Nota da FUNAI em favor do agronegócio e decisão liminar proferida pela Justiça Federal de Eunápolis espalham terror e convulsão social na TI Barra Velha, que fica no entorno do Monte Pascoal, onde se realizou a Primeira Missa do Brasil
Quadro da Primeira Missa no Brasil, de Victor Meireles: os pataxó estão na região do Monte Pascoal desde a invasão portuguesa do Brasil.
por Tatiana Scalco, com colaboração de Thyará Pataxó e João Payayá, para Jornalistas Livres
Na última segunda-feira (22), às 17h, mais uma vez a Polícia Militar esteve na Terra Indígena (TI) Barra Velha, no extremo sul da Bahia, no entorno do Monte Pascoal, a primeira porção de terra avistada por Pedro Álvares Cabral e sua tripulação, no dia 22 de abril de 1500, data do início da invasão do território brasileiro pelos portugueses. Território Pataxó desde aquela época, a TI Barra Velha está ameaçada. Lideranças relatam que os policiais foram truculentos e ameaçadores. Além disso, informam que tiros continuam sendo disparados contra as comunidades das aldeias Boca da Mata e Cassiana. Conforme os Indígenas, os ataques são realizados por pistoleiros. Mas adiantam que eles resistem e defenderão suas terras.
Os ataques a ambas aldeias foram intensificados na semana passada. Dois fatos podem ter estimulado a violência: a decisão do juizado federal de Eunapólis de conceder liminar de “interdito proibitório” contra os Pataxós da TI Barra Velha, publicada em 17 de agosto e a Nota de Esclarecimento sobre os recentes episódios ocorridos no sul da Bahia, publicada pela pela presidência da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), cinco dias depois (22 de agosto).
Sete caciques estão ameaçados de morte na TI Barra Velha. Contudo, eles falam que seguem unidos e na luta. Um dos caciques mais velhos comenta: “Esta terra é uma terra indígena. Esse é um Brasil indígena. E estamos juntos na luta. Não vamos abrir a mão, nem o pé”. E continua,
“Nós somos os donos das nossas terras de origem. O povo deles matou e continua matando o nosso povo. Acabando com tudo. E hoje os nossos povos indígenas estão reivindicando os seus direitos e eles estão dizendo que nós estamos errados. Nós não somos invasores. Primeiro os invasores foram o povo dele, Pedro Alvares Cabral. Desde que Pedro Álvares Cabral chegou aqui no Brasil, o Brasil já tinha índio e continua tendo índio. Tá entendendo”.
O Movimento Indígena está articulado e acompanha a situação. Denúncias e solicitações de providências junto aos órgãos públicos responsáveis têm sido encaminhadas por meio de suas diferentes organizações locais, regionais e nacionais, como FINPAT (Federação Indígena das Nações Pataxó e Tupinambá do Extremo Sul da Bahia); MUPOIBA (Movimento Unido dos Povos e Organizações Indígenas da Bahia); APOINME (Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo), APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil).
Dentre as diferentes ações tomadas, pode-se citar que a FINPAT entrou com representação junto ao Ministério Público Federal solicitando a instauração de Procedimento Investigatório Criminal (PIC), “dada a existência de grupo paramilitar fortemente armado voltado para a prática/difusão do racismo e da violência contra os últimos indígenas que resistem em seus territórios tradicionais já devidamente delimitados por laudo antropológico da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) – Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação (RCID), no Sul e Extremo Sul da Bahia.”
O MUPOIBA solicitou providências junto aos diferentes órgãos estaduais e federais. As respostas têm chegado, aos poucos. Dia 22 de agosto a Polícia Militar da Bahia (PM BA) informou que:
“Nas ocupações citadas, o tratamento entre os indígenas e a PMBA (Companhia Independente de Policiamento Especializado/Mata Atlântica – CIPE/MA) foi ordeiro e respeitoso. Não houve emprego de força, tampouco orientações para desocupação ou permanência dos grupos. Por fim, saliento ainda que foi instaurada sindicância para melhor esclarecimento da denúncia de suposta participação de policial militar em retomada de propriedade, com acompanhamento da Corregedoria.”
Dinaman Tuxá comenta que tanto APIB quanto APOINME estão “fazendo incidências e solicitando providências sobre os fatos ocorridos”: “Estamos monitorando e acompanhando os fatos de perto para tomar os remédios jurídicos cabíveis para a proteção daquelas comunidades ali que estão sofrendo com essa violência”. E completa, “estamos estudando a possibilidade de ingresso em mecanismos internacionais para tentar chamar atenção internacional dos fatos que vêm ocorrendo ali”.
O Jurista Flávio Bastos destaca que a situação é consequência da ausência de equipes de fiscalização e do “desmonte dos aparatos administrativos, normativos e protetivos das terras indígenas”. Bem como das “décadas de espoliação, de tomada das terras tradicionais indígenas por parte de posseiros, fazendeiros, grileiros.” E continua, comentando que “este processo violento está sendo estimulado por ação direta ou por omissão do governo federal, bem como de alguns governos estaduais que violam claramente, frontalmente, a Constituição Federal, a Convenção 169 da OIT – que o Brasil reconhece expressamente e é obrigatória.
Além disso, também desrespeitam a Declaração das Nações Unidas sobre o Direito dos Povos Indígenas e a Declaração Americana sobre o Direito dos Povos Indígenas, ensina Bastos. O Brasil é membro das Nações Unidas e da OEA – Organização dos Estados Americanos. Como tal, é signatário das declarações que tratam dos direitos dos povos Originários.
Entenda a situação
Arte: Tiago Miotto/Cimi, fonte CIMI
A Terra Indígena Barra Velha é território Pataxó desde a época do descobrimento. Os indígenas lutaram e conseguiram que fosse realizado estudo circunstanciado neste Território Indígena. O relatório ficou pronto em 2007 e foi publicado pela FUNAI em 2009. O Território foi identificado com uma área de 52.748 hectares. Nele há 22 comunidades e mais de cinco mil indígenas.
Clique no link para acessar o Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação (RCID)
Demarcação parada
Desde a publicação do RCID já se passaram 24 anos esperando a titulação das terras indígenas. O processo de demarcação está parado desde 2009. Isso ocorre, também, porque um grupo de fazendeiros e o sindicato rural de Porto Seguro tentam anular a demarcação na justiça, desde 2013. Seis mandados de segurança foram protocolados no Superior Tribunal de Justiça (STJ) solicitando que fosse impedida a publicação da Portaria Declaratória da área pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública – passo seguinte do processo demarcatório. Os pedidos de anulação da demarcação baseiam-se na tese do marco temporal.
Mapa TI Barra Velha com indicação de propriedades certificadas para fazendeiros – fonte: CIMI
O STJ atendeu de forma liminar o pedido e suspendeu o andamento do processo. Seis anos depois, em 2019, a Primeira Seção do STJ derrubou por unanimidade a liminar e reconheceu em decisão de mérito a legitimidade e validade da demarcação da TI Barra Velha. A decisão derrubou qualquer impedimento para a publicação da Portaria Declaratória da TI pelo Ministério da Justiça. Contudo isso ainda não ocorreu. Os ruralistas recorreram ao Supremo Tribunal Federal (STF) e cinco das seis ações ainda tramitam lá.
Porque as Aldeias Cassiana e Boca da Mata são estratégicas para o TI Barra Velha?
As Aldeias Cassiana e Boca da Mata estão numa localização crucial dentro do TI Barra Velha. Elas são pontos centrais na logística para o acesso e circulação dos indígenas dentro e fora do Território. Duas são as principais vias de acesso ao TI, ambas passam por elas. A entrada principal permite que essas comunidades e todas as outras dentro do TI Barra Velha acessem mais rápido hospitais e as cidades um pouco maiores da região. É por aí que chegam os alimentos, remédios, passam os casos de emergência médica, etc. E por aí que eles chegam aos rios, imprescindíveis a sua sobrevivência física, cultural e espiritual.
Mapa de localização Acesso TI Barra Velha e Aldeias Cassiana e Boca da Mata
Atualmente, os maiores conflitos acontecem justamente nessa área dentro dos limites do TI Barra Velha: no entorno das Aldeias Cassiana e Boca da Mata. Os fazendeiros, com apoio de pistoleiros e milicianos, têm se concentrado e cercado esses acessos.
Os Pataxó defendem seu território. Lideranças indígenas falam que estão lá também como “forma de impedir que madeireiros e caçadores continuem depredando o seu patrimônio”(do TI Barra Velha).
No dia 17 de agosto, o juiz federal de Eunapólis, Pablo Henrique Carneiro Baldivieso, concedeu decisão liminar contra a comunidade indígena Pataxó de Barra Velha em favor do espólio de Pedro Alcântara Costa, numa “ação de interdito proibitório”. A decisão do juiz Baldivieso cita, mas não considera a manifestação da FUNAI que informa que a área em questão “encontra-se totalmente inserida na terra indígena Barra Velha do Monte Pascoal, com status de delimitada”. A manifestação do Ministério Público Federal “pelo indeferimento da antecipação da tutela, uma vez que não restaria evidenciado o exercício da posse”, também é citada, mas não considerada.
A decisão do juiz poderá ter como desdobramento pressão ainda maior dos fazendeiros, impedindo aos indígenas o acesso a esses rios. O que cria para os Pataxós crise de subsistência e crise espiritual.
Mapa de projetos e iniciativas no TI Barra Velha – Fonte: Parra, Lilian Bulbarelli (2016)
Os Pataxó e sua relação com os rios do Território
O estudo antropológico (RCID) publicado destaca que o acesso aos rios do território é imprescindível à subsistência física, cultural e espiritual dos Pataxós. Na área dos conflitos atuais, a manutenção do acesso aos rios Cemitério e Benício foi um dos motivos da ocupação dos indígenas e defesa das comunidades Cassiana e Boca da Mata.
Lideranças Pataxó informam que o agravamento do conflito deu-se, também, porque os fazendeiros quiseram impedir que os indígenas continuassem com acesso aos rios. Acesso esse que nunca deixou de existir, desde tempos imemoriais. Eles destacam que sua posse sempre se deu a partir do acesso a esses rios. Para os Pataxós, os rios são imprescindíveis, tanto espiritualmente, pois lá está o cemitério onde estão enterrados os seus antepassados (e por isso o nome é Rio do Cemitério), quanto fisicamente e economicamente, porque lá é que se retira água para dessedentação dos animais, se faz a pesca e a catação de mariscos.
Na TI Barra Velha estão três Unidades de Conservação (UC) sobrepostas: a Área de Proteção Ambiental (APA) Caraíva-Trancoso, a Reserva Extrativista (RESEX) Corumbau e o Parque Nacional Histórico de Monte Pascoal. Local de intensa beleza e alto valor, sofre invasões, pressão da especulação imobiliária, de empresários do turismo de Caraíva e do tráfico de drogas, entre outros.
Foto: Reprodução
Cronologia da última semana
#Aldeia Boca da Mata
No mesmo dia da decisão do juiz, 17 de agosto, durante a tarde, a aldeia Boca da Mata esteve sob intenso tiroteio. As crianças que estavam na escola indígena foram cercadas, aterrorizadas, impedidas de sair e voltar para casa. Professores e pais ficaram em pânico. O tiroteio durou cerca de uma hora e ocorreu enquanto as crianças estavam tendo aula de esporte, jogando no campo ao lado da escola.
Bala encontrada em casa Pataxó
no dia 17/8, após tiroteio realizado.
“Socorro meu povo, os tiros está tudo vindo em cima das casas na Boca da Mata. Estão atirando … É muito tiro, bomba, granada, (…)”
No final da noite (17 de agosto), houve troca de tiros entre os próprios milicianos e a PM da Bahia. Policiais militares ficaram feridos. Logo em seguida, passaram a circular em grupos de whatsapp da região áudios de fazendeiros locais acusando os indígenas de terem causado os ferimentos nos policiais. Lideranças da comunidade Pataxó, entretanto, refutam essas acusações, dizendo que a comunidade não tem recursos suficientes para subsistência, muito menos recursos para aquisição de armas como aquelas que estavam sendo utilizadas.
Lethicia Reis, assessora jurídica do Conselho Missionário Indigenista (CIMI), esclarece que no dia 17, ao mesmo tempo, aconteceram dois conflitos na região: o ataque à Aldeia Boca da Mata e um conflito entre a Polícia Ambiental que estava protegendo a Mata Atlântica do Parque Nacional do Monte Pascoal e pessoas foram identificadas posteriormente como policiais que estavam à paisana.
Dra. Lethicia explica “aí houve um conflito entre essas duas partes, polícia ambiental e essas pessoas que estavam tentando desmatar a área – que há boatos que essas pessoas são policiais a paisana, ou milicianos ou jagunços, não se sabe ao certo – duas delas parecem que foram baleadas. Mas isso não foi na área de retomada e isso não está relacionado à luta dos Pataxó”.
As aulas das aldeias próximas, tanto Cassiana quanto Boca da Mata foram suspensas. O motivo é o clima de tensão e ameaças que as próprias crianças indígenas têm sofrido. Inclusive de serem atingidas por bala, informam as lideranças.
#Aldeia Cassiana
Na Aldeia Cassiana, a situação é gravíssima. Os indígenas informam que diversas famílias estão impedidas de transitar. “Estamos cercados”, dizem. Encontram-se sem possibilidade de comprar alimentos ou sair para trabalhar. O aumento diário da violência contra eles tem acontecido. Fazendeiros e pistoleiros fiscalizam as entradas e estradas das comunidades. O medo é grande, falam as lideranças. A APIB denuncia que esses atos são resultado de uma retaliação sistemática do agrobanditismo, conduzida por proprietários de fazendas vizinhas à TI, em decorrência de retomadas de terra no mês de junho e agosto na região.
Há poucos dias houve também mais uma tentativa frustrada de tornar a comunidade refém. No processo, contam os indígenas, pistoleiros tentaram atear fogo em uma das pontes de madeira que dá acesso a aldeia Boca da Mata e Cassiana. Membros das comunidades relatam temer que aconteça um novo massacre como o de 1951, em que foi dizimada a maior parte da população Pataxó na época.
Uma das moradoras da aldeia Cassiana, senhora, mãe de oito filhos, com 14 netos, comenta que está lá “esperando qualquer coisa”. Para a anciã, a terra é necessária para sobreviver. Ela afirma que não sai, a não ser morta. O comentário da indígena reverbera a situação de violações que outras etnias indígenas baianas também sofrem. O Cacique Babau Tupinambá, por exemplo, diz que “morrer é fácil. Viver é que é muito díficil”. Especialmente viver com dignidade, completa Babau.
Conversa entre Yulo Oiticica e parte dos moradores da aldeia Cassiana em 17 de agosto de 20220. Arquivo Pataxó TI Barra Velha.
Casa destruída por milicianos
No dia 17 de agosto, a aldeia Cassiana foi visitada pelo Superintendente de Políticas Territoriais e Reforma Agrária– SUTRAG da Secretaria de Desenvolvimento Rural (SDR) do Estado da Bahia, Yulo Oiticica. Oiticica constatou em primeira mão a situação precária da Aldeia. Ele confirma que constantemente “os caciques estão todos sendo ameaçados” e a “situação é muito tensa”. E continua, destacando que lideranças indígenas informam que “constantemente milicianos aparecem”, tendo como apoio a “participação de viaturas da polícia militar e policiais militares com eles. Dando tiros inclusive”.
Os indígenas denunciam que “são os milicianos que estão dando tiros para a aldeia, onde todas as lideranças indígenas, inclusive muitas mulheres e crianças acabam correndo para o meio do mato”. E completa, “não são os policiais” que estão atirando. Oiticica informa que viu uma ponte de madeira incendiada. Ela foi incendiada por, segundo relatos, milicianos numa tentativa de utilizar o fato para incriminar lideranças indígenas.
Ponte incendiada no TI Barra Velha, próxima as aldeias Cassiana e Boca da Mata.
Dias 18 e 19 de agosto (quinta e sexta-feira)
Os indígenas realizaram o XXIII KÃDAWÊ NUHATÊ PATAXÓ/ Festa da Resistência / Celebração / Frente de Resistência e Luta Pataxó , na aldeia Pataxó Pé do Monte no TI Barra Velha. No encontro várias organizações Pataxó, indigenistas e parceiros nacionais e estrangeiros falaram da situação local e também dos massacres que os povos originários sofreram e ainda sofrem. Território, Cultura, Tradição, Meio Ambiente foram celebrados.
Dia 20 de agosto (sábado)
Após convocação pelas redes sociais, os fazendeiros e grileiros da região realizaram manifestação na BR 101. Vídeos que circulam nas redes
Manifestação de Bolsonaristas
mostram que durante a manifestação, indivíduos declararam que não eram indígenas as pessoas que estavam nas Aldeias Boca da Mata e Cassiana.
“E nós estamos fazendo aqui hoje, é, fechando a BR 101, para o Ministério da Agricultura, senhor Nabham Garcia, aquele que está estas pautas que representa a agricultura nesse país. Aqui temos pessoas que foram expulsas por pessoas que se dizem indígenas. Nós temos contatos de quase todos os caciques da região, eles não estão ligados à essa turma. Então precisa identificar, saber quem é essa turma”, fala o senhor no vídeo.
A reportagem consultou o Conselho de Caciques do TI Barra Velha e foi informada que os indígenas das Aldeias Cassiana e Boca da Mata são Pataxós do TI Barra Velha. Também, que as declarações veiculadas não são verídicas. O Conselho de Caciques publicou nota em que registra que “vídeos mostram que viaturas da polícia militar, civil, Rondesp, ao chegar perto do território pataxó retomado, tiram a placa de identificação das viaturas, deixando famílias preocupadas por desconhecer a real intenção destes policiais; já que foi anunciado que eram os próprios policiais que estavam cometendo essas atrocidades de forma privada.”
Dia 22 de agosto (segunda-feira)
Mais uma vez a Polícia Militar esteve na Aldeia Boca da Mata. Lideranças indígenas relatam que “os tiros continuam”, “tá tudo muito tenso” e que a abordagem dos PM foi “muito truculenta”. Após diálogo entre indígenas e os PMs, os mesmos foram embora.
Órgãos Executivo, Legislativo e da Justiça acompanham a situação, bem
como os movimentos da sociedade civil
Comissão de Direitos Humanos e Segurança Pública da Assembleia Legislativa da Bahia (ALBA)
“Estamos acompanhando de perto o desenrolar da situação. Muito preocupados. Defendemos a integridade dos nossos povos indígenas e lamentamos a situação que o nosso país está se chegando. Nossos parentes sendo tratados da forma como estão sendo tratados. Isso nos envergonha, nos entristece e nos deixa todos revoltados”, comenta Jacó Lula da Silva – deputado estadual (PT BA) e atual presidente da Comissão de Direitos Humanos e Segurança Pública da ALBA.
Defensoria Pública da União
“Os recentes ataques aos indígenas no sul do Estado são mais um produto da inércia intencional do estado brasileiro em tutelar os direitos dos povos indígenas, agravada no atual governo, que não esconde o seu manifesto propósito de atuar contrariamente aos interesses dos povos indígenas. Há um projeto evidente de abandono dos indígenas no Brasil que ocasiona situações como as que estamos acompanhando hoje”, comenta Dr. Gabriel César dos Santos, Defensor Público da União.
Ministério Público Federal
Contatado pela reportagem, o Ministério Público Federal informou que acompanha “os conflitos fundiários no sul da Bahia e que já foi aberto inquérito civil público para apurar a situação atual no território indígena de Barra Velha”. E complementa informando que “mantém contato constante com as autoridades responsáveis para apurar a situação, evitar novos conflitos e buscar a segurança das comunidades indígenas.” Destacou também que tem realizado “diálogos constantes com Polícia Federal, Polícia Militar e Funai, instando os órgãos a atuar no local dos conflitos.” E que continuará atuando com objetivo de garantir “a integridade dos envolvidos, em especial os mais vulneráveis – os indígenas que vivem em aldeias da região.”
Órgãos Estaduais
Secretaria de Segurança Pública (SSP) da Bahia
Questionada sobre o que está fazendo em relação aos relatos de de violações ocorridos contra os indígenas Pataxó das Aldeias Cassiana e Boca da Mata, a Secretaria de Segurança Pública do Estado da Bahia – SSP BA informou que “conflitos envolvendo disputas por territórios indígenas são de responsabilidade da Polícia Federal”.
Sobre as ocorrências registradas no dia 17 de agosto, a SSP BA disse que “determinou prioridade e celeridade na apuração das denúncias sobre os conflitos ocorridos na Fazenda Barreirinha”. Também anunciou que “a Polícia Civil da Bahia já iniciou as oitivas para apurar denúncia de trocas de tiros no local, situado na zona rural da cidade de Porto Seguro.” E, que “a 23ª Coordenadoria Regional de Polícia do Interior (Eunapólis), com apoio das 6ª e 7ª Coorpins (Itabuna e Ilhéus), realizou o registro da ocorrência e iniciou as oitivas das pessoas envolvidas no caso.” Avisou que pessoas já haviam sido ouvidas e que “os exames periciais necessários para a investigação serão realizados”. E finalizou destacando que “as investigações também vão apurar se há o envolvimento de policiais militares no conflito”.
Secretaria de Desenvolvimento Rural (SDR) da Bahia
Yulo Oiticica, superintendente de Políticas Territoriais e Reforma Agrária– SUTRAG da Secretaria de Desenvolvimento Rural (SDR) do Estado da Bahia visitou as aldeias Cassiana e Boca da Mata recentemente e destaca que uma tragédia pode acontecer a qualquer momento. Ele destaca que
“infelizmente essas lideranças indígenas têm tido paciência até demais, ou melhor, felizmente. Porque na verdade toda essa documentação necessária para a demarcação já se encontra no Ministério da Justiça. Inclusive laudo feito já por antropólogos e infelizmente o Ministério da Justiça não decide. Não demarca. Ignora as comunidades indígenas. Essa não é uma realidade só da Bahia, é verdade. Mas essa lógica de ódio dos indígenas pelo Governo Federal tem infelizmente patrocinado um derramamento de sangue muito grande. Temos que evitar que isso aconteça na Bahia.”
E conclui, “a situação é muito delicada. E é preciso que todos assumam sua responsabilidade nessa tarefa. Nós do Governo do Estado estamos tentando tudo o que é possível, na perspectiva da manutenção da paz e da justiça o quanto antes.”
Secretaria de Justiça, Direitos Humanos e Assistência Social (SJDHDS) da Bahia
A SJDHDS informa que “está acompanhando de perto os acontecimentos”. Registrou que acionou “a rede de proteção dos Direitos Humanos, a Secretaria de Segurança Pública (SSP-BA) e demais autoridades competentes, solicitando investigação”. Além disso, diz que “tem prestado apoio aos indígenas, realizado monitoramento na comunidade e já trabalha para a instalação de uma “Sala de Situação”, composta por diferentes órgãos do Governo da Bahia, a exemplo da própria SJDHDS, SSP, SEPROMI, SEMA, Casa Militar, SERIN , SDR e Casa Civil.” Ela explica que a “sala de situação” realizará encontros semanais, avaliando o caso e executando “as medidas necessárias para intermediar as questões e sanar os conflitos”. Informa ainda que “solicitou o reforço policial no território e, também, presta assistência aos integrantes das aldeia”, por meio da Superintendência de Direitos Humanos (SDH) e da Coordenação Executiva de Políticas para Povos Indígenas. E, que também tomou conhecimento que a Corregedoria da PM/SSP-BA “abriu procedimentos de investigação para apurar a denúncia, recebida por meio dos movimentos indígenas da região”, sobre a participação de policiais não fardados na ação.
Também ressalta que “a questão territorial indígena é de responsabilidade da Funai e da União, e a questão da segurança pública, nos territórios, é responsabilidade da Polícia Federal, cabendo ao órgão estadual atuar, complementarmente, nas responsabilidades constitucionais cabíveis ao Governo Estadual. Na ausência do Governo Federal, as ações do governo estadual têm sido realizadas com os devidos cuidados legais por se tratarem de terras indígenas”.
E conclui destacando: “A SJDHDS está ao lado dos povos indígenas da Bahia, lutando por respeito, pelos direitos humanos, pela vida. (…) O Governo do Estado não admite que esses ataques, que ferem os direitos humanos, a dignidade das pessoas e a história do povos originários do Brasil, aconteçam em territórios baianos, e por isso, cobra também um posicionamento do Governo Federal, que tem competência de defender e cuidar dos povos indígenas do Brasil, entretanto fecha os olhos aos pedidos de socorro dos índios brasileiros e ainda promove um massacre dos seus direitos, com um política de retrocessos que amplia as violações, a descriminação, o desrespeito, os conflitos fundiários.”
Conselho Nacional de Direitos Humanos
As denúncias envolvendo a escalada da violência e ataques sofridos pelas comunidades de Boca da Mata e Cassiana chegaram ao Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH). O CNDH cobrou medidas efetivas dos órgãos responsáveis por meio de ofícios ao ao governo do estado da Bahia, a Polícia Federal, o Ministério da Justiça e Segurança Pública, a 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal e a Vara Federal Cível e Criminal da SSJ de Eunápolis-BA. O prazo para resposta desses órgãos é 10 dias corridos a partir do dia 16 de agosto, ou seja, até o dia 26 de agosto. Além disso, o CNDH se posicionou, repudiando a situação, publicando nota nº 31/2022 e notícia sobre o caso.
O Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH) é um órgão colegiado de composição paritária. Sua finalidade é a promoção e a defesa dos direitos humanos no Brasil por meio de ações preventivas, protetivas, reparadoras e sancionadoras das condutas e situações de ameaça ou violação desses direitos, previstos na Constituição Federal e em tratados e atos internacionais ratificados pelo Brasil. A lei nº 12.986 de 2 de junho de 2014 o regula. O Conselho atua orientado pelos Princípios Relativos ao Status das Instituições Nacionais de Direitos Humanos (Princípio de Paris), definidas pela ONU em 1992, marcados pelo pluralismo e pela autonomia. Dentre suas competências estão a fiscalização e monitoramento de políticas públicas de direitos humanos e o programa nacional de direitos humanos.
Fundação Nacional do Índio (FUNAI)
A Presidência da FUNAI publicou no dia 22 de agosto, Nota de Esclarecimento sobre os recentes episódios ocorridos no sul da Bahia. O texto, ao invés de apresentar informações sobre ações que estaria realizando em suporte aos indígenas do TI Barra Velha, busca “esclarecer aos indígenas acerca da ilicitude de sua conduta e desestimular práticas que correspondem ao esbulho ou turbação de propriedades, sob pena de a responsabilização por omissão.”
Sobre a Nota de Esclarecimento de FUNAI
A publicação da Nota de esclarecimento da FUNAI causou estranheza aos movimentos indígenas, indigenistas, defensores dos direitos humanos e juristas. Para eles, a Nota evidencia a atual política anti-indigena realizada pelo atual governo federal.
Apib e Apoinme publicaram hoje, 24 de agosto de 2022, nota de repúdio à nota da Funai. Para as organizações indígenas, o posicionamento apresentado pelo órgão explicita postura racista da Fundação Nacional do Indio. O texto ” imputa aos indígenas condutas que inferem no descumprimento da legislação, praticando “ilicitudes” e “esbulho ou turbação de propriedades” Trata-se de uma postura absurda da instituição diante da realidade dos ataques de milícias sobre o território e o cerco armado às aldeias Cassiana e Boca da Mata”, destacam. As organizações exigem imediata demarcação do TI e “a retomada de uma política que garanta o direito indígena originário”. E concluem afirmando que
“a Funai precisa ser desmilitarizada, retomando o papel de aplicar as políticas que garantem nossos direitos previstos na constituição. Nossa luta é pela vida!”
A FINPAT também publicou nota de repúdio ao esclarecimento publicado pela FUNAI, no dia 24 de agosto de 2022.
NOTA DE REPÚDIO – Federação Indígena – FINPAT, vêm pelo presente REPUDIAR a Nota da FUNAI em posição anti-indígena, em difamar e condenar a luta legítima do Povo Pataxó na revindicação do seu território sagrado. Essa postura racista da Fundação Nacional do Índio – FUNAI, demonstra a sua clara posição e lado, deixa a sua atribuição institucional, para defender os interesses de particulares, fazendeiros, latifundiários, usurpadores e grileiros das terras indígenas da Bahia. A nota imputa aos indígenas condutas que inferem no descumprimento da legislação, praticando “ilicitudes” e “esbulho ou turbação de propriedades”. Trata-se de uma postura absurda da instituição diante da realidade dos ataques de milícias sobre o território e o cerco armado às aldeias Cassiana e Boca da Mata em P. Seguro/BA. A situação nas aldeias é de verdadeiro terror, com ameaças, rondas de milicianos fortemente armados. Um absurdo, a violação dos direitos indígenas feita pela própria instituição do Estado Brasileiro. Att. Pres. FINPAT.
Para o Defensor Público Federal, Dr. Gabriel César, “a nota da FUNAI é mais uma evidente prova do desvio de finalidade acometido pela instituição, uma vez que sequer disfarça o seu manifesto interesse de atuar de forma contrária aos interesses da comunidade indígena, em terra tradicionalmente ocupada, fato este constatado em estudo de redemarcação concluído em 2007. Ao assumir a narrativa dos fazendeiros, a FUNAI assume o lado oposto ao que deveria estar, deliberadamente esquecendo da sua missão legal”
Na mesma linha, o jurista, especialista em genocídio contra os povos originários e membro da Frente Ampla Democrática pelos Direitos Humanos (FADDH), Dr. Flávio Leão Bastos, considera que a nota “comprova os desvios constitucionais e institucionais que atualmente caracterizam a atuação da FUNAI, que perdeu, assim, sua legitimidade perante os povos originários e perante a população do Brasil”. Para ele, o texto publicado,
“demonstra como a entidade se afastou de forma contundentes de suas funções institucionais, quais sejam, a proteção das culturas indígenas no Brasil. O texto é sem sentido, uma vez que apresenta apontamentos sobre responsabilizações de ordem legal; limita-se a afirmar que os cidadãos indígenas do Brasil respondem por eventuais violações à lei e, ainda, chega a mencionar precedentes judiciais sem, contudo, mencionar, de forma clara e objetiva, um único ato ilícito por parte de indivíduos indígenas. Ainda mais, parece desconhecer o contexto real em curso no sul do Estado da Bahia. Não menciona os constantes fuzilamentos de que são vítimas os Pataxós, incluídas as crianças indígenas. Tampouco tangencia as incursões de homens fortemente armados contra terras tradicionais Pataxós demarcadas ou a oferta diária de venda de parcelas de terras indígenas pela internet e, até mesmo, pelo WhatsApp. Recorde-se que os povos indígenas não possuem armas de fogo, que são encontradas na região a partir de seu porte ilegal pelo crime organizado e por pistoleiros contratados por invasores de terras indígenas, situação causada, dentre outras, pela ausência do Estado brasileiro na proteção das terras tradicionais.”
A mensagem que as lideranças indígenas deixam é
“Resistimos 522 anos e continuaremos resistindo!”
A reportagem segue acompanhando a situação.
Esta matéria foi produzida com informações da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB, Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo – APOINME, Defensoria Pública da Uniao – Regional Direitos Humanos Bahia – DPU-BA, Ministério Público Federal – MPF, Governo da Bahia, Federação Indigena das Nações Pataxó e Tupinambá do Extremo Sul da Bahia- FINPAT, Movimento Unido dos Povos e Organizações Indígenas da Bahia – MUPOIBA, Conselho Indigenista Missionário -CIMI, Frente Ampla Democrática pelos Direitos Humanos – FADDH, Conselho Nacional de Direitos Humanos – CNDH, Conselho de Caciques do TI Barra Velha e Coletivo Semear.
Fotos: Acervo Pataxó TI Barra Velha. Vídeos: Acervo Pataxó TI Barra Velha.
Os nomes dos caciques e lideranças indígenas do Território Indígena Barra Velha foram omitidos pela reportagem por questão de segurança, devido à situação de risco em que os mesmos se encontram.
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