É a primeira vez que um Tribunal de Júri condena por homicídio o assassino de um indígena no contexto fundiário do Mato Grosso do Sul; a decisão interrompe ciclo de impunidade contra povo Guarani e Kaiowá

Julgamento sobre o assassinato de Dorvalino Rocha, liderança Guarani e Kaiowá, realizado entre os dias 27 e 28 de novembro, em Presidente Prudente. Foto: Arquivo Cimi Regional MS

POR MAIARA DOURADO, DA ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO DO CIMI

O Tribunal de Júri Popular declarou culpado, na última terça-feira (28), o vigilante da empresa de segurança privada, João Carlos Gimenez Brites, pelo assassinato da liderança Guarani Kaiowá, Dorvalino Rocha, morto em 24 de dezembro de 2005.

João Carlos era o coordenador da equipe da Gaspem, empresa de segurança privada que teve suas atividades encerradas pelo Ministério Público Federal (MPF) em 2014, dado seu envolvimento direto na remoção forçada de comunidades indígenas e na morte de duas lideranças e ferimentos em dezenas de indígenas no Mato Grosso do Sul (MS).

João Carlos era o coordenador da equipe da Gaspem, empresa de segurança privada que teve suas atividades encerradas pelo MPF em 2014

A empresa fazia a segurança das fazendas Fronteira, Cedro e Morro Alto, localizadas no município de Antônio João (MS), sobrepostas à Terra Indígena (TI) ÑandeRu Marangatu, do povo indígena Guarani e Kaiowá e a qual Dorvalino pertencia. O acusado confessou o crime que alvejou o indígena com dois tiros, tendo o primeiro o atingido no pé e o segundo, fatal, no peito.

Apesar de ter confessado o crime, o réu alegou legítima defesa, o que foi rejeitado pelo Júri, que o condenou a 16 anos de prisão. “Ele disse que foi abordado por um grupo de indígenas e teria matado em legítima defesa, mas o que foi julgado é que ele pegou Dorvalino sozinho, de surpresa, quando Dorvalino estava próximo da porteira da fazenda Fronteira”, relatou Caroline Hilgert, assessora jurídica do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e assistente de acusação em nome da esposa de Dorvalino, junto à dra. Michael Nolan, que acompanha o caso há 18 anos.

O acusado confessou o crime que alvejou o indígena com dois tiros, tendo o primeiro o atingido no pé e o segundo, fatal, no peito

Momentos antes do segundo dia de julgamento, indígenas da TI ÑandeRu Marangatu realizam reza e ritual para proteção de procuradores do MPF e advogadas que assistiam à acusação do caso. Foto: Arquivo Cimi Regional MS

Decisão histórica

Segundo a advogada, a condenação de João Carlos tem um peso histórico, pois essa é “a primeira vez que um assassino de liderança indígena Guarani Kaiowá, em um contexto de conflito fundiário no Mato Grosso do Sul, é condenado por homicídio”, considera a assessora. 

Para Matias Benno, coordenador do Conselho Missionário Indigenista (Cimi) Regional Mato Grosso do Sul, a decisão interrompe um ciclo de impunidades que marca a luta do povo Guarani e Kaiowá. O missionário lembrou de casos emblemáticos como o de Marçal de Souza Tupã’i, grande liderança Guarani e Kaiowá, assassinado na aldeia Campestre, também localizada em Antônio João, mesmo município onde Dorvalino foi morto.

“a primeira vez que um assassino de liderança indígena Guarani Kaiowá, em um contexto de conflito fundiário no Mato Grosso do Sul, é condenado por homicídio”

“O caso foi julgado, mas os assassinos foram absolvidos”, recordou Benno, que também lembrou de outros mártires do povo Guarani Kaiowá, como os irmãos Vera e Nísio Gomes. “São casos que ainda serão julgados e provavelmente irão à júri, mas mesmo os que já se passaram como o de Marcos Veron, e tantos outros, em nenhum deles se teve a decência de fazer com que um assassino pagasse pelo crime que cometeu. Isso pairava com muito peso sobre os Guarani”, conta o missionário.

A condenação, nesse sentido, faz justiça à vida e à luta de Dorvalino. Mas não só. “Ela é justiça para um povo”, considera Benno. “Ela [a condenação] nos dá esperança de que esse martírio [do povo Guarani Kaiowá] seja interrompido e que os Guarani Kaiowá avancem para a questão dos seus direitos, inclusive da demarcação das suas terras, motivo pelo qual Dorvalino Rocha foi assassinado”.

“Em nenhum desses casos se teve a decência de fazer com que um assassino pagasse pelo crime que cometeu”

Indígenas da TI Ñanderu Marangatu participam do julgamento que condenou João Carlos Gimenez Brites, assassino de Dorvalino. Foto: Arquivo Cimi Regional MS.

Desaforamento

O julgamento que começou nesta segunda-feira (27) e encerrou na terça (28), contou com a importante presença de indígenas da TI Ñanderu Marangatu, que se deslocaram de Antônio João (MS) à Presidente Prudente, no estado de São Paulo, onde ocorreu o Tribunal do Júri.

O histórico de impunidade que paira sobre os casos que envolvem assassinato de indígenas Guarani e Kaiowá fez com que o MPF pedisse o desaforamento do processo. Isto é, seu encaminhamento para uma outra cidade, no caso para Presidente Prudente. Com a medida, o MPF buscava garantir a isenção do julgamento, bem como dos jurados que julgariam o caso.

Para Tito Lívio Seabra, procurador da República de Presidente Prudente, que assumiu o caso depois do desaforamento, “não é comum o desaforamento para outro Estado da federação, mas é sintomático que esta seja a segunda vez que isso ocorre em casos de assassinatos de indígenas no Mato Grosso do Sul”, pontuou em matéria publicada pelo MPF.

“é sintomático que esta seja a segunda vez que isso [ o desaforamento] ocorre em casos de assassinatos de indígenas no Mato Grosso do Sul”

Julgamento sobre o assassinato de Dorvalino Rocha, liderança Guarani e Kaiowá, realizado entre os dias 27 e 28 de novembro, em Presidente Prudente. Foto: Arquivo Cimi Regional MS

TI Ñanderu Marangatu

O assassinato de Dorvalino Rocha ocorreu após uma ação de reintegração de posse executada em 15 de dezembro de 2005, que despejou a comunidade de Ñanderu Marangatu de seu território tradicional. Expulsa, a comunidade passou a viver acampada às margens da rodovia MS-384 que liga os municípios de Antônio João e Bela Vista (MS).

Os Guarani e Kaiowá de Ñanderu Marangatu passaram seis meses acampados na beira da rodovia, sendo depois removidos para uma área diminuta de 26 hectares chamada Campestre. “Um pedacinho da área de Ñanderu Marangatu”, segundo Matias Benno, coordenador do Cimi Regional Mato Grosso do Sul.

O assassinato de Dorvalino Rocha ocorreu após uma ação de reintegração de posse executada em 15 de dezembro de 2005

“Foi inclusive nessas circunstâncias, fazendo o caminho para buscar a mandioca na antiga localidade onde eles estavam, que Dorvalino foi, na véspera de natal, assassinado. A situação ficou tão ruim que para eles acessarem as suas plantações depois do despejo, eles tinham que caminhar por uma via que era lindeira às fazendas e foi lá, então, que de maneira brutal Dorvalino, foi assassinado”, rememora Benno.

O despejo, contudo, se deu a revelia da homologação da terra indígena, decretada em março de 2005, com 9.317 hectares. Apesar do decreto, meses depois, em julho daquele ano, o então ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Nelson Jobim, decidiria pela suspensão da homologação da terra indígena.

O despejo, contudo, se deu a revelia da homologação da terra indígena, decretada em março de 2005, com 9.317 hectares

“Essa ação ainda está no Supremo Tribunal Federal, a cargo de Gilmar Mendes, mas nunca foi julgada. Mas até segunda ordem é uma área homologada, já reconhecida”, explicou Benno.

Cansados de esperar providências por parte do Estado e da Justiça, as quase mil pessoas que viviam confinadas nessa área em Campestre resolveram, em 2015, retomar seu território tradicional. Nesse período, “eles conseguem ocupar diversas sedes de fazendas e, de maneira prática, o território de Ñanderu Marangatu”, informa o missionário. Atualmente, cerca de metade do território está em posse indígena, mas a outra metade segue nas mãos dos fazendeiros.

Fonte: https://cimi.org.br/2023/12/em-julgamento-historico-assassino-de-dorvalino-rocha-lideranca-guarani-e-kaiowa-e-condenado-a-16-anos-de-prisao/

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