Belém (PA) – “Aqui só atendemos casos leves.” Essa frase fez desmoronar as esperanças de Sérgio Pena, de 51 anos, e sua mulher, Cristina. Moradores de Ananindeua, município localizado na Região Metropolitana de Belém, o casal foi informado na Unidade de Pronto Atendimento (UPA) da Cidade Nova de que o caso de Sérgio “era para a Policlínica”. Vestindo um casaco preto, com uma toalha rosa no pescoço, ele saturava 88% de oxigênio. Respirava com dificuldade e tinha de se encostar nas grades que circundam a Policlínica Metropolitana de Belém. Ao ouvir de profissionais de saúde que não seriam atendidos ali, Cristina começou a chorar e, trêmula, tentava encontrar um motorista de aplicativo. Era preciso achar um lugar para salvar o marido.

Belém, que concentra a maioria dos leitos clínicos e de UTI do Pará, se encontra com seu sistema de saúde colapsado. No dia 17 de março, o município chegou a 92,1% de ocupação dos leitos de UTI e 94,4% dos leitos clínicos. Até nesta quarta-feira, a capital paraense possuía 70.676 casos confirmados de Covid-19 e 3.088 óbitos, tendo registrado 45 mortes em 24 horas, segundo dados da Secretaria Municipal de Saúde (Sesma).

Numa tentativa descoordenada para conter o caos hospitalar, o governador Helder Barbalho (MDB) decretou lockdown na Grande Belém. Mas essa medida chega tarde demais para os pacientes que há dias procuram ajuda na frente das unidades de saúde.

No último dia 15, a reportagem da Amazônia Real percorreu esses locais da frente de combate à Covid-19. Sob um sol ardente, dezenas de pessoas se aglomeravam na expectativa de realizarem exames para a Sars-CoV-2. Na porta da Policlinica Metropolitana, na Avenida Almirante Barroso, ao lado do Bosque Rodrigues Alves, no bairro do Marco, três profissionais de saúde verificavam a saturação e a temperatura dos pacientes. Eram eles que informavam que só os casos leves seriam atendidos.

Nessa unidade, são realizadas tomografias computadorizadas e radiografias. O prédio foi construído em 2020 e inaugurado em meio ao primeiro surto da doença no Pará. Duas grandes tendas foram montadas entre a recepção e a entrada para atender à grande demanda.

De chapéu e agachado, Eduardo Santos, de 43 anos, era o 9º na primeira das filas que teria de enfrentar na Policlínica. “Faz três dias que comecei a ter febre, falta de ar e não sei mais o que fazer, porque não posso ficar sem trabalhar nenhum dia”, afirmou à reportagem. Desempregado há um ano e tentando a vida como flanelinha nas ruas do entorno do Bosque Rodrigues Alves, ele não sabe o que fará se testar positivo. “Minha família vai passar fome. Bate um desespero na gente.”

Pálido e angustiado, João Queiroz, 50 anos, contou à reportagem que há três dias estava sem se alimentar direito e que na madrugada de domingo (14) começou a sentir falta de ar. Decidiu ir para a Policlínica, acompanhado da mulher, Maria da Silva. “Deram essa receita, mas ele está aí, continua com febre e falta de ar. Não passaram nenhum exame, nada”, protestou Maria. O médico receitou “uma bombinha e um remédio para o estômago”. “A gente vai ter que ir atrás de dinheiro primeiro, porque não temos.”

Idas e vindas atrás de atendimento

Filas em frente da Policlínica Metropolitana, em Belém, um dia antes do lockdown (Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real)

Depois de saber que não seria atendido na Policlínica Metropolitana, o casal Sérgio e Cristina Pena rumou para a UPA do bairro Sacramenta, a cerca de 6 quilômetros. A indicação foi do próprio motorista, que havia acabado de deixar outro passageiro na unidade e soube que lá estava atendendo os casos graves.

Na unidade do bairro da Sacramenta, o fluxo por volta do meio-dia era intenso e as cenas desesperadoras. Maqueiros e outros funcionários, incluindo o segurança do local, se revezavam para trasladar pacientes para o interior da unidade de saúde. Era visível o cansaço dos profissionais. “Eu já estou desde as 6 horas nesse movimento, não está fácil”, contou um dos maqueiros, paramentado de toca, duas máscaras e luvas.

No dia em que a reportagem da Amazônia Real foi retratar a dura realidade de pacientes em busca de ajuda, o governo estadual decretou que a capital Belém e Ananindeua, Marituba, Benevides e Santa Bárbara, municípios pertencentes à região metropolitana, passariam para o bandeiramento preto, o mais crítico de todos. As cinco cidades entrariam em lockdown. O fim do bloqueio está previsto para o dia 22 de março, mas o governo não descarta a possibilidade de prorrogação das medidas.

A medida mais dura de restrição, e evitada a todo custo pelos governantes brasileiros, tem sido adotada quando a rede hospitalar já se encontra colapsada. O hospital de campanha da capital, instalado no Hangar Centro de Convenções da Amazônia desde abril de 2020, está lotado. Segundo a última atualização da Secretaria Estadual de Saúde (Sespa), havia 109 pacientes sendo atendidos em leitos de UTI e 225 em leitos clínicos.

Até agora, já passaram pelo Hangar, maior unidade de referência para a Covid-19, cerca de 4.485 pacientes de diversas regiões do estado – incluindo alguns do Amazonas, transferidos para Belém por conta do colapso hospitalar causado pela falta de oxigênio. Entre os atendidos pelo hospital, 1.102 morreram.

Em nota, a Sespa informou que até 14 de março o Pará possuía 1.443 leitos exclusivos para o tratamento de pacientes infectados com o novo coronavírus. Desses, 976 foram abertos entre janeiro e março; 269 entre 2 e 12 de março. De acordo com o último boletim divulgado pela Sespa, em 17 de março, o estado possui disponíveis 402 leitos clínicos e 129 de UTI para adultos.

A nota afirma ainda que a expectativa do governo é a de abrir mais 200 leitos nas próximas semanas para atender aos 144 municípios paraenses – em sua maioria com números crescentes de casos da doença e de ocupação de leitos. Somente entre 1º de janeiro e 17 de março, cerca de 97.067 novos casos e 2.425 óbitos foram registrados pela Sespa.

Pior que a primeira onda

Ver-o-Peso horas antes do lockdown decretado pelo governo estadual (Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real)

Desde o início de 2021, o Pará registra as piores médias dos últimos oito meses quando, por opção dos governos estadual e municipal, foi flexibilizada a abertura do comércio e das atividades não essenciais. Para alguns médicos, a situação atual é pior do que a da primeira onda, ocorrida entre abril e maio de 2020. Até dia 17 de março, o estado acumulava 390.874 infectados e 9.634 mortos pelo novo coronavírus.

O aumento dos números da pandemia no estado obedece a uma tendência nacional que registra suas piores marcas desde o início da pandemia. Para a Fiocruz, o país se encontra no maior colapso sanitário da sua história. Em 16 de março, quando o médico cardiologista Marcelo Queiroga tomava posse como o 4º ministro da Saúde desde o início da pandemia, Parauapebas, no sudeste paraense, alcançava 100% de ocupação dos leitos disponíveis.

Há um ano, o Pará registrou seu primeiro caso confirmado de Covid-19. O caso era de um homem, de 35 anos, residente na capital, mas vindo do Rio de Janeiro. Um dia depois, em 19 de março, viria a ocorrer o primeiro óbito no estado, uma indígena da etnia Borari que vivia em Alter do Chão, Santarém. O caso só foi confirmado dias depois, em 1º de abril, pela Sespa.

Pela data, a morte de Lusia dos Santos Lobato representa a primeira de uma indígena no Brasil. Mas a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), órgão do Ministério da Saúde, ignora esse caso, porque Lusia morava em comunidade não reconhecida pela Fundação Nacional do Índio (Funai). A Sesai, desde o início da pandemia, tem marginalizado, nas contagens e nos atendimentos, os casos de indígenas não-aldeados. Oficialmente, pela Sesai, a primeira morte é a do jovem Yanomami, de 15 anos, em Roraima.

Sob a ameaça da nova variante identificada primeiramente no Amazonas (P1), as regiões que já colapsaram no Pará foram o Baixo Amazonas e a Calha Norte. Entre o fim de janeiro e meados de fevereiro, o estado paraense enfrentou a falta de oxigênio em Oriximiná e Faro – este último município registrou pelo menos 6 mortes por sufocamento.

O primeiro lockdown no Pará foi decretado justamente nessa região, pressionada pela explosão de atendimentos nas unidades de saúde. Entre 1º e 19 de fevereiro, o governador Helder Barbalho decretou o lockdown em 14 municípios paraenses que fazem divisa com o Amazonas. Com o intenso trânsito de pessoas entre um estado e outro, um deslocamento cultural e histórico dessa população, é provável que a variante P1 tenha encontrado as portas abertas para se proliferar pelo resto do Pará.

Pará é o estado que menos vacinou

Chegada da vacina contra o COVID-19 em Santarém no dia 19/01/2021
(Foto: Marco Santos/Agência Pará)

Após um ano de pandemia, a maior parte do mundo vê as curvas de contágio e mortes em declínio. No Brasil, o vírus continua sua escalada mortal. “O que sinto é que o clima de tensão e os riscos estão muito maiores agora que no ano passado”, conta Salete Aparecida da Cunha, de 53 anos, microempresária do setor de alimentos. Moradora de Ananindeua, ela foi acometida pela doença em abril de 2020 e conta que ficou em estado crítico, mas que preferiu não buscar por hospitalização.

“Naquele período estava tão ruim como agora. As pessoas morriam na frente dos hospitais sem conseguir socorro”, conta Salete. Mesmo com seu negócio prejudicado, ela defende o isolamento social e aposta nas medidas restritivas como forma de tentar frear o número de contaminações. “Não tem jeito, as coisas só vão melhorar quando todo mundo for vacinado. É disso que a gente precisa.”

Mas o Pará amarga a menor taxa de vacinação registrada entre os estados. Até 17 de março, foram imunizadas 351.822 pessoas entre idosos, indígenas e profissionais da saúde. Os dados são do vacinômetro da Sespa, que traz ainda o número de doses enviadas aos 144 municípios do estado. Até agora foram remetidas 426.214 doses de vacina às prefeituras, o que mostra a existência de um déficit de 74.392 doses cujo destino, segundo o governo estadual, não foi informado ao sistema da Secretaria de Saúde.

Em 1º de fevereiro, pelo Twitter, o governador Helder Barbalho, se dizendo “extremamente incomodado” com a postura das prefeituras, comunicou que havia decidido tornar públicos os números de vacinas enviadas a cada município.

Segundo dados do vacinômetro, os cinco municípios que menos vacinaram até agora foram São Geraldo do Araguaia, São Caetano de Odivelas, Cumaru do Norte, Pau D’arco e Santana do Araguaia. Questionada pela Amazônia Real sobre a baixa cobertura vacinal, a Sespa informa que “o estado do Pará recebeu menos vacinas proporcionalmente ao número de sua população”.

A chegada de 117 mil novas doses, que desembarcaram em Belém em 17 de março, estão longe de suprir as necessárias vacinas para a população paraense.


  • Filas em frente da Policlínica Meropolitana, em Belém do Pará, um dia antes do lockdown de sete dias decretado pelo governo estadual. (Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real)
  • Triagem inicial feita por profissionais de saúde na porta da Policlínica Metropolitana de Belém. (Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real)
  • Ver-o-Peso horas antes do lockdown decretado pelo governo estadual no dia 15 de março.(Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real)
  • Ver-o-Peso horas antes do lockdown decretado pelo governo estadual no dia 15 de março.(Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real)
  • Ver-o-Peso horas antes do lockdown decretado pelo governo estadual no dia 15 de março.(Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real)
  • Edmilson Teixeira, 49 anos, agricultor. Ele que sofre de diabetes, contraiu e Covid-19 e ficou cinco semanas doente. Ele diz que só sairá da comunidade agora quando houver vacina (Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real)
  • O cacique da aldeia Cajueiro, Reginaldo Tembé, tem estado na linha de frente do combate ao fogo que quase consumiu sua aldeia. (Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real) 26/09/20220
  • Pessoas aguardam atendimento na entrada principal do Hospital de Campanha – Belém, instaado no Hangar Centro de Convenções. (Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real)
  • Portão principal da Policlínica Metropolitana de Belém. Inaugurada na segunda (13), a unidade está reservada exclusivamente para realização de consultas e exames básicos de pessoas sintomáticas da covid-19. (Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real)
  • Travessia para a Ilha de Fortalezinha. Embarcações lotadas e presença de pessoas sem máscara (Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real)
  • Jeferson e Marilia Alcântara, único casal de turistas que a reportagem encontrou usando máscaras (Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real)
  • Kelly foi uma pessoa chave na barreira humana que se formou na beira da praia de Fortalezinha, impedindo que os turistas entrassem no início de julho. Ela conta ter sido agredida por policiais que estavam à paisana. (Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real)
  • Chegada de turistas na praia de Fortalezinha. Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real
  • Manifestação antirracista em Belém (Foto Cícero Pedrosa Neto
    Manifestação antirracismo e pela democracia em Belém (Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real)
  • Manifestação antirracista em Belém (Foto Cícero Pedrosa Neto
    Seccional da Cremação-Belém/Pa: Manifestantes apreendidos foram mantidos no sol enquanto aguardavam o procedimento policial. Manifestação antirracismo e pela democracia em Belém (Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real)

Fonte: https://amazoniareal.com.br/um-ano-de-pandemia-a-luta-por-atendimento-no-para/

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