A Comissão Ambiental do Parlamento Europeu está atualmente debatendo sobre o texto da proposta da lei FERC (Lei sobre importação de produtos com risco florestal), também chamada de lei anti desmatamento, que vai ser votada em setembro. A legislação contém algumas brechas de extrema relevância para a garantia dos direitos dos Povos Indígenas e a proteção dos seus territórios.
Os países europeus, importadores de commodities brasileiras como carne, soja e couro, precisam se responsabilizar pelos impactos que essas cadeias produtivas de larga escala têm nas Terras Indígenas no Brasil. A Europa é o segundo mercado de venda da soja produzida no Brasil, além de grande importador de carne bovina brasileira e outros produtos de risco florestal. O agronegócio, a mineração e outras explorações em grande escala exercem uma forte pressão sobre a proteção dos biomas brasileiros, a garantia dos direitos indígenas e as mudanças climáticas. A demanda europeia de commodities amplifica esses conflitos. Por isso, é preciso impor limites e criar mecanismos de rastreabilidade comprometidos com os direitos humanos e o meio ambiente. O Brasil vive atualmente um delicado momento de desmonte das políticas e instituições, além de um aumento da violência no campo tal e como o assasinato do indigenista Bruno Araújo e do jornalista Dom Phillips tem demonstrado. Segundo o relatório da Global Witness de 2021, o Brasil é o quarto país mais violento para defensores do meio ambiente e dos direitos humanos.
Para incidir nesse debate, a APIB fez um tour pela Europa com uma comitiva de lideranças indígenas entre os dias 8 e 17 de junho. Nos primeiros dias a comitiva esteve em Paris, França, acompanhando as investigações do caso Casino, varejista de supermercados no nível internacional acusado de vender produtos vinculados ao desmatamento e grilagem de terras no Brasil e na Colômbia (pode ler mais sobre o início e os objetivos do Tour da APIB na Europa aqui). Na segunda parte da viagem, entre os dias 13 e 17 de junho, a comitiva de lideranças indígenas da APIB esteve em Bruxelas, Bélgica, e fez várias reuniões com membros e comissões do Parlamento Europeu para se posicionar sobre a Lei de Importação de produtos com risco florestal (FERC) e para exigir que o Parlamento inclua as demandas dos Povos Indígenas na dita legislação.
Os ministros representantes dos Estados membros da União Europeia vão colocar suas posições em relação à lei no próximo Conselho europeu de Meio Ambiente, que vai acontecer no dia 28 de junho. Posteriormente, o Comitê de Meio Ambiente, Saúde Pública e Segurança Alimentária -que é o responsável pela elaboração da lei FERC- vai votar na metade de julho sobre as propostas de modificações do rascunho apresentado, com o objetivo de ter o texto definitivo para votação da lei em plenária do Parlamento em setembro de 2022.
O que propõe atualmente a Lei de Importação de produtos com risco florestal (FERC)?
A proposta do Parlamento Europeu com a Lei de Importação de produtos com risco florestal (FERC ou European Commission’s Proposal for a regulation on deforestation-free products) é inibir a importação de produtos que promovem o desmatamento ilegal dentro das suas cadeias produtivas. A proposta de lei, apresentada no 17 de novembro de 2021, busca criar sanções a produtos que promovem um risco ao meio ambiente, mas só seria implementada em terras consideradas florestas segundo a definição da FAO (Food and Agriculture Organization of the United Nations). Essa definição desconsidera uma grande parte dos biomas brasileiros e, em consequência, exclui também a realidade de uma boa parte dos Povos Indígenas do Brasil.
Se levada em conta a atual definição de florestas da FAO ficariam em risco por conta das cadeias de produção de commodities em larga escala: 75% do Cerrado, 89% da Caatinga, 76% do Pantanal e 74% de Pampa, segundo dados de MapBiomas.
A proposta de lei seria aplicada em apenas 15% da região do Pantanal, um dos biomas mais atingidos com as queimadas nos últimos anos, e desconsidera por completo o bioma Pampas no sul do país, onde se desenrolam históricos processos de invasão e ocupação de terras indígenas, ocasionados principalmente pelo avanço da soja e pecuária. O bioma Cerrado, tem apenas ¼ de sua área reconhecida como floresta dentro da definição da FAO, sendo hoje uma das regiões com avanço significativo do agronegócio e da pecuária, além da expansão da fronteira agrícola na região do MATOPIBA, que já traz impactos para a contaminação dos solos e águas por conta do uso excessivo de agrotóxicos. A Mata Atlântica e a Caatinga também não estariam completamente reconhecidas como floresta apesar de estarem intensamente consumidas e ameaçadas por atividades industriais e pelo agronegócio, respectivamente. A Amazônia seria o único bioma com maior extensão reconhecida como floresta dentro das considerações da legislação anti desmatamento. Entretanto, cerca de 15% do bioma ficaria desprotegido com essa lei, como o caso do Lavrado, vegetação presente em partes do estado de Roraima, além de outras manchas de Cerrado presentes na Amazônia.
Outra brecha da proposta da FERC é que exige apenas que cada país seja responsável pelo cumprimento das suas leis nacionais. No entanto, isso implica um grande risco no atual contexto de desmonte de políticas públicas promovido por um governo anti indigenista como o que existe atualmente no Brasil que poderia continuar comercializando certos produtos sem estar descumprindo nenhuma lei nacional. A proposta da lei também não fala sobre o direito de posse e usufruto exclusivo dos Povos Indígenas sobre suas terras nem da obrigação de cumprimento de leis internacionais como o artigo 169 da OIT.
E a terceira e última debilidade da legislação apontada pela APIB é a que diz em relação aos produtos que poderiam ser rastreados e data limite de comercialização. O rascunho da lei incide sobre seis commodities: café, cacau, carne refrigerada e seca, óleo de palma, madeira, soja e derivados, (como ração feita com base de soja). A cadeia de produção desses produtos precisa ser avaliada antes de entrar na União Europeia para que nenhum deles provenha de terras desmatadas ou degradadas depois do 31 de Dezembro de 2020. A lei exclui a rastreabilidade de carne enlatada, milho e algodão, entre outros produtos de risco florestal. Ao mesmo tempo, a determinação temporal para a comercialização permite, por exemplo, que carne congelada, assim como cereais estocados (como a soja) que foram produzidos em pasto desmatado em 2019 possam ser comercializados.
Quais são as demandas da APIB em relação a legislação anti desmatamento (FERC)?
A APIB apela ao Parlamento Europeu para que reconheça a realidade dos impactos multidimensionais e da responsabilidade das dinâmicas econômicas e comerciais europeias sobre as terras indígenas no Brasil. Para isso, solicita mais especificamente:
- São necessários mecanismos eficazes de rastreabilidade das cadeias de produção de commodities porque as pressões produtivas, econômicas e financeiras provocam um grande impacto ambiental e um aumento da violência contra os Povos Indígenas, principalmente contra suas lideranças.
- Todos os biomas do Brasil precisam estar incluídos na lei europeia anti desmatamento, como uma resposta concreta à emergência climática e aos casos de violência que têm se multiplicado em nossos territórios, com o estímulo do governo brasileiro. A APIB quer que não seja utilizado o conceito da FAO sobre a definição de florestas, e assim permitir que para além da Amazônia, esta legislação também inclua a proteção do Cerrado, Pantanal, Pampas, Mata Atlântica e Caatinga.
- É preciso considerar a posição dos Povos Indígenas: ir além das metas estabelecidas nos acordos internacionais, considerar o papel vital que as comunidades indígenas desempenham nas responsabilidades climáticas como guardiões da floresta e levar em consideração opinião de quem sofre diretamente os impactos das cadeias de produção de commodities predatórias no Brasil.
“Para nós Povos Indígenas nenhum bioma é diferente, todos fazem parte do território brasileiro que é um território indígena. E nós, os indígenas, estamos em todos esses biomas. Então é importante que a legislação europeia anti desmatamento considere todos eles”, declara Kretã Kaingang, coordenador executivo da APIB. “O que dói com a soja, o que dói com os assassinatos, o que dói com a invasão dos territórios, o que paralisa a demarcação de terras indígenas acontece em todos os biomas. A partir da inclusão de todos os biomas nessa legislação a gente tem uma força a mais para poder defender esses biomas. A gente já faz isso sem lei, mas a gente sabe que na Europa se compram produtos de todos esses biomas, não só da Amazônia, e a proteção deles influencia nas nossas vidas no dia a dia”, adiciona Kaingang.
Mais detalhes no documento elaborado pela APIB: “Mensagem para o Parlamento Europeu sobre a urgência da aprovação da lei europeia anti-desmatamento (FERC)”.
Como foi feita a campanha de incidência da APIB no Parlamento Europeu?
Na quinta 16 de junho a delegação da APIB e a Extinction Rebellion fizeram um ato em frente a Comissão Europeia para exigir que os parlamentares incluam as demandas dos Povos Indígenas na Lei de importação de commodities de risco florestal (FERC). (Consulta as fotos do ato aquí)
“A nossa incidência no Parlamento Europeu foi muito necessária para que colocássemos nossa situação como Povos Indígenas do Brasil no que diz respeito a commodities. Graças a esse diálogo com o Parlamento Europeu pode ser possível modificar a minuta da lei que nós chamamos em português de anti desmatamento. Nós estamos aqui diante de uma oportunidade para intervir internacionalmente como organizações indígenas, pois é difícil sermos ouvidos no contexto atual do Brasil com esse governo anti indígena e fascista, que visa somente lucro às custas de quem mora naquele chão como nós”, explica Crisanto Rudzö Tseremey’wá, liderança da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB).
Durante a estadia da comitiva em Bruxelas, outras reuniões importantes aconteceram como os encontros com José Manuel Fernandes, chair da delegação brasileira da União Europeia; Jérémy Decerle, eurodeputado francês; e Anne-Margreet Sas, representante do tema de agricultura da comissão permanente do Reino Unido Holanda no Parlamento Europeu. Nos três encontros, os membros do parlamento se mostraram interessados em entender a conjuntura atual no Brasil sofrida pelos Povos Indígenas, mas alegaram que neste momento não seria viável a inclusão dos outros biomas na lei anti-desmatamento. Possivelmente, após a aprovação da lei pelo Parlamento (que deve ocorrer em Setembro de 2022), a inclusão de outros biomas e/ou de uma definição de florestas/vegetação mais abrangente poderá ser incluída na revisão da regulamentação, que deverá ocorrer em 2024. Esse foi o mesmo discurso utilizado pelos técnicos do Conselho geral de Meio Ambiente e o Centro de Pesquisa do Parlamento Europeu sobre a inclusão dos biomas. Eles também reiteraram que os direitos humanos, incluindo os dos Povos Indígenas, deveriam ser estabelecidos em outra legislação de devida diligência (ainda em elaboração pelo Parlamento) e não por uma lei anti desmatamento. Essas reuniões frustraram a delegação da APIB, em ver que o Parlamento Europeu não está assim tão comprometido em mitigar seu rastro de destruição para garantir o abastecimento de commodities.
Por outro lado, houve momentos de apoio como o encontro com deputados do Grupo dos Verdes do Parlamento Europeu, formado por Michèle Rivasi, Grace O’Sullivan, Francisco Guerreiro, Anna Cavazzini, entre outros. No almoço com parte da delegação indígena, fortaleceram a rede de apoio para que seja construída uma lei anti desmatamento ambiciosa, que atenda as demandas dos povos indígenas e daqueles que são os mais impactados pela produção de commodities. Além das reuniões com membros do Parlamento Europeu, a delegação da APIB aproveitou o momento para se reunir com sua rede de parceiros na Europa, como a FERN, Greenpeace, Global Witness, Friends of Earth para fortalecer as alianças e debater ações estratégicas de incidência para garantir o cumprimento dos direitos dos Povos Indígenas.
Consulta mais fotos do Tour da APIB na Europa:
Qual é a importância de uma mobilização internacional dos Povos Indígenas?
Em um cenário de desmonte das políticas públicas no Brasil e do avanço ilegal das indústrias (agronegócio, pecuária, mineração, energia, hoteleira), a demanda produtiva e econômica vinda da União Europeia e outros países e blocos econômicos por esses produtos alimenta e acelera os processos de invasão, expropriação e destruição dos Povos Indígenas e suas terras. O direito ao território está garantido pela Constituição Federal de 1988, pelo processo de demarcação, sendo de responsabilidade do poder Executivo Brasileiro. Porém, num cenário onde o presidente do Brasil é o maior inimigo dos Povos Indígenas e reforça o avanço do agronegócio e a fragilidade das instituições de fiscalização, cabe aos parceiros econômicos e comerciais do Brasil cobrarem e pressionarem para o cumprimento dos direitos originários dos Povos Indígenas.
Além disso, a APIB denuncia que os assassinatos do indigenista Bruno Araújo e do jornalista Dom Phillips não são casos isolados, mas consequência de uma violência sistemática promovida pelo Estado militarista e anti indígena comandado pelo genocida Bolsonaro. “Encontraram os corpos do Bruno Araújo e do Dom Phillips. Essa é a situação real do nosso país e por isso estamos aqui na Bélgica, para fazer essas denúncias e para dialogar com os deputados sobre as leis que estão sendo criadas aqui na Europa e que afetam diretamente as nossas vidas nos nossos territórios”, afirma Eunice Kerexu, coordenadora executiva da APIB. “Nós não estamos aqui para dizer que pare essa exportação, senão para reforçar a necessidade de criação de uma legislação que nos ajude a proteger nossas vidas e nossos territórios”, adiciona Kerexu.
Sobre a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB)
A APIB é a maior instância de representação do movimento indígena brasileiro e tem, desde sua criação, cumprido com seu compromisso de lutar pela garantia dos direitos constitucionais dos Povos Indígenas. Seja em âmbito nacional ou internacional, a APIB e suas sete organizações de base estão mobilizadas na proteção de territórios, comunidades e pessoas.
Os Povos Indígenas, articulados por meio de suas organizações regionais e pela APIB, buscam em todas as instâncias – nacionais e internacionais – a responsabilização dos culpados por essa destruição. Internacionalmente, a APIB, além de participar de eventos e debates climáticos, busca a responsabilização dos agentes motivadores das dinâmicas de invasão, exploração ilegal e destruição dos territórios indígenas, assim como incide no debate sobre a formulação da nova lei de importação de commodities de risco florestal (FERC). No Brasil, a APIB tem historicamente mobilizado o movimento indígena e enfrentado as políticas anti indígenas que tramitam no Supremo Tribunal Federal e na Câmara dos Deputados, conformando a linha de frente da proteção aos Povos e Terras Indígenas, e consequentemente, do meio ambiente e do futuro. Para proteger os territórios indígenas e garantir o respeito aos direitos constitucionais, a APIB resiste e avança em diferentes escalas.
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