Por Izabel Santos e Paulo Rodrigues Desana, da Amazônia Real 

Manaus e São Gabriel da Cachoeira (AM) – O município de São Gabriel da Cachoeira, na região do Alto Rio Negro, localizado no noroeste do Amazonas, enfrenta uma explosão de casos de Covid-19. No período de dois meses foram confirmados 741 casos e 21 mortes, segundo a Fundação de Vigilância em Saúde (FVS). As primeiras notificações da doença foram divulgadas em 26 de abril pelo Ministério da Defesa.

O município está em sexto lugar entre 59 municípios do estado – no total são 62, – que mais notificaram casos confirmados de Covid-19. O primeiro é a capital Manaus, com 14.402 casos e 1.248 mortes; em segundo, Manacapuru com 2.051 notificações e 84 vítimas; em terceiro, Coari com 1.580 e 45 mortes; em quarto ,Tefé com 1.429 casos e 51 óbitos; e, em quinto, Parintins com 1.001 casos confirmados e 50 mortes.

No total, o Amazonas já registrou, até o momento, 31.949 casos de Covid-19 e 1.852 mortes na pandemia, decretada em 11 de março pela Organização Mundial de Saúde.

De acordo com informações do Comitê de Enfrentamento e Combate à Covid-19 em São Gabriel da Cachoeira, pelo menos 13 indígenas morreram do novo coronavírus no município. São pessoas das etnias Baré (4), Piratapuia (3), Desana (2), Baniwa (1), Tariano (1), Tukano (1) e Wanano (1).

O número de vítimas indígenas é bem menor para a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), do Ministério da Saúde, que divulgou três mortes na região do Alto Rio Negro porque contabiliza apenas pessoas “aldeadas”, ou seja, os indígenas que moram em terras indígenas homologadas e que recebem cobertura das atenções do Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei).

Entre os indígenas mortos está o artista plástico, desenhista, pesquisador e liderança indígena, Feliciano Pimentel Lana, de 83 anos, do povo Desana, que faleceu dentro de casa na comunidade São Francisco, no Alto Rio Negro, sem atendimento de saúde, segundo sua família.

A situação da região é preocupante na pandemia de coronavírus. Dos 45 mil habitantes de São Gabriel da Cachoeira, a maioria é indígenas de 23 etnias diferentes.

São Gabriel da Cachoeira, que fica distante 850 quilômetros de Manaus, faz fronteira com a Colômbia e a Venezuela. O acesso à região é por via fluvial e aérea. Cerca de 25 mil indígenas vivem em 750 comunidades. São 11 terras indígenas na região do Alto Rio Negro, que abrange os municípios de São Gabriel da Cachoeira, Santa Izabel do Rio Negro e Barcelos.

Sepultamentos de pessoa indígena vítima da Covid-19, em São Gabriel da Cachoeira
(Foto: Paulo Desana/Dabakuri/Amazônia Real/09/05/2020)

Para o atendimento na pandemia da covid-19, a população tem acesso apenas ao Hospital de Guarnição do Exército, que não tem Unidade de Terapia Intensiva (UTI). No dia 8 de maio faltou oxigênio nos cilindros da unidade. O problema foi solucionado após o Ministério Público do Amazonas pedir uma operação de socorro ao governo do estado e das Forças Armadas, que tem forte presença na região de fronteiras.

O município decretou o bloqueio total (lockdown) do isolamento social de 09 a 19 de maio, mas a população continuou nas ruas, principalmente para receber o pagamento do auxílio emergencial do governo federal na rede bancária. (Leia mais no final do texto)

Com a situação classificada como calamidade, um pequeno grupo de moradores realizou na manhã desta terça-feira (26) o ato “Manifeste-se Já” com motoristas em carros e motocicletas reivindicando melhorias no atendimento de saúde em São Gabriel da Cachoeira.

Os manifestantes, com máscaras no rosto, levaram faixas com as frases: “Socorro! Precisamos Hospital de Campanha”; “Queremos Hospital de Campanha”; e “Mais Apoio aos Profissionais da Saúde”.

A carreata rodou as ruas da cidade por cerca de três horas, entre a concentração, no bairro Praia, e a dispersão, em frente à Prefeitura. Quem estava nas ruas, bateu palmas e panelas em protesto contra a falta de atenção do poder público.

Protesto pela saúde de São Gabriel da Cachoeira, 26 de maio de 2020 Foto de Paulo Rodrigues Desana/Amazônia Real
Mulher bate panela em protesto pela saúde de São Gabriel da Cachoeira
(Foto: Paulo Desana/Dabakuri/Amazônia Real/26/05/2020)

A radialista Aldecimar Veiga Moura, da etnia Tukano, que ficou responsável pela comunicação no carro de som da carreata, disse à agência Amazônia Real que perdeu um tio para a Covid-19. Ela disse que sua avó está doente porque ficou cuidando do filho convalescente.

“Hoje a gente vive uma dificuldade imensa na nossa região. Me sinto na obrigação de participar dessa pequena mobilização, sair na rua hoje. Me disponibilizei e fiz questão de estar aqui. Não é fácil, principalmente para quem ainda carrega a dor do luto”, disse Aldecimar, que é uma liderança vinda da formação de jovens da Igreja Católica.

Aldecimar Moura contou como foi difícil o tratamento do tio no Hospital de Guarnição do Exército. “Meu tio sofreu por duas semanas, com falta de ar. Ele procurou atendimento médico, mas o mandaram de volta para casa, onde aguardou 11 dias. Foi internado em um sábado e veio a falecer no domingo. Não foi fácil, porque a gente não pôde se despedir. Ele foi sepultado por volta de 1h da manhã. Isso causa na gente uma revolta muito grande”, relata a indígena.

O presidente do Comitê de Enfrentamento e Combate à Covid-19 em São Gabriel da Cachoeira, indígena Marivelton Barroso, do povo Baré, avalia com preocupação a situação do município e cobra uma estratégia de saúde pública tanto para a sede do município quanto para as comunidades e terras indígenas.

“O aumento do número de casos e mortes não vai parar se não houver uma estratégia de tratamento e testagem em massa da população. Tudo ainda pode se agravar muito mais”, disse ele à reportagem.

“As coisas agora estão piorando.Tanto nas comunidades como na cidade tem aumentado muito a contaminação. É preciso não só fazer teste rápido; é preciso que as instituições sanitárias implementem de forma urgente um plano para tratamento dos infectados”, completa Marivaldo Baré, que é também presidente da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn).

Hospital de Guarnição do Exército não tem UTI
(Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real/2017)

A professora Lorena Araújo, do povo Tariano, também critica a situação da saúde no município. Ela conta que seus pais e uma irmã apresentaram sintomas da doença, mas não fizeram teste.  “Muitos não conseguem fazer teste, porque [na unidade de saúde] falam que não tem teste. Os doentes voltam para suas casas e recorrem aos remédios caseiros”, conta ela.

“A situação se torna mais complicada com esse aumento de casos porque não temos hospital de campanha e o único hospital já colapsou”, acrescenta Lorena.

A reportagem procurou a Prefeitura de São Gabriel da Cachoeira e o Ministério da Defesa para que os dois órgãos se pronunciassem sobre a construção de um hospital de campanha na cidade, mas não houve respostas às perguntas da agência Amazônia Real.

No dia 18 de maio, o Ministério da Defesa divulgou nota informando que enviou ao Hospital de Guarnição de São Gabriel da Cachoeira profissionais de saúde e duas toneladas de insumos hospitalares. “Os  materiais de saúde entregues foram: sete aspiradores portáteis, sete desfibriladores, 15 oxímetros, aparelhos que medem o nível de oxigênio no sangue, oito ventiladores pulmonares mecânicos, 300 frascos de álcool gel de 500 ml, 6,8 mil aventais, 4 mil toucas, 3 mil máscaras, 200 macacões Tyvek 54 e 70 óculos para proteção cirúrgica”, diz a nota.

Lockdown não surtiu efeito

Protesto pela saúde de São Gabriel da Cachoeira, 26 de maio de 2020 Foto de Paulo Rodrigues Desana/Amazônia Real
Populares fazem protesto por melhoria na saúde de São Gabriel da Cachoeira
(Foto: Paulo Desana/Dabakuri/Amazônia Real/26/05/2020)

São Gabriel da Cachoeira esteve em Lockdown de 09 a 19 de maio, mas, nesse período, o número de casos na cidade aumentou 937%; são atualmente 662 casos. No primeiro dia de suspensão total da circulação de pessoas na cidade, o número de casos era de 79. Segundo moradores da cidade com os quais a reportagem conversou, a medida foi estendida por mais tempo, até dia 30 de maio.

“O lockdown ajudou bastante e poderia ajudar muito mais se as pessoas cumprissem e obedecessem, pois isso é uma forma de conter a disseminação do vírus para que [o número de casos] pudesse baixar, mas, até agora, mesmo com as medidas ainda continua alto”, lamenta Marivelton Baré.

Para Lorena Araújo, a própria população não levou a sério o lockdown e não respeitou todas as leis impostas por meio de decretos. “Mesmo com lockdown ainda tem gente circulando nos horários proibidos. Para alguns, falta a informação e outros é teimosia”, diz a professora.

Marivelton Baré diz que um hospital de campanha faria a diferença no atendimento à população. “Aqui temos uma única unidade hospitalar que comporta muito pouco. Tem um local de referência para triagem que a escola Inês Penha, mas há uma insuficiência grande para tratamento aqui”, disse.

O presidente do Comitê de Enfrentamento e Combate à Covid-19 em São Gabriel da Cachoeira afirma que nas comunidades a situação é urgente para implantar  enfermarias de campanha. “Já apresentamos a proposta a Sesai, Susam e MPF. Seria uma forma de contenção, pois os tratamentos aqui, em sua maioria são por medicina tradicional, porque as equipes não conseguem chegar para atender toda a demanda e há uma falta de medicamentos”, conclui Marivelton Baré.

Uma vitória do movimento indígena

Mulheres indígenas em protesto em Manaus (Foto:Amazônia Real/04/05/2020)

Nesta terça-feira (26), os governos federal e estadual atenderam uma reivindicação dos povos indígenas, que é a implantação de uma política pública de saúde específica em Manaus para esta população. Na capital, vivem mais de 30 mil pessoas em comunidades localizadas no contexto urbana. A falta de um hospital de campanha foi motivo de protesto em 4 de maio, quando o ex-ministro da Saúde, Nelson Teich, visitou a capital amazonense, das mulheres indígenas Vanda Ortega, do povo Witoto, Natalina Martins Ricardo, do povo Baré, e Luciana Vasconcelos, do povo Munduruku.

Em Manaus, o ministro interino da Saúde, Eduardo Pazuello, e o governador Wilson Lima (PSC), inauguraram uma ala hospitalar para tratamento de pacientes indígenas com a Covid-19, no Hospital Nilton Lins, que foi contratado pelo governo estadual ao custo de custo mensal de R$ 866 mil.

Para os indígenas, serão destinados 53 leitos exclusivos, sendo 33 leitos clínicos e 20 de alta complexidade. “A ala conta com os profissionais de saúde treinados para atendimento humanizado aos povos tradicionais e com espaço destinado a um pajé, para oferecer o acompanhamento tradicional conforme cada cultura, além dos protocolos médicos convencionais”, diz nota do governo estadual.

“A gente está na expectativa de que consiga atender o indígena da melhor forma possível para minimizar os impactos da Covid-19 na vida dos nossos povos”, disse a técnica emenfermagem Vanda Ortega Witoto, liderança do Parque das Tribos, sobre o novo atendimento aos povos indígenas no Hospital Nilton Lins.

No boletim epidemiológico divulgado nesta terça-feira (26), a Sesai informou que o coronavírus infectou 905 indígenas e matou 42 pessoas. Os dados não incluem povos que vivem nas comunidades de cidades e nem divulgam as etnias das vítimas.

No Amazonas, segundo a Fundação de Vigilância em Saúde (FVS) foram notificados 470 casos de Covid-19 e 29 mortes entre indígenas das regiões Alto Rio Solimões (19), Médio Rio Solimões (4), Alto Rio Negro (3), Manaus (3) e Parintins (1).

Para a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasil (Coiab), que também monitora a pandemia independente dos dados da Sesai, até segunda-feira (25) já notificou mais 129 indígenas contaminados com o vírus e 85 mortes por Covid-19.

Ajuda humanitária internacional 

Enquanto os governos estadual e federal não decidem sobre a criação de um hospital de campanha em São Gabriel da Cachoeira, a população conta com ajuda humanitária internacional. A organização Médicos Sem Fronteiras (MSF) está na cidade para prestar assistência “a comunidades indígenas, com pouco acesso a cuidados médicos”, informou à imprensa a assessoria de comunicação da MSF em Manaus. A organização está construindo um plano estratégico com lideranças e organizações indigenistas locais para prestação de atendimento às áreas remotas.

Veja a manifestação em São Gabriel da Cachoeira

Veja os números da pandemia no Brasil.

 

 

Fonte: https://amazoniareal.com.br/sao-gabriel-da-cachoeira-e-o-sexto-municipio-com-mais-casos-de-covid-19-no-amazonas/

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