Anexado ao processo que corre no STF, manifesto aponta grave ameaça também aos nativos de recente contato
Oito médicos especializados em saúde indígena com experiência junto a povos isolados e de recente contato assinam uma carta na qual manifestam preocupação com a vigência de uma lei aprovada pelo Congresso, que permite a presença de missionários em terras habitadas por indígenas isolados.
O documento, de 18 páginas, foi protocolado em petição nesta quinta-feira no Supremo Tribunal Federal (STF) pela Articulação dos Povos Índigenas do Brasil (Apib), entidade que questiona a constitucionalidade da lei no Supremo, em vigor em plena pandemia de Covid-19.
O grupo critica o argumento da Advocacia-Geral da União (AGU) manifestada no processo no STF de que a presença de missionários religiosos não oferece riscos aos povos isolados caso haja “submissão compulsória daqueles à equipe de saúde e aval do médico responsável”.
Os médicos questionam a classificação da lei 14.021 como “medidas de proteção social” de combate à pandemia e citam o artigo 13 como um dos “pontos obscuros da lei” que autoriza “a permanência de missões de cunho religioso que já estejam nas comunidades indígenas, após avaliação da equipe de saúde e aval do médico responsável”. A Apib pede que o STF declare inconstitucional texto do artigo sancionado pelo presidente Jair Bolsonaro em julho do ano passado.
A restrição ao ingresso de terceiros em áreas com a presença confirmada de indígenas isolados é diretriz da política indigenista desde 1987, apontam os médicos na abertura da carta ao qual O GLOBO teve acesso. Para eles, tal artigo traz imenso retrocesso à política indigenista no país e grave ameaça a esses povos.
– O que nos espanta é como esse artigo foi incluído em um projeto de lei que se pretende a dar proteção a esses povos. Já não teria sentido fora de um contexto de pandemia, quanto mais agora, totalmente fora de cabimento. Sem contar que existe grande responsabilidade de um médico em liberar um missionário em terras indígenas, uma vez que isso pode trazer consequências drásticas – afirma Lucas Albertoni, integrante do Observatório dos Povos Isolados (OPI) e um dos médicos que assinam a carta.
– A questão chave é que, num momento de pandemia, não existe qualquer benefício da presença desses missionários em território que supere o risco de contágio, pois não há protocolos para a presença dele nessas áreas. Até mesmo os funcionários essenciais da Funai precisam de protocolos para permanecer nessas áreas, passarem por rigorosa testagem e período de quarentena – argumenta.
Assinam a carta além de Albertoni, os médicos Ana Lúcia Pontes; Clayton de C. Coelho; Douglas A. Rodrigues; Erik L. Jennings Simões; Paulo Cesar Basta; Sarah Barbosa Segalla e Simone Ladeia Andrade.
Os especialistas também argumentam que portarias emitidas antes e depois da pandemia pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e Fundação Nacional do Índio (Funai) reforçam a necessidade de suspensão de todas as atividades que impliquem o contato com comunidades indígenas isoladas.
“Devido às situações de vulnerabilidade decorrentes do isolamento, uma vez que os indígenas isolados não recebem vacinas, não existe infraestrutura para atendimento a eventuais intercorrências médicas, a possibilidade de contato remoto com equipes de saúde é absolutamente limitada e, em caso de haver a necessidade de remoção para equipamentos de saúde especializados, a operação logística de transporte é sobremaneira custosa e complexa”, diz trecho da carta.
Os médicos sustentam ainda que a chance de propagação de microrganismos transmissores de doenças infecciosas e parasitárias “constitui ameaça real, sobretudo nos tempos sombrios da pandemia de Covid19”.
“Vale lembrar a enorme depopulação, registrada em passado recente, em consequência de epidemias de doenças contagiosas deflagradas pelo contágio que segue ao contato com grupos indígenas isolados. Outro ponto a ser considerado é o risco iminente de agentes externos às comunidades trazerem prejuízos à autodeterminação étnica desses povos e à manutenção de seus aspectos culturais ancestrais”, diz a carta ao mencionar exemplos de povos afetados por doenças transmitidas por missionários no passado como os Krenakarore e o povo Zoe´e.
Brecha para atuação de fanáticos
No argumento da Apib, o artigo 13 da lei abre uma brecha para a atuação de missionários e religiosos fundamentalistas evangélicos que buscam contato com índios isolados na tentativa de convertê-los para sua religião.
A defesa jurídica da Apib afirma ainda na petição que o parágrafo ameaça a integridade física dos povos indígenas isolados, garantida não somente pela Constituição como também pela Declaração Americana dos Direitos dos Povos Indígenas, de 2016, da qual o Brasil é signatário. Cita ainda como espinha dorsal de seu argumento o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, cujo artigo 18 defende que a liberdade de crença não pode se sobrepor ao direito à saúde.
“A liberdade de manifestar a própria religião ou crença poderá ser limitada para proteger a segurança, a ordem, a saúde ou a moral públicas ou os direitos e as liberdades das demais pessoas”, diz trecho da petição ao citar o pacto.
Revelações do GLOBO sobre a conduta do pastor, missionário e ex-coordenador de índios isolados da Fundação Nacional do Ìndios (Funai) Ricardo Lopes Dias tornaram insustentável a sua permanência no cargo. Dias Lopes foi exonerado pelo Ministério da Justiça.
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