Ayany Hunikui e as marcas que a água deixou em sua casa no bairro Cidade Nova, em Rio Branco (Foto: Khelven Castro/Amazônia Real).

Há mais de seis meses, o Acre enfrentou uma situação de calamidade pública por causa das chuvas intensas. A enchente do rio Acre afetou a vida de mais de 56 mil pessoas, atingindo 36 bairros da capital Rio Branco. Desses, 28 eram comunidades periféricas ou parcialmente periféricas, incluindo as de populações ribeirinhas. As mudanças no clima têm afetado a todos, mas não da mesma forma ou com intensidades semelhantes. Sem justiça climática, catástrofes ambientais se repetem ano após ano, amplificando desigualdades sociais como o racismo e a violência.

Por Hellen Lirtêz e Khelven Castro (Fotos)

Rio Branco (AC) – Mãe de três filhos, Janaíra de Oliveira, de 29 anos, mora no bairro Conquista, um dos mais atingidos pela cheia na capital acreana. Desta vez, a diarista não pode nem mesmo se defrontar com uma típica cena de vítimas das enchentes: a de ver as marcas d’água na parede de sua casa. Sua história, na verdade, foi apagada pela cheia dos meses de dezembro de 2022 e janeiro deste ano. Depois que o rio Acre baixou seu nível, o lar onde vivia com a família tinha desaparecido.

“Eu estava procurando mesmo era a casa naquele dia da foto. Foi quando me deparei com a realidade, a verdade é essa”, conta Janaíra à Amazônia Real. A imagem foi um flagrante do fotógrafo Juan Vicent, que mostra a moradora revirando o que via pela frente, em busca de algum vestígio de seus pertences, logo após as águas baixarem. “Estava perdida, entendeu? Naquela foto, estava vendo se achava ao menos uma colher, alguma coisa para ver se reconhecia alguma coisa minha. Na verdade, eu estava na esperança.” 

Mas as águas do igarapé São Francisco, um dos braços do rio Acre, transbordaram com tanta força que invadiram toda a região de uma forma nunca vista antes. Em dezembro, o acumulado na Bacia do Rio Acre foi de 345 milímetros de chuva, o segundo maior índice nesse mês desde 2001 (em 2009, chegou a 544 milímetros), segundo o Serviço Geológico do Brasil (SGB-CPRM), que monitora o ciclo hídrico na Amazônia. Janaíra relatou que acreditava que quando as águas baixassem iria encontrar a casa ainda de pé. Ao falar com a reportagem, ela disse que sentiu um grande sofrimento por não encontrar mais nenhum rastro do que um dia havia sido seu lar.

Sem casa, restou a ela e aos seus três filhos recorrer à ajuda do poder público. Vítimas de enchente podem receber um aluguel social, que é distribuído de acordo com o tamanho do núcleo familiar. Janaíra recebeu três meses de aluguel social de 350 reais da prefeitura e agora deveria estar recebendo 450 reais do governo estadual. No entanto, o aluguel atrasou nos últimos meses e ela corre o risco de sair do lugar onde está morando – com o agravante de que o próprio auxílio que recebe é abaixo dos valores praticados pelas locações no Estado, que ficam na casa dos 700 reais.

“As pessoas moram em área de risco, porque realmente não têm dinheiro para pagar aluguel, não têm um trabalho fixo. Quem constrói perto do rio já sabe que é perigoso, mas mais perigoso é você ficar com sua família debaixo da ponte”, esforça-se em justificar Janaíra, uma sina que muitas vítimas das cheias fazem contra si mesmas.

Reeleito em primeiro turno, o governador Gladson Cameli (PP) registrou nos “compromissos de governo”, na campanha eleitoral de 2022, que trataria do problema das enchentes com dois grandes projetos. Um seria o projeto de contenção das margens do rio Acre, na capital, além da construção do “Calçadão da Orla Raimundo Escócio”. Nos demais municípios, a promessa era de construir pequenas barragens, canais laterais, e realizar estudos de macrodrenagem para construção de bacia de contenção.

Mas no mesmo documento eleitoral, Cameli afirmava que “uma das grandes vitórias deste governo” havia sido a criação do Fundo Especial para a recuperação da Bacia do Igarapé São Francisco. O objetivo era “reduzir a vulnerabilidade das comunidades ribeirinhas” aos eventos extremos na cidade de Rio Branco. Para a família de Jandaíra e tantas outras pessoas que moram no entorno do Igarapé São Francisco, essa vitória não existiu.

Todo mundo tem uma história

Janaíra e seus três filhos na locação em que vivem do aluguel social do Governo no Bairro Conquista, em Rio Branco (Foto: Khelven Castro/Amazônia Real).

Como diarista, Janaíra ganha de 100 a 150 reais por faxina, além de outros bicos como cuidadora de idosas que geralmente, não possuem um valor fixo. O pai de seu filho mais novo não paga pensão, apenas ajuda com a alimentação que se tornou o principal problema hoje de sua família: ter o que comer. A pressão pela sobrevivência é tão grande que ela não suportou. Teve depressão, diagnosticada pelo Centro de Atenção Psicossocial (Caps) Sumaúma. Recomendaram um tratamento, que ela recusou, porque não vê como ser atendida pela forma que estava vivendo, sem perspectivas. “Do que adianta eu tratar a minha cabeça se não vai me trazer minha casa de volta?”

Janaíra faz parte de uma realidade detectada por uma pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Economia, da Fundação Getúlio Vargas. Ela é uma mãe solo, que vive em um domicílio monoparental. Entre 2012 e 2022, o número de lares com mães que cuidam dos filhos sozinhas cresceu 17,8%, passando de 9,6 milhões para 11,3 milhões. No caso das mães solo negras, houve o maior incremento no período: de 5,4 milhões para 6,9 milhões. A proporção é maior nas regiões Norte e Nordeste. A maioria delas (72,4%) vive só com os filhos e não conta com uma rede de apoio próxima. 

A responsabilidade familiar que Janaira possui é grande e a impede de ter um emprego fixo já que um de seus filhos de 10 anos é autista. Ela está na fila de espera do atendimento de saúde para obter a comprovação do laudo do filho. Enquanto isso não ocorre, a criança não pode estudar na escola e receber atendimento especial. Ainda segundo ela, o seu bebê de colo também apresenta sinais de autismo que precisam ser investigados.

“Todo mundo tem uma história, o meu filho, ele é autista. Eu saio já tenho que voltar, faço uma diária para comer alguma coisa, aí já tenho que voltar e tem o pequenininho aqui de um ano e seis meses, e para tudo só tem eu”, lamenta a diarista.

O termo “nutricídio,” cunhado pelo médico americano Llaila Afrika, descreve a falta de acesso a alimentos saudáveis, especialmente em comunidades racialmente marginalizadas, e suas consequências devastadoras para a saúde. Esse fenômeno tem raízes profundas na História, incluindo influências coloniais que impactaram as culturas alimentares originais, promovendo o consumo excessivo de alimentos de baixo valor nutricional. 

As consequências são altas taxas de doenças crônicas, como diabetes e obesidade, incidindo mais em comunidades negras e marginalizadas. O racismo estrutural desempenha um papel fundamental nesse processo, criando disparidades no acesso a alimentos nutritivos e perpetuando desigualdades alimentares. É daí que surge a necessidade urgente de abordar essas questões para melhorar a saúde das comunidades afetadas e desfazer os danos causados pela herança colonial.

Gênero, raça e sobrevivência

Na porta de sua casa, Ayany HuniKui conta como foi os momentos que passou na alagação (Foto: Khelven Castro/Amazônia Real).

Ayany Huni Kuin, de 26 anos, também está buscando reconstruir tudo que perdeu na enchente. A jovem é mãe de 4 filhas e mora no bairro Cidade Nova. Sua moradia também fica no entorno do rio.  Natural do município de Jordão (AC), ela mora em Rio Branco já faz oito anos, junto de seu esposo e seu irmão. A cheia, foi algo que ela relata que nunca ter acontecido.

“As mudanças climáticas tem nos deixado nós, mulheres, doentes. As secas, as enchentes, a quentura, as queimadas. Tudo poderia ser evitado se preservasse a floresta, meio ambiente, cuidado com os animais e reciclagem” explica Ayany.

A assistência governamental foi pouca. A família de Ayany recebeu sacolões com alimentos da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). Não houve um benefício específico para a compra de móveis, nem nada direcionado às populações da floresta que também foram atingidas. Ela não recebe aluguel social e conta apenas com o Bolsa Família, além da venda de artesanato indígena pelas feiras da cidade. O aluguel onde mora custa 600 reais e o lugar apresenta problemas estruturais. É com esses poucos ganhos que paga o atual aluguel. Em entrevista, revelou que pretende se mudar em breve para um terreno no mesmo bairro, onde está construindo sua casa.

Para a coordenadora executiva da CPI-Acre (Comissão Pró-Indígenas do Acre (CPI-Acre), Vera Olinda, a relação entre a segurança alimentar e os eventos  climáticos extremos estão intrinsecamente ligados e têm obrigado os povos indígenas a refazerem seus plantios, roçados, além da perda do conhecimento tradicional.

“Precisa ter investimentos, e entendimento, de que esses problemas estão aí em decorrência da ação humana e do mal uso da natureza. Os povos indígenas e comunidades tradicionais passam obrigatoriamente por essas adaptações e situações que foram criadas pelos outros”, afirma Vera Olinda. Ela lembra que nos últimos anos os eventos extremos têm se tornado mais frequentes, obrigando os povos da floresta a uma adaptação rápida e resiliente. “Há experiências exitosas que permanecem pelo uso e manejo correto dos recursos naturais. Isso é um serviço que os povos indígenas prestam para todos” Explica.

O Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 2 da Organização das Nações Unidas (ONU), inclusive, diz respeito à fome zero e à agricultura sustentável. A ideia é que todas as pessoas passem a ter acesso a alimentos “seguros, nutritivos e suficientes” em qualquer época e em qualquer país até 2030. 

Para enfrentar as consequências das inundações ocorridas em dezembro e janeiro últimos, o governo estadual lançou a Ação Emergencial: Plano Pós-Enchente, que serviria para apoiar os povos e comunidades tradicionais. Os dois componentes dessa ação que faz parte do programa REM Acre Fase II são a segurança alimentar e a garantia dos serviços hídricos.

Quem está à frente da iniciativa é a Secretaria de Agricultura com parceria Secretaria de Meio Ambiente e Políticas Indígenas. O total planejado para esse plano pós-enchente foi de 3,6 milhões de reais, mas, segundo o próprio governo, apenas 25% desse montante foi executado (911,5 mil reais).

Outro auxílio oferecido às vítimas das cheias no Acre é o chamado Auxílio do Bem, instituído pelo Decreto estadual 11.283,  de 18 de julho de 2023. Vítimas inscritas no CadÚnico poderiam pleitear uma parcela única de 1.000 reais. Segundo o Estado, mais de 400 pessoas em estado de vulnerabilidade social, que moram em áreas atingidas pelas enchentes, seriam beneficiadas.

Uma história que se repete

Janaíra de Oliveira Silva com seu filho em março durante a cheia do Rio Branco, Acre (Foto cedida por Juan Vicent Diaz/Amazônia Real).

As enchentes que atingiram Rio Branco em 41 dos últimos 52 anos foram consideradas de grau médio, grande e extraordinário em ao menos 23 anos. Os registros dessas ocorrências são datados de 1971 a 2019, somadas às enchentes de 2020, 2021, 2022 e 2023. 

Em 2020, um plano de mitigação e adaptação ao clima apresenta o histórico de danos e as principais áreas atingidas nas enchentes no Acre. O estudo foi elaborado pela prefeitura de Rio Branco em parceria com o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e a iniciativa de Governos Locais Pela Sustentabilidade para América do Sul. A capital acreana é a única da Amazônia a possuir um plano dessa natureza.

O Acre possui um déficit de 24 mil habitações, sendo 11 mil apenas na capital do Estado. O dado é da Secretaria de Habitação e Urbanismo do Estado. Para a socióloga e pesquisadora de direitos humanos, gênero e raça, Jaycelene Brasil, ao observar a história dos desastres ambientais recentes, não é difícil encontrar traços de racismo ambiental atingindo prioritariamente mulheres e mães solo de áreas marginalizadas pelo poder público. 

“São corpos que estão nas periferias aqui na Amazônia, a gente pode ver isso em qualquer lugar”, diz Jaycelene Brasil. Ela enumera bairros periféricos como Ipê, Caladinho, Terra Prometida, Cidade do Povo, Chico Mendes e Vitória para lembrar que ali vivem as principais vítimas desse mundo sem justiça climática. “Essa ausência de planejamento marginaliza, desumaniza, esses corpos negros das mães solos que recebem um salário mínimo. São mulheres negras e da população indígena também. E aí você vê que não tem uma cidade justa.”

O pesquisador Foster Brown, cientista emérito do Centro de Pesquisa em Clima Woodwell e professor da Ufac, questiona se os acreanos estão preparados para o retorno de eventos climáticos que já aconteceram e têm se tornado mais repetitivos. Em 2005, incêndios florestais queimaram mais de 300 mil hectares na região leste do Estado. Em 2014, inundações cortaram o acesso rodoviário de Rondônia para o Acre durante mais do que um mês. No ano seguinte, uma nova cheia atingiu Rio Branco, causando impactos semelhantes aos vistos neste ano.

“Provavelmente, vai haver uma continuação das tendências com eventos extremos, secas e queimadas mais fortes e mais frequentes. Isso significa que a população vai ter que lidar com um clima menos agradável do que nós temos hoje em dia”, afirma o pesquisador. Brown explica que a adaptação e procurar meios de minimizar os impactos das nossas ações junto à natureza representam a contribuição que cada um pode fazer no contexto da mudança climática.

  • Marcas da enchente na atual locação em que Janaíra mora com seus três filhos no bairro Conquista, em Rio Branco (Foto: Khelven Castro/Amazônia Real).
  • Marcas da enchente na atual locação em que Janaíra mora com seus três filhos no bairro Conquista, em Rio Branco (Foto: Khelven Castro/Amazônia Real).
  • Marcas da enchente na atual locação em que Janaíra mora com seus três filhos no bairro Conquista, em Rio Branco (Foto: Khelven Castro/Amazônia Real).
  • Ayany Hunikui mostrando as marcas que a água deixou em sua residência no bairro Cidade Nova, em Rio Branco (Foto: Khelven Castro/Amazônia Real).
  • Ayany Hunikui mostrando as marcas que a água deixou em sua residência no bairro Cidade Nova, em Rio Branco (Foto: Khelven Castro/Amazônia Real).

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* Essa reportagem especial foi apoiada pela Fundação Heinrich Böll

Fonte: https://amazoniareal.com.br/especiais/sem-justica-climatica/

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