Além das invasões, povos originários enfrentam prisões arbitrárias e falta de assistência na pandemia

Fernanda Paixão

O conflito histórico de território entre a Nação Mapuche e os Estados chileno e argentino ganham um novo capítulo nesta pandemia.

Com a crise sanitária, a indústria mineira aproveita para avançar sobre novas áreas de exploração em todo o mundo, como aponta o estudo “Vozes do solo”, realizado por diversas organizações ambientais.

Isso significa mais terras mapuches sendo invadidas, e uma agudização dos conflitos territoriais e inúmeras investidas judiciais contra mapuches organizados, com a aplicação de leis antiterroristas em ambos países para reprimir protestos sociais dessas populações.

“Estamos em uma solidão institucional terrível”, afirma a líder mapuche Moira Millán, da região da Patagônia.

Também integrante do Movimento de Mulheres Indígenas pelo Bem Viver, ela costuma dizer que a Nação Mapuche é a Palestina da América do Sul.

“Continuarão atacando o povo mapuche, porque o que propomos não é de caráter inteiramente econômico e social, é sistêmico. Propomos uma nova forma de habitar o mundo. Esse sistema quer instalar o terror e a falta de sentido da luta, como se não houvesse possibilidade de mudança. Nós, povos originários, vivemos milenarmente de outro modo, e agora podemos nos articular e fazer uma síntese de esperança entre distintos setores não indígenas, que, como nós, querem uma verdadeira e profunda revolução”, afirma.

Manifestações pela liberdade dos presos políticos mapuches no Chile, em agosto (foto retirada a pedido do detentor de direito autoral)

Investidas judiciais contra mapuches

Somada à falta de assistência; os efeitos climáticos de nevadas que cobriram mais de dois metros nas comunidades próximas às Cordilheiras dos Andes, os povos originários das regiões da Argentina e do Chile enfrentam o isolamento com forças policiais entre suas comunidades durante a pandemia.

Nesta última terça-feira (18), o xamã Celestino Córdova cessou a greve de fome que já levava 107 dias, quando o Ministério da Justiça do Chile finalmente concedeu a ele a possibilidade de visitar sua comunidade.

O protesto inclui outros 27 presos políticos mapuches, que continuam fazendo a greve de fome com graves riscos de saúde e condições inadequadas nas prisões devido à covid-19. Eles exigem o cumprimento do Convênio 169 da OIT, assinado pelo Chile, que reconhece a cultura e os costumes mapuches também em casos de pena de prisão.

O monopólio da Patagônia

Na Argentina, o território mapuche está localizado no que é delimitado no país como as províncias de Neuquén, Río Negro e Chubut, ao sul.

Essas zonas são dominadas por empresas europeias e estadunidenses que compraram milhões de hectares da Patagônia a partir dos anos 90. Segundo dados do Ministério da Justiça e dos Direitos Humanos da Argentina, 5,57% do território nacional pertence a empresas estrangeiras.

O monopólio estrangeiro em zonas importantes da Argentina é fruto de um longo processo que teve início no final do século 19, após a chamada “Conquista do Deserto”, que, já em seu nome, ignora a presença de habitantes prévios no território, através de ocupação militar. Assim, comunidades inteiras foram removidas.


Mapa de mineração na província de Chubut, na Argentina: atividade presente em quase todo o território / Divulgação

 

“Neuquén e Río Negro já foram muito explorados. Agora avançam sobre nossa comunidade”, afirma Mirta Curruhuinca, mapuche da comunidade Kurrache, em Chubut.

“Fomos usurpados duas vezes: na campanha do deserto e agora, com as multinacionais. Mas nossa força também é muito grande, pela nossa filosofia de vida e espiritualidade. Não podemos deixar que continuem destruindo a natureza, está tudo conectado”, conclui.

Balas contra pedras

Casos que tiveram repercussão deixam em evidência os mecanismos utilizados pelos Estados contra o povo mapuche.

O caso de Santiago Maldonado, aliado à luta mapuche, deu maior visibilidade ao embate pelos territórios ao sul da Argentina. Em agosto de 2017, Maldonado desapareceu após uma repressão da Gendarmeria Nacional (força militar) contra uma manifestação em um corte de estrada. Seu corpo apareceu meses depois, no rio Chubut, simulando um afogamento.

:: Entenda o caso: Caso Santiago Maldonado: começa a identificação do corpo encontrado no Rio Chubut ::

Nessa mesma época, balas de gendarmes mataram ao mapuche Rafael Nahuel, pelas costas em um conflito de recuperação de terras em Villa Mascardi, próximo a Bariloche. O grupo de mapuches usou pedras para se defender, contra os cerca de 140 tiros de oficiais da Gendarmeria.

“Os policiais da zona são também os seguranças particulares da Benetton”, afirma Mirta, referindo-se à empresa italiana que possui terras na Patagônia. “Chubut e Río Negro têm fronteiras armadas. Há comunidades totalmente sitiadas. Nessas zonas, quem manda são a polícia, o governador de Chubut e as empresas.”

Lautaro Gonzalez, filho de Mirta, foi um dos que desceram o corpo ainda com vida de Rafael Nahuel. Ele presenciou toda a ação policial e é testemunha-chave do caso.

Por isso, passou a ser perseguido inclusive internacionalmente em uma tentativa de acusá-lo pelo assassinato de Nahuel: o juíz responsável acionou a Interpol para prender o jovem mapuche.

:: Saiba mais: Jovem mapuche é assassinado com tiro pelas costas na Argentina ::

“Há muitos casos de testemunhas contra o braço armado do Estado e sempre morrem, ou são enforcados na prisão”, conta Mirta. “Então, como família, tomamos essa decisão de que meu filho fique na clandestinidade.”

Na pandemia, esse tipo de ação se acentuou, como aponta Moira Millán. “Inocularam o terror com um método eficaz para que os povos temam sair às ruas. Temos que ser muito criativas para denunciar, visibilizar e pressionar.”

Apesar das investidas com todos os recursos do Estado – incluindo, principalmente, a violência –, há uma consciência comum aos mapuches de retorno de seus antepassados, que estariam, agora, em um novo renascer.

“O povo mapuche volta a cada quatro gerações, como uma reencarnação”, relata Mirta. “Nosso povo antigo está voltando, os que morreram na época da guerra. Há um movimento indígena em toda América Latina que está se levantando para defender o pouco que resta.”

As palavras de Mirta fazem eco na mensagem de despedida do xamã Celestino Córdova que, a ponto de começar a greve mais rígida, proferiu: “Aproxima-se o tempo de uma justiça favorável para todos os povos originários no mundo, e para todos os povos oprimidos. Assim está predestinado, sobrenaturalmente, e já estamos vivendo a nova renovação no mundo.”

Edição: Leandro Melito

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