Manaus (AM) – O Brasil chega neste 11 de março ao seu pior momento da crise sanitária da Covid-19 desde que a Organização Mundial de Saúde (OMS) decretou há um ano a pandemia global. Outros países registram o arrefecimento de casos do novo coronavírus. Já a opção brasileira de negar a gravidade da doença converteu o país no recordista mundial de mortes por Covid-19. E não foi por falta de aviso. O caos nos sistemas de saúde que se vê agora em estados e municípios se instalou primeiro em Manaus, com cenas dramáticas: na primeira onda, mortos foram enterrados em valas comuns; na segunda onda, pessoas morrendo sufocadas por falta de oxigênio medicinal. Pouco ou nada se aprendeu com a trágica experiência do Amazonas.

Neste um ano de pandemia, o Brasil ultrapassou 270 mil vidas perdidas pela Covid-19 e 11,2 milhões de casos. O estado amazonense acumula 11.388 mortes e 327.523 casos da doença. Segundo dados do Ministério da Saúde, a média nacional é 128,8 óbitos para cada 100 mil habitantes. No Amazonas, são 270 óbitos para cada 100 mil habitantes, a maior do país, em dados da Fundação de Vigilância Sanitária (FVS-AM).

O primeiro caso diagnosticado no estado foi em 13 de março de 2020. Uma mulher contraiu o vírus em viagem à Europa. Sem regras de isolamento social por parte dos governos, em menos de um mês a contaminação em Manaus se tornou comunitária. A doença chegou rápido aos povos indígenas, sendo transmitida por profissionais de saúde.

O empresário do ramo de pesca esportiva Geraldo Sávio, de 49 anos, ficou doente, após ser infectado em uma reunião na capital, e morreu de Covid-19 em 24 de março no Hospital e Pronto Socorro (HPS) Delphina Aziz. A unidade de referência no tratamento da doença foi a primeira a colapsar por falta de respiradores e leitos de UTIs, em  abril do ano passado, no Brasil.

O primeiro pico da pandemia aconteceu no mês de maio com 36.123 casos de coronavírus ou 1,2 mil por dia. Em um mês morreram 1.627 pessoas. Sem lockdown, as medidas de isolamento não foram suficientes para deter a transmissão do vírus. Os casos, que em agosto começaram a diminuir, foram aumentando nos meses de novembro e dezembro. O  Amazonas chegou em 2021 enfrentando uma nova onda da pandemia e o extremo da negligência pública.

No mês de janeiro foram notificados 66.381 casos de coronavírus – 2,1 mil por dia.

Era 14 de janeiro, uma quinta-feira, quando a psicóloga Thalita Rocha, de 37 anos, gravou em vídeo um apelo desesperado. “Peço misericórdia de vocês. Estamos numa situação deplorável. Simplesmente acabou o oxigênio de toda uma unidade de saúde. Não tem oxigênio. É muita gente morrendo. Quem tiver disponibilidade, por favor, traga oxigênio aqui para o SPA da Redenção, pelo amor de Deus.” O vídeo, de 35 segundos, enviado inicialmente para familiares e amigos  viralizou e se tornou o retrato do maior colapso da história da saúde pública no Amazonas.

“Parecia o dia do fim do mundo para mim”, lembra Thalita. Às 8 horas, o estoque de oxigênio do SPA da Redenção, localizado na zona oeste de Manaus, acabou. Mas essa interrupção não foi notada de forma imediata. Os pacientes internados começaram a suar e, aqueles que ainda tinham forças, tentavam se abanar em busca de ar.

Thalita Rocha percebeu que as pontas dos dedos e a boca de sua sogra, a enfermeira Maria Auxiliadora da Cruz Lima, de 67 anos, estavam ficando roxos. “Foi ali que percebi que o oxigênio havia acabado. Todo mundo começou a passar muito mal. Eu saí correndo gritando no hospital tentando entender o que estava acontecendo”, recorda a psicóloga.

Antes de o oxigênio acabar, Auxiliadora estava com a saturação entre 97 e 98. Sem o ar artificial, a saturação foi a 35. Thalita ligou para o marido avisando a situação e ele foi em busca de oxigênio para a mãe. Quando chegou ao SPA, a enfermeira já estava muito debilitada. Foram necessárias quase três horas para que a saturação chegasse a 70. Às 21 horas, a família conseguiu a transferência de Auxiliadora para uma UTI. Só que já era tarde demais. Ela não resistiu.

“Tiraram o direito de uma pessoa viver. O mínimo que uma pessoa precisa é de ar. Foi um assassinato, isso”, desabafa Thalita, que descreve a sogra como uma mulher forte e guerreira. Seis anos antes, Auxiliadora havia superado um câncer de mama. Uma profissional cuidadosa e amorosa, apaixonada pela profissão, lembram os familiares.

Thalita Rocha com a filha e os sogros Paulo Jorge Pinheiro de Lima e esposa Maria Auxiliadora da Cruz Lima (Foto: arquivo da família)

Vinte dias depois, a família foi novamente devastada com a morte do também enfermeiro Paulo Jorge Pinheiro Lima, de 66, marido de Auxiliadora. Lima teve a situação agravada depois do colapso de oxigênio em Manaus no dia 14 de janeiro. Durante esse período, foi preciso comprar até os remédios para Lima, que estavam em falta no hospital universitário. “O problema, a falta de oxigênio, é a ponta do iceberg. O problema é muito maior. Só quem está na linha de frente, quem viveu na pele, consegue ter a visão do quão grave é esta situação”, afirma Thalita.

Segundo o defensor público do Amazonas Arlindo Gonçalves, de 43 anos, entre 30 a 50 óbitos ocorridos neste período, receberam o atestado de óbito confirmando a causa mortis por asfixia. “Sabemos que não foram só nos dias 14 e 15 (de janeiro) mas também posteriormente que houve episódios de redução do oxigênio ofertado para os pacientes, de modo a postergar a falta de oxigênio. Foi uma tentativa até heróica dos profissionais da saúde, mas que não garantia que não haveria sequelas ao paciente e que eles não poderiam de repente depois piorar no seu quadro e até vir a óbito”, explica.

Morte de pai inspira defesa das vítimas

Advogado Abdalla Isaac Sahdo (Foto arquivo da família)

Foi na dor da perda do pai para a pandemia que inspirou o filho a criar a Associação de Defesa das Vítimas de Covid do Estado do Amazonas (Adev-AM). “Meu objetivo, agora, é divulgar essa situação para a população do Amazonas, especificamente, e também do Brasil inteiro, tudo o que está ocorrendo nos hospitais públicos do Amazonas e fazer com que essas pessoas que se sentem vítimas dessa situação, que elas entrem façam parte da associação que está sendo criada”, explica Adriann Sahdo, de 40 anos, que conta que o pai, o advogado Abdalla Isaac Sahdo, 64 anos, contraiu o vírus provavelmente no Natal.

Conhecido no meio jurídico como um defensor de causas polêmicas, como denúncias de corrupção e vendas de sentença contra magistrados, Abdalla Sahdo chegou a ser ameaçado de morte.  Com a saúde boa e sem comorbidade, ele foi internado em 6 de janeiro após ser infectado pela Covid-19. “Os hospitais já estavam lotados, sem leitos e sobrecarregados”, lembra Adriann, que conseguiu internar o pai no hospital Platão Araújo, na zona leste de Manaus.

A capital do Amazonas vivia o problema de abastecimento de oxigênio e Adriann constatou isso da pior forma possível. “Diminuíram o oxigênio dele, dizendo que ele tinha que se acostumar com menos oxigênio. E ele estava com 40 a 50% de comprometimento pulmonar”, recorda. Abdalla morreu em 29 de janeiro.

Adriann diz não saber de quem partiu a ordem para reduzir o oxigênio do pai. “Eles sabiam que ia faltar.”

Para implementar a Adev-AM, Adriann conta que buscou o know-how da Associação Brasileira de Parentes e Amigos de Vítimas de Acidentes Aéreos (Abrapavaa), a Associação dos Familiares de Vítimas e Atingidos do Rompimento da Barragem Mina Córrego Feijão Brumadinho (Avabrum), além de contar com o apoio do Sindicato dos Médicos do Amazonas (Simeam).

A omissão de Pazuello na crise do oxigênio

O prefeito David Almeida (Avante) doou os remédios do “tratamento precoce” defendido pelo ministro Eduardo Pazuello (Foto: Dhyeizo Lemos / Semcom/11/01/2021)

O presidente do Simeam, Mário Vianna, afirma que já havia sinais, no fim do ano de 2020, de que o Amazonas passaria por problemas com abastecimento de oxigênio medicinal. “Pelo menos são informações entre os produtores, principalmente a White Martins”, afirma Vianna.

O ministro da Saúde, o general Eduardo Pazuello, está sendo investigado por omissão pelo Supremo Tribunal Federal (STF). O governo de Jair Bolsonaro afirmou “foi informada de maneira tardia”.

Já  Advocacia-Geral da União informou ao STF que, no dia 8 de janeiro, o Ministério da Saúde sabia sobre a falta do insumo na capital amazonense.

A maior fornecedora do insumo ao governo do Amazonas, a empresa White Martins disse em nota, na ocasião que, entre janeiro e março de 2020, o consumo diário de oxigênio nos hospitais públicos era de 12.500 m3 por dia. “Durante a primeira onda da pandemia, alcançou um consumo de 30 mil m3 por dia. No segundo semestre de 2020, reduziu para 15.500 m3 por dia e, atualmente (em janeiro), atingiu cerca de 70 mil m3 por dia e segue crescendo”.

No dia 11, Pazzuelo participou do lançamento do Plano Estratégico de Enfrentamento à Covid-19 no Amazonas e minimizou o colapso de oxigênio, e defendeu  “tratamento precoce” e a doação dos medicamentos como ivermectina e azitromicina, sem eficácia, pelo prefeito de Manaus, David Almeida com o  “Kit Covid” como forma de imunizar a população.

No dia 12 de janeiro, o governo do Amazonas soltou nota dizendo: “é preciso também ainda aumentar a oferta de oxigênio, uma vez que o principal fornecedor da rede hospitalar do Estado anunciou que está operando no limite”.

Em 14 de janeiro, quando a crise de oxigênio foi deflagrada, o médico Mário Vianna recebeu ligações de diversos profissionais de saúde, dando conta do caos generalizado na rede pública de saúde. Uma das ligações era do Hospital Universitário Getúlio Vargas, um dos primeiros a entrar em colapso. Segundo a descrição dos profissionais de saúde, os pacientes precisaram ser colocados em modo de respiração manual.

Familiares denunciaram a falta de oxigênio no Hospital 28 de Agosto
( Foto: Sandro Pereira/FotoArena/Estadão Conteúdo/14/01/2021)

Não demorou para que o drama dentro dos hospitais logo tomasse conta de toda Manaus, que presenciou filas de familiares desesperados em busca de abastecer cilindros de oxigênio. O governo de Jair Bolsonaro, que tardou a agir na crise do oxigênio, àquela altura enviava Pazuello para a capital do Amazonas, ocasião em que ele defendeu o “tratamento precoce” para a Covid-19.

Nos hospitais, a situação beirava o desespero de quem mais se espera o contrário. “Também houve uma orientação, não sei de onde e como e quais os locais especificamente, de que iria se fazer economia, redução do volume de oxigênio ofertado aos pacientes. Isso também pode ter prejudicado os pacientes, causando sequelas ou até mesmo a morte. Isso precisa ser investigado”, aponta o médico Mário Vianna, presidente do Simeam.

Na véspera do colapso de oxigênio, em 13 de janeiro, Manaus registrou 198 sepultamentos, sendo 87 mortes atribuídas à Covid-19, além de sete casos suspeitos. Um dia depois, foram registrados 186 sepultamentos, sendo 87 por Covid-19, além de um caso suspeito. No dia 15, o número saltou para 213 sepultamentos em uma cidade que, antes da pandemia, registrava uma média de 30 enterros diários. Dos 213 sepultamentos, 102 foram declarados por Covid-19, e ainda houve sete casos suspeitos.

Em todo o Amazonas, 2.823 pessoas perderam a vida por conta da doença somente no mês de janeiro, superando até então, o recorde de 1.627 óbitos pela doença, registrado em maio do ano passado.

No dia 14 de janeiro morreram 51 pessoas, conforme a FVS.

Defensoria pública investiga mortes  

Hospital 28 de Agosto na tarde de domingo (24/01)
(Foto: Juliana Pesqueira/Amazônia Real)

O escândalo da falta de oxigênio no Amazonas já chegou à Justiça Federal. Pacientes foram transferidos para outros estados para desafogar a longa fila de espera por um leito, uma estratégia (ou a falta dela) que se repete há algumas semanas em outros estados brasileiros. O Brasil como espelho de Manaus.

Para o defensor público do Amazonas Arlindo Gonçalves, a elevada taxa de óbitos, e toda a condição de desassistência configurada no Estado, já configura um dano coletivo. A Defensoria agora busca levantar dados que comprovem a quantidade de óbitos causados pela falta de oxigênio, e quem são os responsáveis pelas mortes de ao menos 50 pessoas. “Estamos numa fase ainda administrativa com a finalidade de certamente ajuizar uma ação civil pública e o objeto vai ser justamente discutir as responsabilidades civil, se cabe uma indenização em razão das vítimas”, explica o defensor.

A Defensoria já solicitou do governo do Estado uma série de informações técnicas tais como histórico da demanda diária por oxigênio nos últimos 90 dias; fornecedores contratados; quando de fato se deu a indicação de insuficiência local de oxigênio, e que medidas foram adotadas. Arlindo quer saber ainda qual foi o planejamento do Estado para contornar a crise, o número de óbitos por causa do desabastecimento de oxigênio e a quantidade de usuários que receberam suporte de oxigênio hospitalar pelo Estado no domicílio (Gegas).

O governo do Amazonas ainda não entregou todos os dados, como o número de pacientes que não morreram entre os dias 14 e 15 de janeiro, mas que sofreram sequelas irreversíveis por conta do desabastecimento. Para esta questão, o prontuário dos pacientes será de fundamental importância para analisar caso a caso.

De 1o. de janeiro até 10 de março foram 6.103 óbitos – 88 por dia.

O governador Wilson Lima (PSC), que admitiu a gravidade da situação, chegou a adotar um lockdown parcial, mas tão logo os números começaram a arrefecer, depois desta devastadora segunda onda, decidiu flexibilizar as atividades comerciais. Durante a pandemia, ele e o vice-governador Carlos Almeida Filho (PTB) foram alvo da Operação Sangria da Polícia Federal. A ação investiga crimes como fraude à licitação, desvio de recursos públicos e lavagem de dinheiro na compra de 28 respiradores importados por uma empresa de vinhos para tratar doentes de Covid-19 nos hospitais públicos do estado.

A opção de Wilson Lima no combate a pandemia vai na contramão do que dizem especialistas, que ainda é preciso imunizar a maior parte da população e manter o isolamento social.

Está sendo investigado se a variante brasileira identificada primeiro na capital amazonense, em turistas que voltavam ao Japão, surgiu nos últimos meses de 2020. Epidemiologistas afirmam que a flexibilização liberada pelas autoridades do Amazonas e de Manaus pode ter criado o ambiente propício para o surgimento de uma variante, que já se sabe ser mais transmissível que a originária e causou grande estrago.

Até o momento, o estado do Amazonas já aplicou 414.149 doses da vacina contra Covid-19. Foram 320.744 na primeira dose e 93.405 na segunda dose. Embora seja o estado com o maior percentual de vacinação, com 7,57% (segundo o consórcio de veículos de imprensa) e acima dos 4,26% do total brasileiro, o índice está longe de chegar perto dos necessários 70% de população imunizada. A Justiça Federal cobrou a compra de vacinas do governo estadual.

“É claro que neste momento ainda é muito recente para as famílias e a gente respeita a situação, a gente sabe que aquela pessoa vai estar vivendo o luto e ela não vai naquele momento procurar uma indenização por dano moral. Independente disso, o dano moral à coletividade está caracterizado”, lembra o defensor público Arlindo Gonçalves.

Fonte: https://amazoniareal.com.br/um-ano-de-pandemia-brasil-espelho-de-manaus/

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