Brasília (DF) – Patrícia Juruna tem 27 anos e ocupa espaços políticos em diversas instituições indígenas da bacia amazônica (tanto nacionais, como a APIB, Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, como panamazônicas), atuando principalmente nos setores de juventude e mulheres. Nessa entrevista, realizada no último dia do Acampamento Terra Livre 2018 (ATL), que aconteceu no mês de abril, em Brasília, Patrícia Juruna conta sobre a sua trajetória pessoal e política: a luta de seu povo contra a usina de Belo Monte e o início de seu engajamento pessoal contra os megaprojetos da Bacia do Rio Tapajós e junto a mulheres indígenas:

“Sou da Aldeia Boa Vista, no município de Vitória do Xingu, bem próximo a Altamira, no sudoeste do Pará. Mas não moro em meu território. Vivo em Santarém, também no Pará. Faz quase dez anos que vivo em Santarém, onde estou terminando o curso de antropologia. Por essas e outras questões que estou fora do meu território.

O meu pai não é indígena, e eu saí da aldeia aos três anos de idade. Fomos morar em uma cidade chamada Rurópolis, próxima a Santarém. Cresci nessa cidade, em uma realidade muito diferente daquela dos meus parentes, que estão na aldeia… Tive uma educação de não indígena. Estudei em escolas de brancos, em Rurópolis, e em todas as férias íamos para a aldeia.

Quando eu tinha quinze anos de idade, meu pai foi embora de Rurópolis para Santarém, a trabalho, e eu decidi ir também para estudar. No começo nem ele nem minha mãe queriam. Mas em Santarém eu ganhei mais independência e comecei a me interessar mais por minha história.  É totalmente diferente quem vive na aldeia de quem vive na cidade. Totalmente diferente.

Quando eu terminei o ensino médio, aos 17, percebi que Santarém era também pequena para mim, e decidi ir para Manaus, contra a vontade dos meus pais, de novo [fala rindo]. Morei três anos em Manaus e cursei contabilidade: pois minha ideia era ter recursos e voltar pra minha região no Xingu. Mas então acabei voltando para Santarém, e decidi estudar antropologia, em que nós, povos indígenas, somos objetos de estudos. E foi aí que veio um despertar total da minha etnicidade, e eu entendi o quanto precisava conhecer sobre mim mesma. Sempre que eu voltava da aldeia sentava junto com a minha tia Cândida, que sabe muito do nosso povo, sentava com ela para escutar. Ela que foi me transmitindo tudo o que eu não tive na minha infância, que as pessoas tiveram na aldeia e eu não.

Tia Cândida sempre contava a história da minha bisavô, que também casou com um não-indígena. Na época, nosso povo tinha alguns conflitos étnicos com o povo Kayapó. Isso há muito, muito tempo atrás. E eles invadiram nossa aldeia, e ela fugiu para a mata pra não serem pega. Porque matavam os homens e roubavam as mulheres… era algo comum [nessas guerras]. Então ela fugiu para mata e conseguiu se esconder, e chegou no acampamento de seringueiros, no meio da mata, onde eles dormiam e cuidavam da seringa. Ela era muito jovem, e lá conheceu um seringueiro branco, o Plácido. Eles se casaram e ela então passou a ser chamada de Francisca.

Onde hoje é nossa aldeia, do lado, era tudo nosso. E quando o Plácido morreu, com essas coisas de fiado, minha bisavó foi dividindo a nossa terra, dando terrenos para outras pessoas. Aí ela casou com outro homem, esse sim indígena, do povo Arara. E assim ficou nosso território, como é hoje, até ser reconhecido como reserva indígena.

Movimento das Mulheres

Manifestação dos indígenas na Esplanada dos Ministérios (Foto: Yanahin Matala Waurá/Amazônia Real)

Não me considero feminista. Não trabalho nessa linha. Nosso coletivo de mulheres [indígenas] não levanta essa bandeira. Acho que é uma discussão que estamos começando no Brasil, e que tem que ser discutida mesmo. Você pode encontrar mulheres nas aldeias, mas principalmente na cidade, que levantam a bandeira… mas muitas que não. Que nem sabem o que é isso, o que esse termo significa. Então, hoje, eu não levanto essa bandeira, mas ninguém sabe como será amanhã, né?

Faço parte de um coletivo de mulheres indígenas, localizado em Santarém, no Baixo Tapajós, que se chama Surará dos Tapajós. Nessa região temos 13 povos, e quase oito mil indígenas. Esse grupo de mulheres existe desde 2016. Somos amigas e estamos na militância juntas. Surará quer dizer guerreiras, e sempre nos chamavam assim. Ano passado percebemos que precisávamos estar mais organizadas, institucionalmente, daí o nome do coletivo ganhar força institucional. Trabalhamos na região de Santarém questões de gênero junto a mulheres indígenas: questões do empoderamento, desse auto-cuidado, do processo de cura… Tanto na aldeia quanto na cidade é preciso ter cuidados consigo mesma e com as outras. Ano passado fizemos diversas rodas de conversas com quem estava na cidade… momentos para desabafar, para colocar para fora aquilo que nos estava machucando, magoando.

Essas rodas serviram de diagnósticos para o que estávamos passando. Foi quando começaram a surgir questões importantes, e que não falávamos para ninguém. Questões de preconceito e de violência. Nisso, junto com o Conselho Indígena dos Rios Tapajós Arapiuns (CITA) organizamos o Encontro de Mulheres Indígenas do Baixo Tapajós. Enquanto coletivo, estamos inseridas nesses espaços, auxiliando na organização dessas atividades. Mas também tem as que organizamos nós mesmas, como a Caravana de Cura e Empoderamento de Mulheres Indígenas do Baixo Tapajós, que vão ser três barcos: um saindo do Tapajós, outro do Arapiuns e outro de Santarém. A expectativa é de 120 mulheres, e que vamos trabalhar esses fortalecimentos das mulheres e questões delicadas, como a violência doméstica.

Movimento contra Belo Monte

Indígenas na Esplanada dos Ministérios, durante o 15o Acampamento Terra Livre (Foto: Yanahin Matala Waurá/Amazônia Real)

Entrei no movimento indígena em 2014. Antes eu só acompanhava… eu era aquela que prestava atenção nas coisas, mas não me envolvia, não falava, não pegava responsabilidades… estava ali. E em 2014, a partir de problemas relacionados à Universidade [refere-se à UFOPA – Universidade Federal do Oeste do Pará], tivemos uma reunião entre indígenas e a reitoria. E eu não me reconheci: peguei o microfone e falei sobre o que estava acontecendo. Dali, muitas pessoas me disseram: “você fala muito bem!”, e me incentivaram a participar e seguir.

Na minha família, tem toda uma geração de lideranças que são mulheres. A minha Pajé, que é uma das pessoas que eu mais respeito do meu povo, é a tia Cândida, com quem aprendi muito… ela, juntamente com a sua filha Sheila, lutaram muito politicamente para que nosso povo fosse reconhecido pela própria Funai – na década de 1990 não era nem reconhecido. Elas vieram carregando essa bandeira, e depois lutando contra Belo Monte. Ainda quando estava no papel, a Sheila viajava muito, lutava muito. Ela sempre foi uma grande referência para mim.

Mas mesmo tendo essas mulheres, eu digo que ainda não tinha despertado para a militância. No meu ponto de vista, todo mundo tem o seu momento e o seu processo. E a gente precisa muito estar motivando os outros. Precisa disso… um empurrãozinho para entrar na luta e somar. Com isso entrei no movimento no Baixo Tapajós, na universidade, e quando me dei conta, já estava lutando com os parentes do Baixo Tapajós. lutando por outras pautas, em ocupações. Quando eu entrei, já foi assim: “pá!”. Nesse mesmo ano, o movimento fez uma ocupação na prefeitura, pela educação indígena, e passei a me sentir parte dessa luta.

O processo de Belo Monte foi um processo muito violento. Quem morava lá no Xingu, era obrigado a deixar a sua terra, e começaram a inventar mentiras, como dizendo: “se você não vender a sua casa agora, você não vai ter nada”. Muitos ribeirinhos perderam seus imóveis, seus sítios. Por valores irrisórios! Foram migrando para periferia de Altamira. E muitos nem tiveram a compensação prometida… tiveram que sair sem receber nada. O governo vem com o discurso que a Hidrelétrica é sustentável… eu fico tão indignada com isso, porque não é sustentável nem do ponto de vista ambiental nem social: aquelas pessoas tinham o seu modo de vida, que não foi respeitado. Elas viviam a vida toda, e de repente tiveram que sair… você é obrigado a sair. Naquela parte, onde teve o reservatório, na frente de Altamira, essas pessoas tiveram que sair. Elas não tiveram opção: era sair ou sair. Diziam: “você tem até tal data pra sair!”. A gente, por exemplo, não pode chegar em um cemitério dos brancos, que para vocês é sagrado, e colocar nossa aldeia lá em cima, e sair quebrando tudo. E por que os não-indígenas podem fazer isso com a nossa terra?

Então se você for observar, nós estamos no nosso território, buscando novas maneiras de preservar, pois sabemos que tudo é muito dinâmico, inclusive a fauna e a flora. Mas aí, de repente, tu acorda, e não tens mais aquele território. Simplesmente chega um monte de homem branco, e diz: “aqui vocês não podem ficar, pois vamos construir tal e tal coisa para o bem da população brasileira”. Mas que população é essa? E nós somos o que nisso tudo? Nós, povos indígenas, não estamos fazendo um bem só para gente, mas para toda a humanidade, que todo mundo necessita para sobreviver. Em nossos territórios, os brancos chegam o tempo todo. Ontem, por exemplo, na audiência no congresso, todo mundo podia entrar. E quando fui com o nosso coletivo de mulheres indígenas, o policial teve que perguntar ao chefe dele se podíamos entrar… e lá é a casa do povo. Era um debate [na Câmara dos Deputados] sobre a Ferrogrão, que vai impactar muitos povos indígenas de nossa região [da Bacia do rio Tapajós]. É mais um projeto que vem de cima pra baixo, sem diálogo, sem consulta prévia.

A Ferrogrão é uma ferrovia que vai cortar a bacia do Tapajós para escoamento de grãos [principalmente soja]. Consultando os programas do governo, pode-se ver vários projetos de megaempreendimentos para a bacia do Tapajós: com 43 hidrelétricas previstas (sendo cinco mega hidrelétricas), a ferrovia Ferrogrão, os portos de escoamento em Santarém, Rurópolis e Itaituba. Além das rodovias Cuiabá-Santarém e a Transamazônica. Então, são várias obras que estão previstas em nome de um único projeto governamental de desenvolvimento que vai destruir tudo aquilo. Desenvolvimento para quem? E a construção da Ferrogrão, sai do nosso bolso, do contribuinte. Sem consulta prévia, sem nada.

Patrícia Juruna, durante o ATL (Foto: Fábio Zucker/Amazônia Real)

 

Em Altamira, por exemplo… As UBS [Unidades Básicas de Saúde] não funcionam. Os hospitais previstos não existem. As obras de compensação para os indígenas e os ribeirinhos, previstas pela Norte Energia, não funcionam. Uma série de irregularidades em Altamira, de compensações previstas antes da construção de Belo Monte, não foram realizadas, e a usina já está funcionando [completou dois anos de funcionamento em abril de 2018, época dessa entrevista].  Os jovens pretos e índios são os mais impactados nesse contexto todo. Mudou todo o fluxo de um rio. O meu povo, que está na volta [Volta Grande do Xingu], já não pesca como antes… não tem mais peixe. É tanta violência, tantas violações, que o Brasil era para estar sendo julgado na Corte Suprema [Corte Interamericana de Direitos Humanos].

Eu não estive à frente da luta contra Belo Monte, mas diversas pessoas do meu povo estiveram, e isso me inspira muito. Algumas vezes, me sentia culpada de estar no Baixo Tapajós, e ver tudo aquilo que meu povo estava sofrendo. Mas não é muito diferente, pois também estamos lutando contra megaempreendimentos. E a minha pajé me falou, um dia: ‘Patrícia, se você está lutando pelos direitos dos povos do Baixo Tapajós, você também está lutando pelos direitos dos povos daqui. Não tem diferença’.”

Os textos, fotos e vídeos publicados no website da Amazônia Real estão licenciados com uma Licença Creative Commons – Atribuição 4.0 Internacional e podem ser republicados na mídia com os créditos dos autores e da agência. 

Fonte: amazoniareal.com.br/sao-tantas-violacoes-que-o-brasil-era-para-estar-sendo-julgado-na-corte-suprema-diz-patricia-juruna/

 

Thank you for your upload