Ana Catarina Zema¹

Durante a segunda metade do século XX, cenas de arrependimento e pedidos de perdão proliferaram em todo mundo. Representantes da hierarquia eclesiástica, soberanos e chefes de Estado fizeram pedidos de desculpas oficiais pelos erros do passado. Jacques Derrida (1999) se debruçou sobre essa “mundialização do perdão” para tentar entender como a linguagem do perdão que tem sua origem na tradição abraâmica e que é, primeiro, uma linguagem sacramental e sagrada, tomou conta da cena política e da linguagem do direito até em países que não tem uma cultura originariamente bíblica como o Japão². Essa transposição de linguagem gerou uma certa confusão entre a ordem do perdão e a ordem da justiça. Todos os crimes seriam merecedores do perdão? Quem está apto a pedir perdão e a perdoar? Uma instituição do governo como uma Comissão, por exemplo, poderia perdoar os crimes cometidos durante o Apartheid na África do Sul? O representante do Estado pode julgar, mas teria ele o poder para perdoar ou pedir perdão em nome da nação? Mesmo sendo o perdão um princípio supra-humano e trans-político, o fato é que ele se tornou um princípio, uma regra e uma tomada de posição política.

As sociedades que questionam hoje as relações de dominação oriundas do colonialismo, começando por identificar e reconhecer os impactos causados pelos erros do passado e suas sequelas na atualidade, são interpeladas por um desejo de justiça que se volta para o passado. Aqui se encontram as temáticas do perdão e da memória. O reconhecimento das discriminações e traumatismos históricos surge como uma necessidade de se ter em conta duas dimensões temporais: de um lado os traços do passado traumático e de outro, o peso presente deste passado não assumido, não reconhecido, não rememorado. A problemática do perdão envolve a da culpabilidade e da reconciliação com o passado. Para Paul Ricoeur, “o perdão é difícil de dar, de receber, mas também de conceber” (2007, p. 463). O perdão se ele existe e tem um sentido, constitui o horizonte comum da história, da memória e do esquecimento. A problemática do esquecimento é a da memória e da fidelidade ao passado. A do perdão é a da culpabilidade e da reconciliação com este mesmo passado. Os itinerários do perdão e do esquecimento se cruzam constantemente num lugar que não é um lugar, mas que pode ser melhor designado, segundo Ricoeur, pelo termo horizonte. Os efeitos do perdão se entrelaçam não apenas com o esquecimento, mas com todas as operações constitutivas da memória e da história. Pensar a relação entre perdão, esquecimento, história e memória pode nos ajudar a compreender melhor o significado dos pedidos de desculpa que tomaram conta da cena política internacional nos últimos anos (2007, p. 463-512).

As “políticas do perdão”³ remetem a um conjunto de discursos e dispositivos políticos e institucionais que visam não apenas o reconhecimento dos atores políticos que sofreram direta ou indiretamente a violência do Estado, mas que apontam também para um dever de justiça, uma reparação, uma restituição material e uma reconciliação.

Resolver os problemas do passado e acabar com as injustiças históricas responsáveis ainda hoje por uma série de divisões sociais é um desafio político para as sociedades democráticas que têm buscado o caminho da reconciliação. A reconciliação representa para muitos países hoje um vetor possível das transformações democráticas que se impõem e um dos motores de reformulação do contrato social. Seguindo essa tendência, Nova Zelândia, Canadá, Austrália e África do Sul adotaram políticas e programas de reconciliação. Trataremos aqui da experiência australiana e canadense. Estes dois países decidiram se retratar com os povos indígenas pelas políticas agressivas e racistas de assimilação e, após os pedidos de desculpas, deram início a um processo de reconciliação.

Os governos do Canadá e da Austrália, durante os séculos XIX e XX, se empenharam em remover as crianças indígenas de suas comunidades como parte de uma política mais abrangente de assimilação e de desaparecimento das culturas indígenas.

No Canadá, o sistema dos pensionatos para crianças indígenas começou no final do século XIX e durou até início dos anos 1980. Como era difícil educar os adultos, o governo decidiu colocar a ênfase nas crianças que foram arrancadas de suas famílias e colocadas em instituições religiosas ou do governo. Segundo Diom Roméo Saganash, indígena que vivenciou essa experiência :

A vida na escola era rude e não tinha muito a ver com a obtenção eventual de um verdadeiro diploma que poderia ao menos ter sido útil no mundo real. Frequentemente, além das horas de aula, as crianças trabalhavam horas seguidas nos campos, sem remuneração, para a administração e para o pessoal da escola. Era-nos proibido falar nossa língua de origem e muitos de nós acabamos por esquecer nossa língua materna. Claro que não tínhamos acesso a nossos pais e avós para que nos ensinassem os elementos essenciais de nossa cultura. Ao invés de desfrutar do aconchego familiar, as crianças sofriam privações, falta de afeto e apenas tinham como amigos as outras crianças para nos apoiar. Muitos entre nós sofreram abusos sexuais e punições corporais. É difícil conciliar essas práticas com a aplicação de qualquer princípio cristão (2005, p. 85).

Saganash explica que a vida nos pensionatos transformou a maior parte das crianças em pessoas incapazes de assumir as responsabilidades da vida e que muitos encontraram conforto no álcool e nas drogas. Estima-se que 90.000 a 150.000 crianças foram levadas para estes pensionatos. A triste história de abusos físicos e sexuais que estas crianças sofreram nos pensionatos provocou efeitos que têm contribuído para o ciclo de mazelas sociais e disfunções que atingem tantas comunidades indígenas no Canadá. Em meados dos anos 1990, os sobreviventes dos internatos entraram com ações contra o governo do Canadá e contra as Igrejas responsáveis pelos orfanatos. Em 1996, o relatório final da Comissão Real sobre os Povos Indígenas (CANADÁ, 2009) revelou a importância da influência desses pensionatos sobre a vida cotidiana dos indígenas e em 1998 o governo canadense criou uma Fundação de Cura (Fondation de Guérison Autochtone) para gerar um fundo de 350 milhões de dólares destinados a auxiliar nas estratégias comunitárias de tratamento e cura das pessoas, famílias e coletividades vítimas dos abusos (MILLER, 2006, p. 3). Em 1998, o então Primeiro Ministro Jean Chrétien delegou à Ministra de Assuntos Indígenas e do Desenvolvimento do Norte, Jane Stewart, a tarefa de pedir desculpas para as vítimas de abusos físicos e sexuais dos pensionatos.

Embora estes pedidos de desculpas tenham sido acompanhados de eventos ritualizados e bem divulgados, parece haver um reconhecimento inadequado por parte dos funcionários do Estado das práticas culturais de desculpa há muito tempo estabelecidas nas comunidades indígenas. Segundo Bruce Miller, “Como consequência há um abismo entre as práticas do Estado e as expectativas locais dos povos indígenas sobre como o pedido de desculpa e a reconciliação deveriam corretamente acontecer” (2006, p. 1). Enquanto muitas pessoas responderam positivamente a essas iniciativas, outras enfaticamente as rejeitaram; assim como rejeitaram a ideia de uma compensação monetária pelos abusos sofridos nos pensionatos. Na lei ocidental, a compensação é conquistada ao se monetarizar o dano, o que é visto por muitos indígenas como inaceitável, tendo em vista o tamanho das perdas sofridas no processo colonial. As reflexões de Miller nos levam a questionar a verdadeira finalidade e o alcance desses pedidos de desculpa oficiais que quase sempre são feitos na linguagem dos “brancos” e de acordo com representações e simbolismos “brancos”.

Ainda em 1998, o governo canadense colocou em prática um plano que recebeu o nome de Rassembler nos forces (Gathering Strength) (CANADÁ, 2000) com quatro objetivos principais: a) primeiramente, reforçar a parceria propondo mudanças fundamentais nas relações entre o Canadá e os autóctones, mudanças estas baseadas nos princípios de respeito e do reconhecimento recíprocos, da responsabilidade e do compartilhamento; b) reforçar o exercício dos poderes entre os autóctones de maneira que as coletividades dispusessem de ferramentas necessárias para a realização da autonomia governamental; c) conceber uma nova relação financeira que assegure um financiamento estável para o apoio do desenvolvimento de coletividades transparentes e responsáveis e d) apoiar as coletividades autóctones fortes e saudáveis energizadas pelo desenvolvimento econômico e amparadas por uma infraestrutura sólida de instituições e serviços. O modelo canadense de reconciliação deu preferência às negociações e tomou o rumo da autonomização indígena.

Na Austrália, de 1910 ao começo da década de 1980, milhares de crianças foram arrancadas de suas famílias. O pedido de desculpas oficial somente aconteceu em fevereiro de 2008, na primeira sessão parlamentar do novo governo do Primeiro Ministro Kevin Rudd. Os governos anteriores foram reticentes em pedir desculpas, mas deram início ao processo de reconciliação. Em 1991, o então Primeiro Ministro Paul Keating criou o Council for Aboriginal Reconciliation Act e decretou a década da Reconciliação na Austrália (1991 a 2000). Este período foi marcado por acontecimentos de grande visibilidade: o julgamento Mabo em 1992, o Native Title Act de 1993, a publicação do relatório Bringing them home em 1996, a realização da Australian Reconciliation Convention em 1997 e o projeto de Declaração Australiana para a Reconciliação em 2000. Os objetivos definidos no projeto confiado ao Council for Aboriginal Reconciliation foram: melhorar as relações interétnicas, prover o desenvolvimento socioeconômico dos indígenas e valorizar suas culturas. No que dizia respeito aos direitos territoriais, ao pedido de um tratado ou ao direito de auto-determinação, nada foi claramente decidido. Até mesmo o lugar dos direitos indígenas na Austrália da Reconciliação ficou indeterminado (BEHRENDT, 2007, p. 18). A Reconciliação na Austrália foi, desde o início, imprecisa sob muitos aspectos. Basta examinar a concepção de reconciliação do governo Paul Keating e depois do governo John Howard para perceber como suas políticas de reconciliação foram usadas para fins diferentes.

No seu último relatório, o Council for Aboriginal Reconciliation recomendou ao Parlamento e ao Primeiro Ministro o estabelecimento de um tratado para negociar as questões não resolvidas da reconciliação, mas John Howard se recusou a fazê-lo (AUSTRALIA, 2008). Alguns estimam que, na Austrália, a reconciliação somente será concluída quando for objeto de acordos escritos, consignados em um tratado.

Peter Sutton, em seu livro The Politics of Suffering (2009) apresenta uma visão bem crítica e pessimista da reconciliação “formal, legal e burocratizada” que estava acontecendo na Austrália. Ao longo do livro ele argumenta que há diferenças culturais que são irreconciliáveis e, seguindo a orientação de Noel Pearson (2009) que defendeu, a necessidade de os povos indígenas assumirem suas responsabilidades por suas disfunções sociais, Sutton não atribuiu culpa à espoliação colonial ou à intervenção do governo, mas à tradição de violência histórica e cultural dos aborígenes. Na conclusão de seu polêmico livro, Sutton sustenta que, desde a época de Robert Tickner, a reconciliação caminhou por duas vias sacramentalistas: a primeira de admissão da culpa dos colonos com um compromisso de contrição coletiva e a outra, proposta por John Howard, que recebeu o nome de “Reconciliação Prática”, voltada mais para a busca da paridade dos indicadores sociais entre indígenas e não-indígenas do que para a aceitação e respeito mútuo. Na sua visão pessimista, a reconciliação somente poderá acontecer quando todos e cada um individualmente “sentir-se reconciliado”. Para ele, somente através do estabelecimento de conexões significativas a nível pessoal entre pessoas que vêm de origens tão díspares é que podemos esperar uma verdadeira reconciliação. Sutton parece não lembrar que a política não acontece apenas nas relações individuais, mas acontece sobretudo no nível das comunidades e da sociedade.

Como procuramos mostrar brevemente, as políticas do Perdão e a Reconciliação tomaram rumos diferentes nos dois países. No Canadá, o governo levou em consideração as reivindicações dos povos indígenas e tomou a iniciativa de criar uma política de reconciliação que não deixou de ser uma política de “cima para baixo”. Levar em consideração as demandas das Primeiras Nações e adequá-las às negociações de autonomia foi apenas mais uma demonstração de que a Reconciliação não é outra coisa senão mais um “negócio dos brancos”.

No caso australiano, não é difícil perceber que a proposta de Reconciliação de Paul Keating era uma e a de John Howard foi outra, os dois parecem ter tido um entendimento bem diferente do que seria a Reconciliação na Austrália sobretudo quando pensamos na forma assumida por essa reconciliação com a intervenção do governo Howard no Northern Territory em 2007 (ALTMAN; HINKSON, 2007).

O debate sobre as políticas do perdão e a reconciliação está longe de chegar ao fim. Esse debate deixa um gosto de imperfeição não apenas por causa da diversidade das interpretações, mas também porque, para muitos, prevalece a ideia de que a reconciliação somente virá a acontecer quando for aceita por todos. Além disso, os resultados dessas políticas ainda permanecem incertos.

Quanto aos pedidos de perdão, já que resolveram transformar em política um princípio judaico-cristão, é importante lembrar que perdão implica em arrependimento e que o verdadeiro arrependimento é aquele que faz com que as pessoas não voltem a cometer os erros do passado. Se os mesmos erros do passado ainda são cometidos, de que adiantou pedir perdão. Talvez tenha servido apenas para o alívio imediato de suas próprias culpas.

A reconciliação aparece hoje como um movimento que parou no meio do caminho e continuará sendo ilusória ou precária se aqueles que ela pretende “reconciliar” com a sociedade nacional permanecerem vulneráveis diante da lei, da justiça e na sua vida cotidiana. É preciso traduzir depressa a sinceridade dos pedidos de perdão e as palavras generosas da reconciliação em atos, antes que seja tarde demais e que eles percam sua força.

Se a reconciliação é um processo, podemos então esperar que a Austrália e o Canadá da Reconciliação não apenas resolvam seus dramas do passado, refazendo sua memória, mas que consigam garantir um futuro decente para os povos indígenas. Até agora a reconciliação nestes dois países continua sendo apenas o resultado de um processo criado pelos governos e experimentado pelos povos indígenas.

 

Notas:

  1. Doutora em História Social pelo Programa de Pós-graduação em História da Universidade de Brasília PPGHIS-UnB. Contato : ana.zema@gmail.com.
  2. O Primeiro Ministro Japonês Naoto Kan pediu perdão aos coreanos pelas violências praticadas durante os 35 anos de colonização japonesa em agosto de 2010.

  3. Expressão emprestada da obra de Sandrine Lefranc, Les politiques du Pardon, 2002, publicada pela Presse Universitaire de France e que lhe rendeu o prêmio Prix Philosophie.

Referências bibliográficas:

ALTMAN, Jon & HINKSON, Melinda (eds.), Coercive Reconciliation. Stabilise, normalize, exit aboriginal Australia. North Carlton, Australia: Arena Publications Association, 2007.

AUSTRALIA, Apology to Australia’s Indigenous Peoples, 2008. Disponível em: http://www.australia.gov.au/about-australia/our-country/our-people/apology-to-australias-indigenous-peoples.

BEHRENDT, Larissa. The emergency we had to have. In: ALTMAN, Jon & HINKSON, Melinda (eds.), Coercive Reconciliation. Stabilise, normalize, exit aboriginal Australia. North Carlton, Australia: Arena Publications Association, 2007, pp. 15-20.

CANADÁ, Document d’information – Commission de Verité et de Réconciliation relative aux pensionnats indiens, 2009. Disponível em: http://www.ainc-inac.gc.ca/ai/mr/nr/m-a2009/bk000000351-fra.asp.

CANADÁ, Rassembler nos forces, 2000. Disponível em: http://publications.gc.ca/collections/Collection/R32-192-2000F.pdf.

DERRIDA, Jacques. Le siècle et le pardon, Le Monde des Débats, décembre, 1999. Disponível em : http://hydra.humanities.uci.edu/derrida/siecle.html.

MILLER, Bruce. G. Bringing Culture in: Community Responses to Apology, Reconciliation and Reparations, American Indian Culture and Research Journal, 30: 4, 2006.

PEARSON, Noel. Our rights to take responsibility. In: PEARSON, Noel. Up from the Mission: selected writings. Collingwood: Black Inc. Publishing, 2009, p. 143-171.

RICOEUR, Paul. O Perdão difícil. In: A memória, a história e o esquecimento, Campinas: Editora da Unicamp, 2007, pp. 463-512.

SAGANASH, Diom Roméo. Les pensionnats pour les autochtones, outils d’assimilation. Un héritage honteux . In: LABELLE, Micheline, ANTONIUS, R. & LEROUX, G. (orgs.), Le devoir de mémoire et les politiques du pardon : actes du colloque tenu à l’Université du Québec à Montréal en octobre 2004. Presses de l’Université du Quebec, 2005.

SUTTON, Peter. The Politics of Suffering: Indigenous Australia and the End of Liberal Consensus, Melbourne: Melbourne University Press, 2009.

 

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