Por Amazonia Real

Julgamento ocorrerá em agosto; desde o início de junho, mais de 800 indígenas estão em Brasília para pressionar deputados e o STF contra retrocessos de seus direitos.

Na imagem acima, indígenas na frente do STF em Brasília (Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real)


Por Fábio Pontes e Elaíze Farias, da Amazônia Real

Rio Branco (AC) e Manaus (AM) – O julgamento do marco temporal das terras indígenas foi mais uma vez reagendado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e entrará em pauta somente em agosto. Nesta quarta-feira (30), a sessão foi dedicada exclusivamente às pautas que estavam sob relatoria do ministro Marco Aurélio Mello, que se aposenta da Corte em julho.

Assim, foi adiada a análise do Recurso Extraordinário (RE) 1017365 impetrado pela Fundação Nacional do Índio (Funai), em 2016, contra a reintegração de posse obtida pelo governo de Santa Catarina, junto ao Tribunal Regional Federal da 4ª Região, para expulsar o povo Xokleng de uma área reivindicada pelo estado.

Apesar de se tratar de um caso específico de áreas da região Sul, o resultado do julgamento terá consequências para os processos de demarcação de todas as terras indígenas. Em fevereiro de 2019, o pleno do STF deu status de “repercussão geral” ao processo, o que faz dessa decisão final uma referência para ser seguida por todos os casos semelhantes em julgamento no STF e nos demais tribunais do país.

O julgamento do RE 1017365 também pretende solucionar os diferentes pensamentos jurídicos sobre a manutenção da tese do “direito originário”  ou da inclusão do marco temporal nos processos de demarcação de territórios indígenas. O artigo 231 da Constituição reconhece “direitos originários [dos povos indígenas] sobre as terras que tradicionalmente ocupam” – ou seja, nas quais eles já estavam mesmo antes da existência do próprio Estado brasileiro.

Se prevalecer a existência de um marco temporal, defendido pelo setor ruralista, só passam a ter a legitimidade da posse as comunidades que estivessem vivendo na área pleiteada até 5 de outubro de 1988, a data de promulgação da Constituição.

Lideranças indígenas ainda tinham esperança de que o julgamento do marco temporal ficasse para a sessão extraordinária desta quinta-feira (01), mas o ministro Luiz Fux, presidente do STF, disse que a última sessão antes do recesso judiciário do meio do ano será dedicada a homenagens ao decano Marco Aurélio. O STF entra em férias nesta sexta-feira (02).

É a segunda vez que o julgamento do RE 1017365 é adiado este ano. O anterior foi agendado para 11 de junho, mas o ministro Alexandre de Moraes pediu vistas. Com a data marcada para 30 de junho, os povos indígenas fizeram uma forte mobilização nacional em Brasília. Mais de 800 indígenas iniciaram, desde 8 de junho, o Acampamento Levante pela Terra, que também exige o arquivamento do PL 490 no Congresso.

Sessão plenária do STF (Foto STF)

Durante a quarta-feira, ocorreram mobilizações em várias cidades brasileiras e territórios indígenas contra o marco temporal. Rodovias foram fechadas em vários pontos, como em Roraima e no Maranhão, pelos indígenas. Em Brasília, um grupo de indígenas fez uma vigília em frente ao STF com rituais e cânticos, enfrentando as baixas temperaturas em Brasília.

Ao final da sessão do STF, o advogado Luiz Eloy Terena, que faria a sustentação no julgamento representando a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), divulgou um vídeo na sua conta no Instagram, afirmando que outros processos “tiveram prioridade”: “Seguimos juntos, mobilizados. Todas e todos contra o marco temporal. Reafirmando o direito originário dos povos indígenas ao seus territórios tradicionais”, disse.

Nas redes sociais, a liderança Sônia Guajajara comentou: “Os ruralistas criaram a tese do marco temporal como estratégia para barrar as demarcações. A manobra jurídica restringe o direito à terra apenas aos povos que estivessem sob o território no dia 5 de outubro de 1988, ou sob disputa física ou judicial comprovada. #MarcoTemporalNão“.

A advogada Juliana de Paula Batista, do Instituto Socioambiental, que também faria sustentação oral no plenário virtual do STF, lamentou a retirada do processo da pauta. Mas ela destacou a importância da análise do processo na Corte. “É importantíssimo que ele seja definitivamente julgado e os direitos territoriais indígenas garantidos. A Constituição não prevê um marco temporal para as demarcações, e esperamos que o STF reafirme isso, acabando de vez com interpretações equivocadas”, disse ela à Amazônia Real.

O julgamento também mobilizou indígenas e aliados nas redes sociais. A tag #MarcoTemporalNao chegou a ficar entre os primeiros assuntos no Twitter. Muitos apoiadores lamentaram o adiamento e temem agora que o PL 490 ganhe corpo no Congresso, antes da análise do marco temporal pelo Supremo.

Os ataques em diferentes frentes 

Apesar de o direito à posse de suas terras ancestrais estar assegurado pela Constituição Federal de 1988, os povos indígenas do Brasil veem esta garantia ameaçada por meio de projetos em tramitação no Congresso ou recursos jurídicos impetrados junto ao STF. Tanto no PL 490 quanto o RE 1017365, o que está em jogo é a tese do marco temporal, que representa uma ameaça aos “direitos originários” dos povos indígenas.

O termo “originário” é usado justamente para garantir às populações indígenas a posse de suas terras. Também chamada de teoria do indigenato, o conceito do direito originário remete aos tempos do Brasil Colônia. Mesmo sendo incluído na Constituição de 1988, elaborada após 20 anos de ditadura militar, este é um princípio que, no termo jurídico, chama-se de não pacificado.

Cabe agora ao STF definir qual interpretação será dada a esse tema. Se incorporar a tese do marco temporal, o que passa a valer não é mais o fato de que as terras brasileiras já estavam devidamente ocupadas antes do desembarque de Pedro Álvares Cabral e suas caravelas, em 1500. Significa que deve valer a presença dos indígenas nas áreas reivindicadas até a data da promulgação da Constituição, o que é uma aberração jurídica.

Para os defensores dos direitos indígenas, o marco temporal deve ser rechaçado, já que muitos povos foram expulsos de suas terras originárias, enquanto outros sofreram migrações forçadas pelo próprio governo.

A construção de estradas na Amazônia durante a ditadura militar (1964-1985) é um exemplo desses deslocamentos forçados. As aldeias que estavam no traçado das estradas foram removidas, rompendo, de forma abrupta, toda uma relação ancestral da comunidade com aquele território. Anos antes, ainda na Amazônia, comunidades indígenas inteiras sofreram remoções para serem substituídas pelos seringais.

Vistos pelos seringalistas como empecilhos na exploração do látex, os indígenas sofreram um cruel processo de extermínio por meio de execuções ou epidemias. Aldeias inteiras eram “capturadas”, removidas de suas terras originais e levadas como escravas a outras regiões para “cortar seringa”.

Ao fim do regime ditatorial e o retorno da democracia com a Carta Cidadã de 1988, muitos povos indígenas estavam vivendo longe das terras ocupadas pelos antepassados. Se o STF acatar a tese ruralista do marco temporal, essas comunidades ficarão impedidas de reivindicar a demarcação de terra.

Por conta disso, o julgamento é acompanhado com atenção e apreensão pelo movimento indígena. Na semana passada, indígenas do Acampamento Levante pela Terra foram atacados por policiais ao tentarem entrar no Anexo 2 do Congresso momentos antes da sessão da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara votar o PL 490.

Apesar das pressões, o projeto foi aprovado com folga pela maioria dos parlamentares bolsonaristas. Com o julgamento do RE 1017365 na pauta do plenário virtual do STF para o fim do mês, a permanência na capital federal foi prorrogada, com lideranças de diferentes estados se revezando. Essa troca se fez necessária como medida sanitária em meio à pandemia da Covid-19.

Na Suprema Corte, o recurso extraordinário tem como relator o ministro Edson Fachin. O RE tramita pelo STF desde 2016, quando foi impetrado pela Funai contra decisão do TRF-4, que atendeu à ação de reintegração de posse movida pelo Instituto de Meio Ambiente de Santa Catarina para retirar o povo Xokleng da TI Ibirama-Laklanõ.

Segundo o órgão ambiental catarinense, o território reivindicado pelos Xokleng fica sobreposto à Reserva Biológica do Sassafrás. Em maio de 2020, o ministro Fachin determinou a suspensão dos mandados de reintegração de posse envolvendo povos indígenas em todo o país. A medida vale até o fim da decretação de situação de pandemia ou o julgamento do RE 1017365. O reconhecimento de que o resultado de sua sentença tem efeito de repercussão geral, foi aceito pelo plenário do Supremo em fevereiro de 2019.

Mobilização dos indígenas na frente do Supremo Tribunal Federal, em Brasília contra o PL 490 e contra o marco temporal que seria votado no STF (Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real)

 

Fonte: https://amazoniareal.com.br/marco-temporal-adiado/

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