Brasília (DF) – O que está em jogo neste 1º de setembro é um tudo ou nada para os indígenas, no mais importante julgamento de sua história recente no Brasil, no Supremo Tribunal Federal (STF). Durante sessão prevista para esta quarta-feira, o Recurso Extraordinário 1.017.365 trata da tese do “marco temporal”, defendido por ruralistas que desejam que o direito a territórios seja restrito a povos que os ocupavam ou disputavam, física ou judicialmente, antes de 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição do Brasil.

Essa tese, segundo estimativas do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), é argumento para cerca de 300 processos judiciais no país. Em maio de 2020, o STF suspendeu o Parecer 001/2017 da Advocacia Geral da União, que tentava institucionalizar o marco temporal como norma nos procedimentos administrativos de demarcação – o que pode ser ressuscitado a depender do resultado concluído pela Corte, passando a incidir em todos os processos demarcatórios no país.

“Se o STF aplicar a tese do marco temporal, só restam os embargos de declaração que não têm efeitos modificativos. Só caberia cortes internacionais para apelar, como a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH)”, afirma o assessor jurídico do Cimi, Rafael Modesto, que é advogado dos Xokleng referente à TI Ibirama-La Klãnõ. Um dos argumentos dessa ação é o marco temporal. Esse processo foi reconhecido em 2019 pelo STF como de “repercussão geral”, o que faz com que seja parâmetro para todas as decisões judiciais no país a partir do resultado deste 1º de setembro, se houver a conclusão do julgamento.

Iniciado na quinta-feira (26/8), ele foi suspenso por determinação do presidente do STF, Luiz Fux. A suspensão frustrou as expectativas dos 6 mil indígenas que estavam mobilizados no Acampamento Luta pela Vida, desde o dia 22, e tinham previsão de permanência até o último sábado em Brasília. Mais de 1 mil indígenas decidiram permanecer para acompanhar o julgamento do Recurso Extraordinário.

Rafael Modesto cita dois exemplos: “O caso Raposa Serra do Sol (RR) foi julgado em 2009 e em 2013 foram julgados os embargos de declaração, que não serviram para modificar o acórdão do STF, mas para esclarecer algumas questões. Por exemplo, se esse processo teria efeito modificativo (em relação a outros casos), o Supremo falou que não. De Corte internacional, temos o exemplo do caso Xukuru. O Brasil foi condenado e teve que cumprir decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos, porque é signatário, o que significa que com outros países aceita suas decisões. Claro que um presidente como Bolsonaro pode não cumprir, o que pode acarretar em sanções internacionais, como embargos econômicos entre outras possíveis penalidades”.

No ano passado, os Xukuru da Serra de Ororubá, em Pesqueira (PE), receberam indenização de 1 milhão de dólares pagos pelo governo federal por indenização devida por uma sentença da CIDH publicada em 5 de fevereiro de 2018, por violações de direitos de proteção judicial e à propriedade coletiva previstos na Convenção Americana de Direitos Humanos.

O que está em jogo

Julgamento do marco temporal
Mobilização de indígenas no Acampamento Luta pela Vida
(Foto: Leonardo Milano/Amazônia Real/26/08/2021)

O Brasil tem 421 terras indígenas homologadas (106,6 milhões de hectares), o que significa a fase posterior à demarcação física, que é antecedida por identificação e delimitação – ou seja, o mapeamento inicial dos territórios tradicionais. Nessas áreas homologadas vivem 466 mil indígenas. Há outras 303 terras que não chegaram à fase de homologação pela Presidência da República, e estão em diferentes fases do processo. Na Amazônia Legal concentram-se 98% das 700 terras indígenas do país, o que equivale a 111,4 milhões de hectares. Nos estados do Amazonas, Acre, Rondônia, Roraima, Pará, Maranhão, Mato Grosso e Tocantins vivem 433 mil indígenas.

Os territórios indígenas vivem tensões constantes provocadas pelos desdobramentos das decisões tomadas em Brasília. E nem mesmo as terras demarcadas estão livres de ameaças.  “Vivemos em conflito e pode haver mortes a qualquer momento”, adverte Chiquinho Arara, cacique da TI Arara do Rio Amônia, em Marechal Thaumaturgo (AC). O território é demarcado desde 2011 e já foram feitos pagamentos pela União para indenização de benfeitorias de ocupantes, entre 2013 e 2015. Para conclusão de todo processo demarcatório falta apenas a homologação, cujo processo, segundo o cacique, está há seis anos parado na Casa Civil. “Depende somente da Presidência da República”, enfatiza.

Mesmo com a terra demarcada, há invasores construindo casas. Chiquinho Arara estava em Brasília na semana passada, no Acampamento Luta pela Vida, e conta que já protocolou denúncias na Funai e Polícia Federal. Até uma suspeita de assassinato do indígena Gelson Macedo, de 39 anos, levado para trabalhar no Peru, consta da documentação protocolada junto às autoridades. “Não retornou mais para a aldeia do povo Apolima-Arara. A informação que tivemos é que foi assassinado no Peru e não sabemos o motivo. Pedimos às autoridades que investiguem o caso, pois devem explicação não apenas à comunidade, mas às autoridades brasileiras”.

Chiquino Arara no Acampamento Luta pela Vida (Foto: Leonardo Milano/Amazônia Real)

Os documentos encaminhados à Funai e Polícia Federal e assinados por nove lideranças indígenas reforçam a Portaria 419, de março de 2020, baixada pela Funai impedindo a entrada de pessoas estranhas em territórios indígenas, para evitar a propagação da pandemia. “Além de estranhos, eles são invasores de nosso território há muito tempo. Facilitaram para a chegada da Covid-19. Mesmo sem autorização das lideranças, se aproximam das aldeias, na maioria das vezes consumindo bebidas alcoólicas que são ofertadas para os indígenas. Com isso, mais de 30 casos de Covid-19 foram confirmados na nossa aldeia”. O povo Arara é constituído por 462 pessoas dentro do território e 180 que moram em áreas urbanas. Há sete famílias estranhas ao povo indígena morando em suas terras.

O cacique conta que “uma das moradoras da terra indígena tem 160 mil reais depositados em juízo como indenização de benfeitorias, mas não quer sair e não sai. Não tem Polícia Federal para tirar”. Segundo a Constituição, são nulos títulos de propriedade sobre territórios indígenas, mas é admitido o pagamento pela União de benfeitorias a ocupantes de boa-fé. “Nesse caso, já se trata de má-fé”, observa Chiquinho Arara. Mais de 30 famílias foram indenizadas para desocupar a Terra Indígena Arara do Rio Amônia. Os valores variam de 8 mil a 160 mil reais.

“A gente tem aguentado muitas coisas, pra evitar confronto. Antes, a Funai fiscalizava. Com a pandemia se ausentou praticamente 100%. Os invasores ainda trazem pessoas de fora, para caçar até com cachorro, pescar, tirar madeira, desmatar, fazer tudo o que não presta. A fiscalização cabe à Funai, ao ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade), Ibama (Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis), mas não existe. Essa é a política de Bolsonaro. A favor dos invasores. Bolsonaro quer enfraquecer nosso movimento”, enfatiza Chiquinho Arara.

Milton Carneiro Oliveira, o agente agroflorestal indigena e José Francisco Costa Silva, à direita (Foto: Leonardo Milano/Amazônia Real)

A tese do marco temporal é uma ameaça real para povos que lutam há décadas pela garantia suas terras. Os territórios tradicionais são fundamentais para a sobrevivência física, devido aos alimentos, e também para a sua sobrevivência cultura, o que significa que as florestas são a essência de suas crenças, espiritualidade e educação de seus filhos. “Nosso processo se arrasta há mais de 22 anos”, afirma José Francisco Costa Silva, liderança dos Nawa, do município de Mâncio Lima (AC). O cacique Milton Carneiro de Oliveira relata que foram concluídos os estudos do território, que acabaram engavetados pela Funai. “Decidimos pela autodemarcação e a luta agora é no STF.”

autodemarcação e a luta coletiva para sensibilizar o STF também mobiliza 21 aldeias Tupinambá, onde vivem entre 3 mil e 3,5 mil pessoas. A coordenadora do Conselho Indígena Tupinambá, Raquel Tupinambá, da aldeia Surucua, no Baixo Tapajós afirma que o povo se sente desrespeitado inclusive pelo manejo florestal da Reserva Extrativista Tapajós-Arapiuns, que incide sobre o território indígena. “Cada vez mais o governo inventa formas de destruir nossas áreas. E o foco são sempre nossos recursos naturais”, enfatiza ela.

O caso dos isolados

Os 6 mil indígenas reunidos no Acampamento Luta pela Vida foram frustrados com a suspensão do julgamento do marco temporal
(Foto: Diego Baravelli/Greenpeace)

Os indígenas mais vulneráveis ao marco temporal são aqueles que “estão à beira do despejo”, afirma Carolina Santana, assessora jurídica do Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato (Opi). Em sua opinião, não há como estimar quais seriam os mais prejudicados pela tese defendida por ruralistas. Ela não faz comparações nem mesmo quando se trata de povos que nunca tiveram contato com a sociedade não-indígena.

No entanto, o primeiro que ela cita entre os vulneráveis é o Kaiowá de Guyraroka, do Mato Grosso do Sul, “que teve a terra anulada”. Se o STF não extinguir a tese do marco temporal, Carolina Santana acredita que “no outro dia, a polícia tira povos à força de seus territórios e legitima processos de reintegração de posse” em favor de invasores.

Em abril deste ano, o plenário do STF admitiu uma ação rescisória de autoria dos Guarani Kaiowá da comunidade Guyraroká, em que reivindicavam a reversão de uma decisão tomada em 2014. Em que pese a maioria das decisões do Supremo serem favoráveis aos indígenas, nessa oportunidade a 2ª Turma lhes negou o direito à demarcação territorial. O pedido dos Guarani, porém, foi reconhecido pela Corte em 2021 e está para ser analisado.

Quanto aos isolados, Carolina Santana comenta que “são vulneráveis a quase tudo”, por exemplo aos riscos epidemiológicos, como a Covid-19. Ela ressalta que nos processos demarcatórios, os diálogos com os povos são essenciais, pois são eles que oferecem informações para o georreferenciamento dos territórios. “As demarcações são participativas dos indígenas com o antropólogo” que faz o laudo necessário no processo de reconhecimento de suas áreas tradicionais. Para ela, “é uma excrescência” ter a comprovação de onde povos isolados estariam em 5 de outubro de 1988.

“Os povos isolados não têm contato, não dialogam. São identificados por vestígios”, afirma a assessora jurídica da Opi. Ela se refere a sinais de presença deixados por eles nas florestas, como tapiris de moradia ou de acampamentos temporários ou peças utilitárias, por exemplo. “O marco temporal coloca mais dificuldades onde já é difícil”. Ela ainda cita a expectativa da Fundação Nacional do Índio (Funai) fazer uma expedição à TI Ituna Itatá (PA), frustrada por recomendação do Ministério Público Federal (MPF), em novembro do ano passado. Área mais desmatada da Amazônia no período, estava interditada por causa da presença de isolados.

“Sabe-se que a intenção era dizer que não havia isolados, para acabar com a terra deles”, ressalta Carolina Santana. O MPF sustentou que a expedição colocaria em risco a vida dos indígenas, especialmente porque estava sendo organizada em plena pandemia. E também representava risco aos servidores pela possibilidade de conflito com invasores do território, sem qualquer justificativa técnica. A Opi encaminhara um relatório ao Ministério Público em Altamira (PA) denunciando a violação de direitos territoriais com possível redução dos limites da Ituna Itatá, especialmente porque fora uma demanda do senador Zequinha Marinho (PSC), conhecido por suas posições contrárias aos indígenas.

Autoproteção dos indígenas

Indígenas estão se protegendo e protegendo também isolados para conter o avanço dos invasores
(Foto: Leonardo Milano/Amazônia Real/26/08/2021)

Ao mesmo tempo em que a própria Funai pode significar ao MPF uma ameaça à sobrevivência dos indigenas, há povos que cuidam dos isolados como se estivessem protegendo bebês. Como é o caso do povo da TI Kaxinawa do Rio Humaitá, no Acre. Eles criaram uma barreira sanitária para a proteção dos isolados, e demarcaram 50% de seu território como intransponível para deixar apenas para eles.

“Nossa barreira fica na boca do rio Humaitá”, conta o líder geral da TI, Manoel Saboia Kaxinawa, que também trabalha na equipe que recomenda e oferece aos parentes máscaras, álcool, pede que fiquem em casa e especialmente não ofereçam riscos para os isolados. Na floresta, os Kaxinawá criaram um tapiri para deixar ferramentas e outros utensílios, como machados, terçados e panelas, evitando que percorram moradias onde possam se contaminar. Tudo é desinfetado. “Consideramos o território que fica para eles como uma área de refúgio”, comenta.

Manoel conta que a iniciativa foi tomada desde que os próprios Kaxinawá foram infectados. “A Covid levou os nossos velhos”. Segundo ele, os isolados aparecem nos verões há três anos. “Mas, a gente sente a presença deles por vestígios há uns cinco anos e antes eles levavam coisas das nossas aldeias. Não entendemos o que eles querem.  São sempre seis homens, mas sabemos que mulheres e crianças permanecem na mata. Eles não falam, não entram em contato, não entendem o que está acontecendo (diz referindo-se à pandemia). Nós somos a proteção deles”, acentua.

Os Manchineri, da TI Mamoadade (AC), que tem uma população de 1.800 pessoas, em outubro do ano passado também começaram a fazer uma barreira sanitária para proteção de isolados no rio Iaco, que atravessa o Acre e segue para o Peru. Diferentemente dos Kaxinawa, eles nunca viram os visitantes, somente sabem porque sentem sua presença de diferentes formas. Uma delas são os barulhos que fazem. “Parece que assopram com as mãos, bem pertinho da gente, mas a gente não vê. Quando isso acontece a gente volta para as aldeias porque ficamos com medo, eles têm arcos e flechas”, conta Mateus Sebastião Manchineri. Mesmo com medo, os protegem. “Temos a guarda deles. Eles não estão sozinhos. Estamos acompanhando o sobreviver deles.”

“Pedimos aos parentes para não passarem se estiverem com sintomas do Covid-19”, relata Mateus Manchineri, que faz parte da equipe, mede pressão e faz alguns procedimentos básicos para detectar sintomas nas pessoas que andam pelo rio. A barreira sanitária tem apoio de alguns funcionários da Funai e da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), que mantém um técnico especializado em isolados na região.

A marcha dos indígenas até à frente do STF (Foto: Apib)

 

Fonte: https://amazoniareal.com.br/stf-retoma-julgamento-do-marco-temporal/