Por Fátima Guedes

 

Estaremos em Marcha até que todas sejamos livres.

(Marcha Mundial das Mulheres)


Aos vinte e cinco de novembro de 1960, há sessenta anos, as irmãs Mirabal – Pátria, Maria Teresa e Minerva (“Las Mariposas”) foram torturadas e assassinadas a mando do ditador Rafael Trujillo, da República Dominicana, em represália à luta daquelas militantes por Justiça Social.

Após o crime institucionalizado pelo governo do ditador, clamores ininterruptos por Justiça retumbaram por todo o mundo. Em Bogotá/Colômbia (1981) ecos mais potentes clamaram pelo reconhecimento da data – em defesa das mulheres e no combate à violência. A repercussão estremecera muralhas patriarcais, e em 1999, trinta e nove anos depois, a Organização das Nações Unidas (ONU) institui o Dia Internacional de Combate à Violência contra as Mulheres.

Os insistentes clamores – “Se matam três, brotam cem…” – instigaram inúmeras ações. No Amazonas, somara-se o brado no enfrentamento a barbáries locais silenciadas, a indiferenças estruturantes, enfim, a omissões sistêmicas.

Clamores e Protestos no Interior do Amazonas

(Foto: Floriano Lins)

Na madrugada do dia 23 de novembro, sobre a ‘pacata’ Comunidade Nova Vida, área indígena Sateré-Mawé, Barreirinha, município da região do Baixo Amazonas, ecoaram gritos dolorosos: uma menina de cinco anos de idade fora barbaramente violentada até a morte. Sem dúvidas, mais um golpe no coração de Tupana* mergulhado em luto.

Do acompanhamento aos relatos sobre o ritual criminoso contra uma inocente, permito-me problematizar arquétipos de crueldade – influências cruéis, misóginas – expressadas em práticas de adolescentes indígenas: em que fontes de crueldade as novas gerações indígenas se contaminam?… Que valores e princípios sobrepõem-se, hoje, ao respeito mútuo cultivado pelas populações tradicionais em relação à vida de seres vulneráveis?… Que diz o PURANTIN sobre crimes dessa natureza?…

A voz da matriarca Sateré-Mawé, Dona Flácia de Souza, avó de Ana Beatriz, durante protesto organizado pelo coletivo Justiça por Ana Beatriz, na tarde do último 29, em frente à Catedral de Nossa Senhora do Carmo, em Parintins (AM), denunciara silêncios, produzindo ecos sensibilizantes por Justiça a Ana Beatriz e a todas as crianças e mulheres violentadas…

              Tem muita droga circulando na área. Não sei como entra e os chefes não dizem nada. A gente se revolta porque já aconteceu muito assassinato igual e nunca foi resolvido. As autoridades, os tuxauas, a comunidade… Todos sabem. Por que não tem justiça? Deus pode até perdoar, mas eu não. Ninguém aceita. É revoltante. Cadê a Justiça? Só porque somos pobres, mulheres, a gente é tratada assim? Do jeito como Ana Beatriz foi encontrada lá, só eu compreendo minha dor e revolta. Queremos apoio das autoridades.

Em depoimento à polícia, o adolescente indígena confessou o crime.

Movimento Feminista

Paralelo aos brados de Dona Flácia, em referência ao dia 25 de novembro, movimentos feministas de Parintins cobram da câmara de vereadores/as respostas sobre o Projeto de Iniciativa Popular encaminhado há um ano à mesa diretora daquela Casa com o propósito de instituir o dia 08 de março feriado municipal.

O reconhecimento do Dia Internacional das Mulheres (08 de Março) pela ONU aconteceu há quarenta e cinco anos após pressões aos padrões machistas/patriarcais, como de costume.  Apesar de avanços e conquistas é gritante ainda a exploração de trabalhos domésticos e de cuidados determinados como responsabilidade de mulheres; além de uma economia doméstica totalmente invisibilizada – informal e não remunerada.

Em princípio, são limites, impossibilidades e impedimentos ao progresso das mulheres; também de fortalecimento das desigualdades, da divisão sexista do trabalho, e de tantas outras violências silenciadas contra as mulheres; em especial, empobrecidas e sem escolaridade.

O pleiteado no Projeto – resultado do protagonismo dos movimentos feministas de Parintins – constitui-se um desafio, diante do determinismo patriarcal; também de reconhecimento à luta de inúmeras companheiras registradas com sangue e suor.

Outro argumento: 08 de Março, feriado municipal, proporcionará a todas as Manas de Parintins o direito de reduzirem – mesmo por um dia – atividades funcionais/produtivas que as impedem celebrar livremente a data a Elas consagrada.

Silêncio, cumplicidade e libertação…

Manifestação pelo 25 de Novembro, em Parintins (Foto: Floriano Lins)

Dos argumentos sobre o feriado às mulheres, os mais de cinco por cento de assinaturas em apoio ao Projeto, e a presença ativa dos movimentos, na Câmara, naquele dia, não foram suficientes para sensibilizar a “casa do povo”.

O NÃO compromisso com as mulheres impusera à “casa do povo” submeter-se a uma lei orgânica, que exige a Projetos de Iniciativa Popular, dez por cento de assinaturas do eleitorado, quando a Constituição Federal determina “a partir de cinco por cento”.

O NÃO compromisso declarado da “casa do povo” intimidara também as duas mulheres/vereadoras… Provavelmente, dependências e submissões a grupos e respectivos caciques contrários a anseios de categorias marginalizadas, entre elas – as Mulheres.

A NÃO presença daquela Casa Legislativa e dos novos eleitos, no ato contra o assassinato de Ana Beatriz, declara publicamente a conivência institucional com a violência sobre as mulheres. É a institucionalização da discriminação – irmã gêmea da violência.

Em remate: se as Manas vereadoras se negaram unir as vozes em favor de Justiça por Ana Beatriz; se as mesmas Manas sentiram-se incapazes, intimidadas em abraçar o Projeto Popular pela folga do 08 março às mulheres de Parintins, Simone de Beauvoir ativa nossa memória: Não se nasce mulher, torna-se mulher… 

É no despertar da autolibertação, da autonomia e da consciência de classe que nos tornamos verdadeiramente MULHERES…

Notas

Falares da casa

Purantin – Remo Sagrado dosSateré-Mawé onde se encontra a Lei Máxima e as orientações à caminhada humana na terra. (BRITO, Milton Pereira. O Grafismo do Purantin na Cultura Sateré-Mawé. TCC /2017. ICSEZ/UFAM).

Tupana – Entidade Suprema dos Sateré-Mawé.

A fotografia que abre este artigo é do protesto em repúdio a morte da menina Ana Beatriz, em Parintins (Foto Liam Cavalcante/Mídia Ninja)

 

Fonte: https://amazoniareal.com.br/silencios-e-cumplicidades/

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