)


NOTAS

[1] Fearnside, P.M. 2017. Deforestation of the Brazilian Amazon. In: H. Shugart (ed.Oxford Research Encyclopedia of Environmental Science. Oxford University Press, New York, EUA.

[2] Fearnside, P.M. 2018. BR-319 e a destruição da floresta amazônica. Amazônia Real, 19 outubro de 2018.

[3] Gomes, V.H.F., I.C.G. Vieira, R.P. Salomão & H. ter Steege. 2019. Amazonian tree species threatened by deforestation and climate changeNature Climate Change 9: 547–553.

[4] Soares-Filho, B.S., D.C. Nepstad, L.M. Curran, G.C. Cerqueira, R.A. Garcia, C.A. Ramos, E. Voll, A. Mcdonald, P. Lefebvre & P. Schlesinger. 2006. Modelling conservation in the Amazon BasinNature 440(23): 520-523.

[5] Nogueira,E.M., A.M. Yanai, F.O.R. Fonseca & P.M. Fearnside. 2015. Carbon stock loss from deforestation through 2013 in Brazilian AmazoniaGlobal Change Biology 21: 1271–1292.

[6] Fearnside, P.M. 2000.  Global warming and tropical land-use change: Greenhouse gas emissions from biomass burning, decomposition and soils in forest conversion, shifting cultivation and secondary vegetationClimatic Change 46(1-2): 115-158.

[7] Berenguer, E., J. Ferreira, T.A. Gardner, L.E.O.C. Aragão, P.B de Camargo,. C.E. Cerri, M. Durigan, R.C. de Oliveira Jr., I.C.G. Vieira & J. Barlow. 2014. A large-scale field assessment of carbon stocks in human-modified tropical forestsGlobal Change Biology 20(12): 3713–3726.

[8] Fearnside, P.M. 2003. A Floresta Amazônica nas Mudanças Globais. Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia-INPA, Manaus, AM. 134 p.

[9] Fearnside, P.M. 2018-2019. Amazônia e o aquecimento globalAmazônia Real. 23 de novembro de 2018-07 de março de 2019.

[10] Zemp, D.C., C.-F. Schleussner, H.M.J. Barbosa, R.J. van der Ent, J.F. Donges, J. Heinke, G. Sampaio & A. Rammig. 2014. On the importance of cascading moisture recycling in South AmericaAtmospheric Chemistry and Physics 14: 13.337–13.359.

[11] Soriano É., L.R. Londe, L.T. Di Gregorio, M.P. Coutinho & L.B.L. Santos. 2016. Crise hídrica em São Paulo sob o ponto de vista dos desastresAmbiente & Sociedade 19(1): 21-42.

[12] van der Ent, R. J., H.H.G. Savenije, B. Schaefli & S.C. Steele-Dunne. 2010. Origin and fate of atmospheric moisture over continentsWater Resources Research 46: art. W09525,

[13] Fearnside, P.M. 2015. Rios voadores e a água de São PauloAmazônia Real, 09 de fevereiro – 09 de março de 2015.

[14] Pontes, F. 2019. Grilagem de terra impõe violência em região conhecida como “Faroeste Amazônico”Amazônia Real,17 de junho de 2019.

[15] Ferrante, L., M.P. Gomes & P.M. Fearnside. 2020. BR-319 ameaça povos indígenasAmazônia Real, 02 de abril – 29 de junho de 2020.


Philip Martin Fearnside é doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan (EUA) e pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus (AM), onde vive desde 1978. É membro da Academia Brasileira de Ciências. Recebeu o Prêmio Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), em 2007. Tem mais de 600 publicações científicas e mais de 500 textos de divulgação de sua autoria que estão disponíveis aqui.

Lucas Ferrante é doutorando em Biologia (Ecologia) no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). Tem pesquisado agentes do desmatamento, buscando políticas públicas para mitigar conflitos de terra gerados pelo desmatamento, invasão de áreas protegidas e comunidades tradicionais, principalmente sobre Terras indígenas e Unidades de Conservação na Amazônia (lucasferrante@hotmail.com).

Aurora Miho Yanai é pós-doutoranda no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) trabalhando com modelagem de desmatamento na região Trans-Purus. Ela tem mestrado e doutorado pelo Inpa em ciências de florestas tropicais e tem experiência na análise e modelagem de desmatamento no sul do Amazonas.

Marcos Antonio Isaac Júnior é pós-doutorando no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) trabalhando com modelagem de desmatamento na região Trans-Purus. Ele tem mestrado e doutorado em engenharia florestal pela Universidade Federal de Lavras e tem experiência em modelagem e redes neurais.

Fonte: https://amazoniareal.com.br/regiao-trans-purus-a-ultima-floresta-intacta-1-por-que-e-importante/

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