Retomada Yvu Vera, no entorno da reserva de Dourados (MS), teve dez indígenas presos em operação policial arbitrária. Foto: Cimi Regional Mato Grosso do Sul

POR ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO DO CIMI E CIMI REGIONAL MATO GROSSO DO SUL

De um lado, indígenas sem terra, acampados em barracos de lona e pau, em uma terra hoje infértil e degradada. Do outro, uma empreiteira multimilionária, interessada em construir mais um condomínio de luxo, em uma área que aguarda a demarcação pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). Este é o contexto onde ocorreu a prisão em flagrante de dez indígenas Guarani, Kaiowá e Terena, em operação conduzida pela Tropa de Choque e pelo Batalhão da Polícia Militar (BOPM) em plena Páscoa, na manhã de sábado, 8 de abril, em Dourados (MS).

Entre os presos, havia um idoso Kaiowá de 77 anos, liberado após intermediação da Defensoria Pública do Estado (DPE) do Mato Grosso do Sul. Os outros nove permanecem detidos, presos em flagrante pelos militares, acusados de associação criminosa, dano ao patrimônio privado e ameaça, além de lesão corporal e posse de arma. Em depoimento à Polícia Civil, os indígenas negaram as acusações, e afirmam ter ocupado o terreno em protesto contra o início das obras do condomínio.

Conforme relatado pela própria PM à Polícia Civil, um grupo de 20 pessoas “estariam [sic] adentrando propriedade privada”, e por isso, o Choque foi enviado à cidade – “por ordem do Secretário de Justiça e Segurança Pública”. A polícia ainda acusou os indígenas de se recusarem a dialogar com a corporação.

De acordo com o Ministerio Público Federal (MPF), a área teria sido comprada recentemente pela empreiteira Corpal, e se sobrepõe ao território chamado pelos indígenas de tekoha Yvu Vera, contíguo à Reserva de Dourados, de onde vieram as famílias acampadas.

Sem mandado 

A operação foi realizada sem mandado judicial, prática que tem sido recorrente contra retomadas de terras. Em março, outros três indígenas foram presos na região em conflito semelhante, em área disputada pelo também milionário ramo da soja. Em ambos os casos, uma propriedade privada se sobrepõe ao território reivindicado como tradicional pelos Guarani e Kaiowá.

Após as prisões, dezenas de indígenas se dirigiram à área retomada, em solidariedade às famílias de Yvu Vera, e aguardam a liberação dos presos na audiência de custódia, prevista para o domingo de Páscoa. Com apoio da Aty Guasu, grande assembleia dos Kaiowá e Guarani, ameaçam ocupar a totalide da área, caso eles não sejam liberados.

Conflito de interesses

Segundo ofício do Ministério Público Federal (MPF) e denúncia da Aty Guasu, a empresa envolvida no conflito com os Kaiowá e Guarani seria a Corpal Incorporadora. Proprietária de diversos condomínios de luxo na região,  a Corpal é uma entre as mais de 60 empresas da família Fuziy – entre elas, Corpore, Quality e Transcol.

Atuando numa vasta gama de empreendimentos – da construção e administração imobiliária até transporte de combustíveis, investimentos, financiamento de crédito para empresas e armazenamento de produção agropecuária –, o capital social dos Fuziy é estimado em ao menos 150 milhões de reais.

Entre 2020 e 2021, as vendas da empresa cresceram 103%, atingindo mais de 700 milhões de reais com negócios espalhados por diversas cidades do Mato Grosso do Sul, Paraná, Mato Grosso e, mais recentemente, São Paulo.

Durante a desastrosa gestão Bolsonaro, o então secretário-executivo do Conselho de Defesa Nacional (CDN), general Augusto Heleno, atuou junto à Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) para autorizar a construção de um aeródromo na divisa entre Brasil com o Paraguai, a pedido de Fernando Fuziy, CEO e proprietário da Corpal e de outras empresas da família. O “assentimento prévio” do CDN é uma exigência para a construção de pistas de pouso em áreas de fronteira.

Outro benefício alcançado pelas empresas do ramo imobiliário durante a gestão Bolsonaro foi a substituição do Minha Casa Minha Vida, programa habitacional destinado a famílias de baixa renda, pelo Programa Casa Verde e Amarela – criticado por excluir camadas mais pobres das possibilidades de financiamento, ao mesmo tempo em que reduziu os juros de linhas de financiamento destinados a pessoas de renda mais elevada, facilitando o acesso a imóveis de maior valor, como as casas de condomínio.

“Temos uma reivindicação em relação a tradição de nossa terra, um lugar pra viver e poder ser feliz, e todos agem contra nosso povo como se a empresa tivesse mais direito que nós”

Descumprindo acordo, empresa iniciou construção de muro de condomínio de luxo em área reivindicada pelos Guarani e Kaiowá, ao lado da reserva de Dourados (MS). Foto: Cimi Regional Mato Grosso do Sul

Descumprindo acordo, empresa iniciou construção de muro de condomínio de luxo em área reivindicada pelos Guarani e Kaiowá, ao lado da reserva de Dourados (MS). Foto: Cimi Regional Mato Grosso do Sul

Histórico de violências

Cerca de 20 mil indígenas vivem confinados em apenas 3,4 mil hectares da Reserva de Dourados. No século XX, o extinto Serviço de Proteção ao Índio (SPI) expropriou indígenas de um extenso território e os confinou em pequenas áreas de reserva, gerando tensões e conflitos.

Em 2007, um Termo de Ajustamento de Condutas (TAC) firmado entre o MPF e a Funai estabeleceu uma série de territórios a serem identificados e delimitados até 2010 – entre elas, a Terra Indígena (TI) Dourados Pegua, que incluiria a área atualmente em disputa. No entanto, a demarcação permanece paralisada, o que motivou pelo menos dez retomadas de terras nos últimos anos por famílias oriundas da Reserva, entre elas as do tekoha Yvu Vera.

Os moradores da reserva e das retomadas convivem com um “pacote de maldades”: pobreza, abandono do poder público, desmatamento, incêndios criminosos, avanço da monocultura, uso de agrotóxicos e até roubo de água. O elevado índice de violência contra indígenas dentro e no entorno da reserva são parte deste grave contexto. Em 2021, no tekoha Avaété, ao menos três casas de indígenas foram queimadas por seguranças privados de fazendeiros.  Até mesmo um trator modificado como arma de guerra já foi utilizado para destruir barracos e atacar famílias.

Demarcações paradas, poder imobiliário avançando

A retomada realizada nesta sexta, 7 de abril, teve como motivação a revolta das famílias Kaiowá com o descumprimento de um acordo informal que tinham com o antigo “dono” da chácara sobreposta  ao tekoha Yvu Vera. Pelo acordo, enquanto o processo demarcatório não avançasse, os indígenas se manteriam em faixa territorial delimitada, com o compromisso de o dono não avançar com construções sobre a terra.

No entanto, só os indígenas cumpriram a determinação. A área em litígio teria sido vendida para a Corpal, que iniciou a construção de muros de condomínio de luxo, levantados sobre a terra indigena reivindicada.

Enquanto cobram medidas para a resolução definitiva do conflito, os Kaiowá e Guarani recorrem a órgãos como a DPE, para a mediação das situações mais agudas.

“Foi o único olhar que nos enxergou e a única mão que ajudou nosso direito”, avalia Ava Rendy, liderança que prefere se identificar pelo nome Kaiowá. “Temos uma reivindicação em relação a tradição de nossa terra, um lugar pra viver e poder ser feliz, e todos agem contra nosso povo como se a empresa tivesse mais direito que nós”.

Fonte: https://cimi.org.br/2023/04/dez-indigenas-presos-ms/

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