O Centro foi planejado para acolher seus missionários, indígenas e todos aqueles que resistem e lutam por suas vidas; um espaço autossustentável, de formação, encontros religiosos, retiros e reuniões
POR PE. BOB FRANCISCO, FÁBIO REIS, IR. LÍGIA MARIA DE JESUS CIPRIANO, LÍGIA APEL E ROSÁLIA RODRIGUES*
“Sempre tem alguém que traz um pedacinho da sua região para cá. Então, aqui é uma miniatura dos espaços que o Cimi tem. O Cimi é nacional, está em todas as regiões. Mas cabe todo mundo aqui. Todas as culturas do Cimi e das pastorais cabem aqui”. Assim sintetiza o coordenador do Centro de Formação Vicente Cañas, Alberto Capucci, ao descrever o espaço construído pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi) para acolher equipes e delegações indígenas de seus regionais que vêm à Brasília estudar, se encontrar e/ou realizar incidências.
O Centro de Formação Vicente Cañas é uma chácara que surgiu pela necessidade de reduzir os custos de hospedagem durante as reuniões do Cimi, que ocorriam frequentemente na capital federal. O alto valor das diárias em hotéis, alimentação e transportes urbanos motivou a busca por uma solução mais econômica e autossustentável. Após visitar várias opções de terrenos, o Cimi encontrou no bairro Jardim Ingá, em Luziânia, no estado de Goiás, uma área adequada.
“Sempre tem alguém que traz um pedacinho da sua região para cá, aqui é uma miniatura dos espaços que o Cimi tem”
No início, o local não contava com cercas, muros, água, sistema de esgoto ou eletricidade. Mas, com o passar do tempo, foi se expandindo, foram adquiridos outros pedaços de terra (hoje possui quatro hectares), com a intenção de fazer plantio agroecológico com hortas orgânicas, árvores frutíferas e criação de pequenos animais. Para abastecimento de água foi perfurado um poço artesiano e construídas cisternas para captação da água da chuva (pluvial), destinada à irrigação dos plantios. Também foi instalado um sistema de energia solar e, com o excedente gerado, retornar para rede pública de energia.
Assim, o objetivo de economizar com diárias evoluiu para a criação de um espaço de fortalecimento do processo de formação, de articulação política e pastoral, com sustentabilidade. Para Alberto, a chácara se tornou um ponto de encontro para diversas lutas e organizações.
“O Centro é um espaço de fortalecimento do processo de formação, de articulação política e pastoral, com sustentabilidade”
“A chácara se tornou mais que um espaço para a gente economizar diária. Hoje, é um espaço de fortalecimento do processo de formação. Todas as articulações do Cimi se reúnem aqui. Todos os anos vêm pra cá os missionários do Cimi, indígenas, migrantes, pescadores, lavradores, mulheres, camponesas, o pessoal atingido por barragem, atingidos pelos projetos de mineração e muitos outros. Então, é um espaço que todo mundo se sente em casa por causa dessa mística”, explica Alberto.
Egon Heck, um dos fundadores do Cimi e ex-coordenador da entidade no Regional Mato Grosso do Sul, fez parte da diretoria no ano que se decidiu pela aquisição da chácara. A ideia, segundo ele, era ter “um espaço próprio que possibilitasse a presença mais permanente dos missionários e, ao mesmo tempo, um espaço de trabalho. O espaço deveria ter auditório e casas de habitação [para hospedagem]”, explica, destacando que oferecer um espaço para os indígenas se encontrarem e trocarem experiências também estava nos objetivos.
“A chácara é um espaço que todo mundo se sente em casa por causa dessa mística”
“Também tinha a função básica de apoiar os povos indígenas nas suas lutas específicas, com encontros e intercâmbios. Começamos a centralizar essas demandas pra cá [chácara], apesar da distância. Mas a distância não impedia os deslocamentos. O local tinha suas vantagens: o custo era menor e as interferências nas reuniões [dos indígenas], nas assembleias também seriam evitadas”, lembrou.
Citando Dom Pedro Casaldáliga, Egon destaca que a importância da luta indígena se dá essencialmente na luta pela garantia ao território, mas também, nos processos de formação tanto no campo político como da produção da terra.
“Tem a função básica de apoiar os povos indígenas nas suas lutas específicas, com encontros e intercâmbios”
“Dom Pedro [Casaldáliga] dizia sempre “os povos indígenas tem um processo de formação de luta, mas se eles chegarem na luta pela Terra, ela só terá futuro, só terá possibilidade de avançar, se for realizada de forma articulada, conjugada [com a produção de alimentos]. Essa parte da formação de produção dentro da filosofia da permacultura é o que existe de mais avançado nos processos de formação no campo. Acho que foi importante porque o pessoal foi se dando conta que era importante ter a terra, mas a terra só não chegava, porque não se tinha como viabilizar processos importantes de formação e de produção”, enfatizou.
“Dom Pedro Casaldáliga dizia que os povos indígenas tem um processo de formação de luta junto à Terra”
Sustentabilidade e Autossuficiência
Com abastecimento de água, práticas agroecológicas e de geração de energia limpa a chácara adquiriu capacidade de se tornar autossuficiente. Além das práticas agroecológicas, como a compostagem e o cultivo orgânico, o local possui um galinheiro que fornece ovos para o consumo interno.
Alberto explica que a produção de hortaliças, legumes, verduras e tubérculos tem como base a compostagem feita a partir dos resíduos orgânicos da cozinha. “O resto de salada sem temperar vai para a compostagem. E essa época, fim de outono, começa a cair as folhas das árvores que também vão para a compostagem. Seu Braz junta as folhas, mistura com os resíduos da cozinha com a terra e vai lá produzir a compostagem. Tem o galinheiro também, que produz o ovo que a gente consome”.
“Com abastecimento de água, práticas agroecológicas e de geração de energia limpa a chácara se torna autossuficiente”
Seu Braz, a quem Alberto se refere, é seu Raimundo Dantas de Lima, a pessoa que cuida da horta do Centro de Formação Vicente Cañas. Diz ele que encontrou na agricultura sua verdadeira paixão e conta que decidiu trabalhar na horta por gostar de mexer com a terra e estar em contato direto com a natureza. “Estou na horta porque eu gosto. Porque é bom mexer com a terra, com a natureza. É bom”, diz satisfeito e conta seu trabalho.
“Aqui eu produzo até 16 tipos de verdura. Repolho, couve, couve flor, brócolis, pimentão, berinjela, alface, rabanete, tomate cereja, salsa, cebolinha, coentro. Todas as folhas. O que é de folha tem completo para todo mundo. Fruta é o que já tinha na chácara: mexerica, mamão, laranja e banana. Eu cuido também”, explica.
“Estou na horta porque eu gosto. Porque é bom mexer com a terra, com a natureza. É bom”
Conhecedor das plantas que fazem parte do seu cultivo, seu Braz sabe que a diversidade de alimentos proporciona uma nutrição completa e equilibrada para aqueles que consomem sua produção.
“Todas as plantas têm diversos tipos de vitamina. O ferro tem na couve. Laranja tem vitamina C. Limão também tem vitamina C. A couve com a laranja [combinam]. A couve dá o ferro e a laranja dá a vitamina C, que é para combater os problemas de rim. Se for só couve ataca os rins, e a laranja combate essa parte e não deixar ofender o rim”, explica realçando o poder medicinal das plantas. “Toda verdura tem medicina. É medicinal. A alface é um calmante, o repolho tem ferro e cálcio. A gente produz mandioca, e mandioca é um dos melhores alimentos pra nos dar energia”.
“Todas as plantas têm diversos tipos de vitamina, toda verdura tem medicina, é medicinal”
Seu Braz também destaca que não usa qualquer tipo de substância prejudicial à saúde e ao meio ambiente. Esclarece que a diferença entre os alimentos produzidos em sua horta e aqueles comprados no mercado está na pureza e na ausência de produtos químicos. “A diferença é que esse aqui é orgânico, aqui não tem químico nenhum, é só orgânico. Não tem veneno. O ‘veneno’ que uso eu mesmo fiz, da folha do fumo e da folha da mamona”, conta.
A água para a irrigação da horta vem da captação de água da chuva nas quatro cisternas construídas na chácara. Cada uma tem 55 mil litros, totalizando uma disponibilidade de 220 mil litros que garantem a irrigação sem a necessidade de utilizar água do poço artesiano.
A chácara também adotou o uso de energia solar por meio da instalação de sistema fotovoltaico, que produz energia além do necessário para o consumo. O excedente gerado é enviado para a rede pública, gerando créditos de energia para seus espaços, caso necessite.
“A chácara adotou o uso de energia solar por meio de sistema fotovoltaico, que produz energia além do necessário para o consumo”
Projeções
À medida que o tempo passa, a chácara do Centro de Formação Vicente Cañas continua a regenerar-se por meio do trabalho de Alberto Capucci e sua equipe. O local tem se transformado em um ponto de referência para ações sustentáveis e de conscientização ambiental para quem contrata seus serviços.
A implementação de técnicas e práticas agrícolas regenerativas tem sido capaz de recuperar a saúde do solo e promover a biodiversidade local. A utilização da compostagem, a rotação de culturas e o cultivo de diversas espécies a partir das condições que o espaço oferece, em uma tentativa de produção no sistema de permacultura, têm contribuído para a restauração ecológica do espaço, criando um ambiente propício para o florescimento da vida vegetal e animal.
“À medida que o tempo passa, a chácara do Centro de Formação Vicente Cañas continua a regenerar-se por meio do trabalho coletivo”
Alberto destaca que o fluxo de pessoas das diversas regiões do Brasil que se hospedam na chácara, trazem e levam sementes e mudas de plantas regionais, realizando uma verdadeira disseminação de vidas. “O pessoal traz sem ninguém pedir, chega e diz: ‘Alguém trouxe uma semente [para trocar]?’. Sempre tem alguém que traz um pedacinho da sua região para cá”.
Além disso, a chácara tem se tornado um centro de educação e capacitação, com cursos e oficinas, reuniões e incidências que mobilizam e articulam pessoas de diferentes origens e experiências, que trocam conhecimentos e aprendem juntas sobre suas lutas e resistências.
“As pessoas trazem e levam sementes e mudas de plantas regionais, realizando uma verdadeira disseminação de vidas”
A comunidade que se formou na chácara é fonte constante de inspiração e regeneração. Indivíduos engajados e comprometidos unem forças para realizar projetos coletivos e promover a conscientização ambiental em suas respectivas comunidades. A sinergia gerada por essa rede de colaboração é uma demonstração poderosa de como a regeneração ambiental está ligada à regeneração social e ao fortalecimento de laços comunitários, mostrando que, mesmo diante dos desafios ambientais e sociais, existem soluções concretas e viáveis que podem trazer esperança e mudança positiva.
À medida que a mensagem da chácara se espalha, os impactos se multiplicam e se expandem para além dos limites físicos do espaço. A visão de um mundo regenerado e em equilíbrio ambiental se fortalece, impulsionando ações coletivas e individuais em busca desse objetivo comum.
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*Integram a turma de Formação Básica do Cimi, cursando a segunda e última etapa da formação. Dos cinco: três fazem parte do Cimi Regional Norte 1, que compreende os estados do Amazonas e Roraima; um é Regional Maranhão, que compreende o estado do Maranhão; e outra é do Regional Nordeste – que compreende os estados da Bahia, Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará e Piauí.
** Está produção faz parte da atividade prática, realizada pelos integrantes do Curso de Formação Básica do Cimi, etapa 2, desenvolvida a partir do módulo Política de Comunicação do Cimi ministrado pela Assessoria de Comunicação da entidade.
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