No Dia Nacional de Luta dos Povos Indígenas, Alessandra Munduruku trata das perspectivas para o ano de 2021
Neste domingo (7), é celebrado o Dia Nacional de Luta dos Povos Indígenas. A data remete a 1756, quando Sepé Tiaraju, líder indígena assassinado durante a revolta dos Guarani do Sul do país contra portugueses e espanhóis.
Passados 265 anos, os povos indígenas seguem em luta para defender sua existência, pelo direito à terra, pela preservação das florestas ou pela demarcação dos seus territórios.
O Brasil de Fato conversou com a liderança Alessandra Korap Munduruku, da região do Médio Tapajós, no Pará. Ela foi a primeira mulher a coordenar a Associação Indígena Pariri, que representa mais de dez aldeias e é reconhecida internacionalmente pela atuação em defesa dos direitos indígenas.
“O que incomoda o governo e os nossos inimigos é a nossa persistência e a resistência”, afirma a liderança.
Atualmente, Alessandra está na aldeia na qual vive, protegida das ameaças de morte que vem sofrendo. No entanto, mesmo com as limitações para ir e vir, ela afirma que prefere a liberdade do seu povo do que a sua: “A minha liberdade eu conquisto depois. Nós temos que ter resistência.”
“Será que para eu ser ouvida eu preciso morrer como Irma Dorothy? Eu preciso morrer como Chico Mendes? Será preciso eu morrer também?”, questiona.
Leia a entrevista completa.
Brasil de Fato: Qual é a prioridade da luta indígena em 2021?
Alessandra Korap Munduruku: A prioridade hoje é contra os invasores e, principalmente, pela demarcação dos territórios. Isso é fundamental.
Enquanto a gente luta pela demarcação, pelo direito à vida, território, nós somos negados e temos que lidar com a quantidade de projetos que vêm para cima da gente, como é o caso da liberação de mineração em terras indígenas, a ferrovia para ser construída [Ferrogrão]. Enfim, são muitos projetos, mas eles esqueceram que nós estamos aqui, que existimos.
Tudo isso faz com que nossos filhos sofram pelos locais sagrados, nós mulheres sofremos, assim como os caciques, os pajés.
De repente, chega o branco e você se torna índio na visão desse branco.
Não é só o branco que pode entrar dentro do território ou a Igreja e dizer para onde que nós vamos. Por que nós não podemos acreditar na nossa cultura, na nossa história, na nossa religião? Isso remete a um colonialismo, ao racismo.
Dentro da aldeia não somos chamados de indígenas, a gente é índio fora das aldeias.
Aqui, temos nome e sobrenome. De repente, chega o branco e você se torna índio na visão desse branco, que te condena sem ao menos conhecer a sua realidade, a sua cultura. Mas a gente vai continuar lutando.
Como o povo Munduruku e outros povos indígenas estão enfrentando a pandemia?
Quando iniciou a pandemia essa foi uma das preocupações, porque não tínhamos informação. De repente, precisei sair de Santarém (no oeste do Pará) e ir para a aldeia. Nesse tempo ficamos isolados, sem sair de casa, sem visitar os parentes, mesmo assim eles vinham saber como estávamos de saúde.
Foi quando me dei conta de que a minha comunidade não tinha informação sobre a questão da covid-19 – isso em março de 2020. O presidente falando era uma gripezinha, outros que era para fazer o isolamento e quando foi no mês de maio tivemos a primeira morte.
Foi um trabalho muito intenso de ir para a aldeia levar máscara, álcool em gel, cesta básica, material de pesca e pedindo que as pessoas ficassem isoladas.
A culpa não é nossa, a culpa é do governo, do estado, que não está fazendo nada
Parece difícil acreditar, mas pensávamos que o isolamento seria de 15 dias. De repente, os parentes ficavam um mês dentro da aldeia e achavam que a pandemia tinha passado, afinal, eles estavam em isolamento.
O problema é que a aldeia conta sofre muitas invasões e nesse momento eu fiquei pensando: ‘a culpa não é nossa, nós estamos dando o nosso melhor’.
Todos os povos indígenas estão dando o melhor, buscando oxigênio, buscando material para levar para as aldeias. A culpa não é nossa, a culpa é do governo, do estado, que não está fazendo nada.
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Foi quando a gente decidiu que nossos parentes não iriam mais para os hospitais, eles se curariam nas suas aldeias.
Nós fazíamos o remédio e tivemos todo esse trabalho de ter o remédio tradicional e isso foi muito importante, porque já temos floresta, os xamãs da terra. Se não fosse isso, como iríamos continuar vivos?
A natureza nos cura, nos fortalece, nos dá energia
A natureza é boa, ela nos dá tudo. Ela é uma farmácia, um mercado, mas as pessoas não acreditam, elas querem destruir, querem abrir um buraco, principalmente, para a questão da mineração em terras indígenas, mas as pessoas não percebem que só existe a terra indígena para salvar.
Nós acreditamos que a natureza nos cura, nos fortalece, nos dá energia e, de repente, o governo só quer matar ela. Agora temos que lidar com a fusão do ICMBio com o Ibama. Imagina como serão essas reservas, esses espaços, que ainda existem. Perto da minha aldeia, por exemplo, não existem mais grandes florestas.
Existe uma explicação dos povos indígenas do porquê o mundo está vivenciando a pandemia?
A gente conversa muito e acredita que é um cauxi (espírito ruim) muito forte, que é uma coisa ruim que está vindo para a gente e muitos desses cauxis são pela destruição da natureza, pela ‘evolução’ do homem branco, que rouba a nossa cultura, o nosso bem viver, os nossos remédios.
A gente precisa de floresta, a gente precisa preservar o território para os nossos filhos, para os nossos netos ou tataranetos, porque um dia vamos morrer, mas para que o nosso futuro seja garantido precisamos lutar por ele agora, hoje e esse cauxi não vai nos derrubar. A gente vai resistir para continuar vivo.
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Alessandra, o Dia Nacional de Luta dos Povos Indígenas foi instituído em 2008, ou seja, há 13 anos. Nesse tempo, o que os povos indígenas conquistaram ou perderam?
A população indígena ganhou muita coisa, a saúde diferenciada, que na verdade agora o governo Bolsonaro se apossou disso, a educação dentro do território, algumas terras demarcadas depois de muita luta.
Nós sabemos que todas as lutas que tivemos são mérito da população indígenas, por mais que muitos questionem e nos chamem de preguiçosos, mas eles não sabem o que a gente sofre de sair das nossas aldeias, das nossas roças para ir para Brasília para lutar e ter que estar batendo na porta dos ministérios para eles nos ouvirem.
Por mais que tenha acontecido muita coisa ruim, tiveram coisas boas e conquistas e a gente não para.
A gente sabe que o presidente Bolsonaro não gosta da gente. Ele sempre quer que destruam o nosso território para plantar soja, para criar gado, destruir nossos rios, colocar barragem nos rios.
A gente vai achar uma saída para esses homens que são destruidores.
A gente sabe que ele não gosta da gente, mas não vamos abaixar a cabeça. Nós acreditamos na nossa força da natureza, do espiritual e eu fico muito feliz de ter um povo muito resistente, apesar de o Ricardo Salles ter vindo para a nossa região para dividir o nosso povo, mas a gente acredita muito nos caciques que têm força.
A gente veio do útero da mulher, somos mulheres, a terra é mulher e a gente veio dessa mulher tão grande que é a terra e precisamos respeitar a terra e o nosso território. Esse útero está ficando doente e não podemos deixar ela morrer.
Nós vamos sarar esse útero mesmo que tenhamos muitos inimigos. A gente vai achar uma saída para esses homens que são destruidores.
Como é continuar na luta mesmo após as ameaças de morte que tens sofrido?
Eu sinto que estou incomodando. Será que para eu ser ouvida eu preciso morrer como Irma Dorothy? Eu preciso morrer como Chico Mendes? Será preciso eu morrer também? Não, eu não vou me calar.
Quando entraram pela primeira vez na minha casa e levaram meus HDs, depois de uma reunião que eu fiz com 50 lideranças em Brasília, eu chorei muito quando meu filho me abraçou e disse: ‘Mãe, eu não quero que te matem’.
Eu prefiro sacrificar a minha liberdade do que sacrificar o meu povo.
Eu chorei muito pensando no que eu ia fazer, porque antes da luta, antes de eu falar, antes de 2014, eu tinha uma vida totalmente diferente de hoje. Antes, eu ia pescar, antes eu conseguia andar e falar com todo mundo na estrada. Eu não consigo mais fazer isso, ter uma confraternização com amigos, eu não consigo mais fazer isso, porque essa parte tirou a minha liberdade.
Mas eu fiquei analisando com as mulheres e de repente ouvi a fala: ‘Precisamos de você. Precisamos que você fale. A gente precisa ter voz’.
Foi quando me dei conta de que eu prefiro sacrificar a minha liberdade do que sacrificar o meu povo. Eu prefiro o meu povo. A minha liberdade eu conquisto depois. Nós temos que ter resistência, nós temos que ter resistência ainda. O que incomoda o governo e os nossos inimigos é a nossa persistência e a resistência.
Edição: Rodrigo Chagas
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