Enre 1972 e 1988, nas primeiras décadas de caminhada do Cimi, diversas pessoas foram assassinadas por sua posição em defesa da causa indígena

POR OSMARINA DE OLIVEIRA E EGON HECK[1]

Entre 1974 e 1988, no período de chumbo da Ditadura Miliar e na embrionária e frágil abertura democrática, que mais estava para continuidade da Ditadura, diversas pessoas foram assassinadas por sua posição em defesa dos povos indígenas. São mártires de uma causa que abraçaram por opção ou por “destino” (vocação para os Cristãos). A consciência das injustiças que estavam sendo cometidas e a necessidade de interferir para que cessassem ou mesmo que as vítimas fossem reparadas, foi motivo de ódio de alguns, levando ao assassinato.

São pessoas que se opuseram ao regime vigente, que não aceitavam ver os povos indígenas sendo vítimas de alguns poucos interesses econômicos, não admitiam um Estado omisso e tolerante às injustiças. São pessoas que sabiam que sua opção colocava a própria vida em risco, mas mesmo assim não desistiram, estimularam outras pessoas, fizeram discípulos e entregaram a vida.

Esses assassinatos têm em comum a consciência de que a vida estava em risco. Todos tinham consciência que suas ações incomodavam poderes estabelecidos, todos eles lutavam por justiça social, nenhum deles desejava morrer, embora não tenham tido medo de entregar a vida.

Sabemos que nesse período histórico ocorreram inúmeros massacres contra os povos indígenas, além de mortes por descasos, como fome e doenças, que não há como mensurar.

A Comissão Nacional da Verdade (CNV) estimou ao menos 8.350 indígenas assassinados no período, “em decorrência da ação direta de agentes governamentais ou da sua omissão. Essa cifra inclui apenas aqueles casos aqui estudados em relação aos quais foi possível desenhar uma estimativa”.

Os números podem ser comprovados pelas informações oficias do próprio Estado, como no caso dos Waimiri-Atroari, que em 1972 a Funai estimava “uma população de cerca de 3 mil pessoas, em 1987 eram somente 420, tendo chegado a 350 em 1983”, conclui o Relatório.

O Relatório traz informações precisas de alguns massacres, outros evidentemente jamais tomaremos conhecimento. Outras obras, como os livros Os Fuzis e as Flechas (2017) e Vítimas do Milagre (1978), também são emblemáticas nas especificações dos crimes e das vítimas. São assassinatos de pessoas que estavam no caminho do “progresso”, do “desenvolvimento” que não se sujeitaram e se opuseram ao regime vigente.  Essas 8.350 mortes se somam a esses mártires. Alguns estavam no caminho, outros se colocaram no caminho. Porém, todos são vítimas da ação e omissão do Estado.

Entre os mártires, quatro eram líderes indígenas e ao menos cinco eram ligados à Igreja Católica: três padres, um irmão e uma irmã. Após a expulsão dos jesuítas, no século XVIII, a Igreja Católica não havia mais se posicionado em âmbito nacional em defesa dos povos indígenas. Com raras exceções, missões e dioceses atendiam sua microrregião, mais preocupadas em sacramentalizar os indígenas do que em ser voz profética de denunciar as injustiças que estavam sendo cometidas.

Essas cinco pessoas não aceitaram as ordens do sistema, romperam, denunciaram e anunciaram.  Os quatro líderes indígenas assassinatos não eram apenas líderes comunitários, mas tinham incidência regional e nacional. Eram pessoas que entendiam o sentido da unidade, a importância da organização e os riscos de se opor ao sistema.

Os governos militares foram os grandes responsáveis por esses crimes, ao não aplicar a lei e, assim, permitir o surgimento de esquadrões da morte ou mesmo grupos armados que agiam ao arrepio da lei para defender seus crimes.

A seguir passaremos a uma breve biografia de alguns personagens vítimas desse processo.Pe. João Bosco Penido Burnier. Foto: reprodução

Pe. João Bosco Penido Burnier. Foto: reprodução

João Bosco Penido Burnier (1917-1976)

Pe. João Bosco Penido Burnier nasceu no dia 11 de junho de 1917, em Juiz de Fora (MG). Foi ordenado sacerdote da Companhia de Jesus em 1946, em Roma. Em 1954, após concluir os seus estudos na Espanha, retornou ao Brasil.

Foi então trabalhar na missão em Diamantino (MT), junto as indígenas Bakairi e com os Tapayuna, mais conhecidos como índios beiço de pau. Participou da coordenação do Cimi Regional Mato Grosso. Nos anos 1970, foi trabalhar na prelazia de São Felix do Araguaia (MT), região de intensos e extremos conflitos fundiários. Na década de 1970, era a região do Brasil em que mais se tem registros de conflitos no campo. Além dos trabalhos com indígenas, Burnier passou a desenvolver trabalhos com camponeses e a defesa dos direitos humanos. Ocorre que defender direitos humanos em regime de exceção é extremamente ariscado.

No dia 11 de outubro de 1976, juntamente com Dom Pedro Casaldáliga, Burnier fez uma visita à cadeia da cidade, por indícios de que estavam torturando mulheres presas. Ao chegar no local, confirmaram que as torturas estavam sendo praticadas pelos próprios policiais. Inclusive, duas mulheres presas estavam sendo torturadas e eram ameaçada pelos policiais de soltar sobre elas um caititu bravio, que se atacasse poderia despedaçá-las.

Burnier, ao interceder por elas, interpelou o soldado Ezy Ramalho Feitosa, de plantão, que não tolerou ser questionado em sua atitude e desferiu um soco, uma coronhada e um tiro de bala “dundum” em Burnier, que veio a faleceu no dia seguinte no hospital em Goiânia (GO). Seu corpo foi sepultado no seminário menor, Jesus o Bom Pastor, em Diamantino (MT).

Em dezembro de 2009, o governo federal, através do trabalho da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, admitiu que o assassinato do Padre Burnier foi provocado pelo regime militar. O reconhecimento oficial da culpa do Estado pela morte repara um erro histórico e abre caminho para a indenização dos familiares de Burnier. Consta também no relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV).

Em sua memória, acontece na Prelazia de São Felix do Araguaia a Romaria dos mártires da caminhada, na comunidade de Ribeirão Cascalheira.Celebração em memória aos 40 anos do martírio de Simão Bororo e Rodolfo Lunkenbein na Terra Indígena Meruri, onde foram assassinados em 1976. Foto: arquivo Cimi

Celebração em memória aos 40 anos do martírio de Simão Bororo e Rodolfo Lunkenbein na Terra Indígena Meruri, onde foram assassinados em 1976. Foto: arquivo Cimi

Simão Cristino Koge Kudugodu (1928-1976) e Rodolfo Lunkenbein (1930-1976)

Os assassinatos do indígena Bororo Simão Cristino Koge Kudugodu, que completaria 39 anos no dia 27 de outubro de 1976, nascido na aldeia Meruri (MT), e do Padre Salesiano Rodolfo Lunkenbein (37 anos), nascido em Döringstadt, na Alemanha, são episódios que se unificam pela causa em que lutavam.

Kudugodu defendia o povo no qual nasceu e aprendeu os costumes, a língua e tudo que precisava para sobreviver; Lunkenbein ou Koge Ekureu (Peixe Dourado), como carinhosamente lhe chamavam os Bororo, afirmava sempre que aprendeu muito com esse povo, foi viver entre eles por opção, fazia pouco mais de uma década.

Foram assassinados no mesmo dia e na mesma hora, no mesmo episódio, por gente querendo tomar as terras dos Bororo e dispostos a tudo para não serem contrariados. Os assassinatos ocorreram na Colônia Meruru, ou Missão Salesiana, dentro da TI Meruri, município de General Carneiro (MT).

Koge Ekureu, quando decidiu ir para a Missão Salesiana em Meruri, não imaginou que seu trabalho seria apenas catequisar e converter indígenas ao cristianismo. Quando se deparou com a realidade, percebeu que o sentido da missão era outro. Não tinha sentido converter pessoas que mantêm uma espiritualidade profunda, mas que estavam impedidos de exercê-la por conta da violência externa, pois tinham perdido quase toda a terra. As invasões constantes de posseiros seguidos de fazendeiros limitavam drasticamente a vida desse povo.

Era o dia 15 de julho de 1976, apesar da friagem comum para o mês de julho fazia muito calor e estava tudo seco, típico do Cerrado brasileiro. Depois de muita luta dos Bororo, a Funai finalmente estava demarcando a terra por eles reivindicada. A empresa contratada para demarcar a terra havia chegado na Colônia Meruri no dia 10 de julho e, no dia 12, começou os trabalhos de demarcação.

Ocorre que fazendeiros tinham se apropriado de grande parte da área. De acordo com o Jornal do Brasil, “o prefeito Valdon Varjão, de Barra do Garças, possui um cartório e comandava a grilagem, já vendeu milhares de hectares que não são dele – afirmou o cacique Bororo”. Os fazendeiros, porém, colocaram camponeses como testas de ferro para justificar a expropriação da terra indígena com apelo social e depois tomar posse definitiva.

Dos 81 mil hectares garantidos aos Bororo desde o início do século XX, restavam apenas as terras onde se encontrava a missão e algumas glebas não agricultáveis. As melhores terras estavam nas mãos de fazendeiros.

Dom Tomas Balduino, em entrevista ao cineasta Zelito Viana, explicou o contexto que se encontrava a Terra Indígena Bororo. “Por trás estavam os fazendeiros, agora, na frente estava os posseiros, empurrados pelos fazendeiros. Isso acontece em toda parte”, explicou o então presidente do Cimi.

O próprio governo do estado do Mato Grosso havia retirado uma grande extensão da terra indígena para cedê-la a fazendeiros. Foi esse o local escolhido para a 3ª Assembleia dos Chefes Indígenas, que ocorreu entre 2 e 4 de setembro de 1975. A comunidade sabia que precisava do apoio de todo o movimento indígena para conseguir suas terras de volta.Cerimônia funerária na aldeia Meruri (MT), em 1976, após assassinato de Simão Bororo e Rodolfo Lunkenbein. Foto: Egon Heck/Cimi

Cerimônia funerária na aldeia Meruri (MT), em 1976, após assassinato de Simão Bororo e Rodolfo Lunkenbein. Foto: Egon Heck/Cimi

Pe. Gonçalo Ochoa, que presenciou os fatos, assim os narrou, em relato publicado na edição de número 30 do Boletim do Cimi, de julho de 1976:

Pelas 10 horas da manhã, encontrava-me na sede da colônia indígena Meruri, de saída para o campo onde o Pe. Rodolfo Lunkembein, diretor da mesma colônia, se encontrava trabalhando, junto com três Bororo, quando me avisaram que havia gente procurando pelos padre, e vi que muita gente conhecida estava chegando em vários carros C10 e outros. Fui cumprimentá-los. Logo percebi que João Marque de Oliveira (João Mineiro), José Antônio Guedes Miguez e Alaor Borges procuravam monopolizar a conversa, dirigindo insultos e ameaças contra mim e o Pe. Rodolfo. João Marque de Oliveira, principalmente, não se limitou às palavras, mas usou as mãos, empurrando, tirando-me os óculos. Estavam resolvidos a impedir a demarcação da reserva dos índios Bororo de Meruri, que tinha começado nessa mesma semana.

Não querendo aceitar nenhum raciocínio, continuaram reclamando a presença do Pe. Rodolfo, querendo inclusive ir ao lugar onde ele se encontrava. Poucos minutos depois, chegou Pe. Rodolfo com os seus colegas de trabalho. Ele manteve a calma e procurou esclarecer sobre o processo da reserva… Disse que, como responsável pela Colônia, cabia-lhe o dever de comunicar o ocorrido às autoridades competentes. Estando em pé na porta do escritório, ele escreveu os nomes dos presentes.

Quando já quase todos estavam nas suas viaturas, João Mineiro, estando na frente do Pe. Rodolfo, perto de um carro, começou a dirigir-lhe insultos e ameaças explícitas. Nisso João Mineiro começou a empurrar o Padre e faltou-lhe ao respeito de fato. Perante o qual, as senhoras Bororo começaram a reclamar e os poucos Bororo que ali estavam procuraram segurar João Mineiro, que estava armado, procurando pegar a arma que carregava na cintura.

Nesse instante começou o tiroteio da parte dos invasores, pois os Bororo além de ser poucos estava totalmente desprevenido e desarmado. Olhei espantado para a turma e vi Manoel Borges (vulgo Preto) empunhando a arma e atirando ao grupo.

Vi no instante em que atirava em uma velha Bororo que avançava para acudir seu filho Simão gravemente ferido. Procurei me proteger atrás de um carro, mas nesse momento escutei gritos: Pe. Rodolfo, Pe. Diretor! Todo cuidado foi inútil e depois de uns 25 minutos de agonia o Padre expirava. Os outros doentes estavam sendo acudidos pelas irmãs e pelos familiares. Simão, índio Bororo de uns 35 anos, tinha sido baleado e esfaqueado, estava agonizando. Lourenço Rondon, filho do chefe, baleado no peito, no momento em que o administrei estava no dormitório do colégio. (…) Gabriel Santos, índio Bororo, motorista e mecânico (…) tinha recebido uma facada; a mãe de Simão tinha recebido no braço direito uma bala que lhe atravessou o braço. (…) José Rodrigues, jovem de 19 anos, tinha sido atravessado por uma bala na perna direita. (…) A notícia do ocorrido foi transmitida logo para Campo Grande e dali para o Brasil e para a Europa.

A terra foi demarcada e hoje está na posse dos Bororo. Porém, o processo judicial que buscava responsabilizar e punir os agressores e assassinos de Roldolfo e Simão não resultou em conclusão positiva. Ninguém foi punido e o processo foi arquivado.Ângelo Pereira Xavier, liderança do povo Pankararé assassinada em 1979. Foto: reprodução

Ângelo Pereira Xavier, liderança do povo Pankararé assassinada em 1979. Foto: reprodução

Ângelo Pereira Xavier (1979)

Não se tem registro da data do nascimento, apenas sabe-se que em 1979, Ângelo Pereira Xavier era cacique do povo Pankararé na Terra Indígena Brejo do Burgo, município de Nova Gloria, norte da Bahia. As terras férteis e com rico manancial de águas destacavam-se no semiárido da região, como também despertava cobiça de fazendeiros locais. Com superfície de 17.924 hectares, destacava-se entre as terras da região. As invasões de fazendeiros eram constantes. Eles desejavam a todo custo o título da terra. O governo do estado da Bahia, alinhado ao governo militar, orientou o Instituto de Terras do Estado da Bahia (Interba) a titular a terra em nome dos fazendeiros.

Como as tratativas do Interba não vinham logrando resultado devido à oposição forte da comunidade liderada pelo cacique Ângelo, decidiram criar outras formas de pressão. A comunidade passou a sofrer repressão policial e toda forma de constrangimento. Bastava ausentar-se da aldeia para sofrerem tortura psicológica.

Também eram monitorados em suas atividades culturais e, em muitas ocasiões, foram proibidos de fazer as suas manifestações culturais, como as suas rezas e a dança do Toré. Pouco adiantava o cacique Ângelo denunciar às autoridades a violência sofrida, porque eram as próprias instituições públicas coniventes com os crimes.

Com o tempo, o próprio cacique passou a ser ameaçado de morte. Ele, como cacique e líder da comunidade, foi o alvo escolhido para desmoralizar e desmobilizar a comunidade.

A 3ª Delegacia Regional da Funai estava situada na cidade de Recife (PE), distante para deslocar-se constantemente e fazer denúncias. Os Pankararé tampouco recebiam visitas regulares de servidores do órgão para dar assistência.

Mesmo assim, o cacique esteve por várias vezes em Recife para denunciar as ameaças que vinha sofrendo, mas infelizmente nenhuma providência foi tomada. A Funai fez pouco caso das denúncias e alegou falta de efetivo para proceder com a investigação. O fato é que a comunidade estava só.

No dia 26 de dezembro de 1979, quando o cacique Ângelo se dirigia ao roçado com um de seus sete filhos, foi alvejado por disparos de arma de fogo de uma tocaia preparada no caminho. O criminoso fugiu do local sem ser visto. Os autores do crime nunca foram presos.

A Funai justificou o caso, dizendo que o crime seria por conta de uma desavença entre os indígenas, mas a comunidade reafirmou que a morte se deu por conta da defesa da terra indígena.

No dia 2 de janeiro de 1980, em várias capitais do país aconteceram missas e atos públicos em memória do cacique Pankararé. Algumas entidades se manifestaram publicamente contra esse brutal assassinato, através de notas públicas. Entre elas, posicionaram-se a Comissão Justiça e Paz do Paraná, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), a Anaí, o Regional Sul II da Conferência Nacional do Bispos do Brasil (CNBB), a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).

Ângelo sabia que sua luta colocaria em risco a própria vida. Mesmo assim, decidiu que a vida da comunidade, a terra e a dignidade eram muito mais preciosas.

Com o assassinato de Ângelo Xavier, o seu filho Manoel Xavier, foi elevado pela comunidade ao cargo de cacique. A comunidade indígena homenageou Angelo Xanvier dando seu nome à Escola Estadual Indígena do território.

Réquiem para Ângelo Xavier
Índio morreu,
Pistoleiro matou.
Pistoleiro assassino,
não é culpado.
Pistoleiro foi braço,
Cumpriu a sentença,
decreto de morte do branco juiz,
Selando a sorte
Do índio explorado.

Índio morreu
Pistoleiro culpado?
Culpado é o sistema
Do branco senhor:
Do uso da terra
Em nome de poucos
Da invasão das reservas
Em nome do lucro.

Cacique Pankararé,
Ângelo Xavier.
Mais uma vitória
Na agenda do Branco.
Omissão da Funai,
Interesse de grupos,
A História traçada
Por mãos opressoras.

Morreu o cacique
Índio Pankararé,
Regando com sangue
A terra que é sua.
Seu grito de dor
é hino de guerra,
clamando Justiça,
invocando Sepé.

 Ângelo tombou,
Por vontade do Branco.
Mas há outros bravos
prosseguindo na luta,
Exigindo o direito
De viver como povo.
E a conquista sagrada
Da Terra e da Vida,
Será a vingança
Do índio imolado.

(Comissão Justiça e Paz do Paraná. Especial para a Missa de 02/01/1980)Ângelo Kretã. Foto: arquivo Cimi

Ângelo Kretã. Foto: arquivo Cimi

Ângelo Kretã (1952-1980)

“Um índio que já não causa problema”: assim o Boletim do Cimi (1980) noticiou o assassinato de Ângelo Kretã, interpretando a opinião dos inimigos da liderança. Do povo Kaingang, vivia na Terra Indígena (TI) Mangueirinha, sudoeste do estado do Paraná, local que até hoje conserva a maior reserva de araucária do Brasil, com 9.976 hectares. Em 12 de maio de 1949, um acordo foi celebrado entre o Serviço de Proteção aos Índios (SPI) e o governador do estado do Paraná, Moises Lupion. A área foi expropriada dos indígenas e vendida ao grupo econômico Forte-Khury, que comprou a área por três milhões de cruzeiros, em 1961, e a vendeu um mês depois por cinquenta e oito milhões de cruzeiros à F. Slaviero & Filhos Indústria e Comércio de Madeiras.

“Em 1963, quando da ocupação, o Grupo Slaviero expulsou violentamente os índios da área”, relata uma nota da Associação Nacional de Apoio ao Índio (Anaí) publicada na edição 62 do Boletim do Cimi, em 1980, “chegando a queimar-lhes as casas”.

Durante um ato público realizado em Curitiba no dia 23 de dezembro de 1979, Ângelo Kretã manifestou para mais de mil pessoas que ocupavam o auditório: “nós vamos ocupar a qualquer momento a área de 8.976 hectares que nos foi roubada pelo Grupo Slaviero”.

Aos 28 anos de idade, Kretã era cacique em sua comunidade. Participou ativamente nos processos que os próprios indígenas denominaram “desintrusão” das terras indígenas no sul do Brasil e era vereador pelo Movimento Democrático Brasileiro (MDB), no momento o único partido de oposição tolerado pela Ditadura Militar, onde aglutinavam-se os opositores ao regime. Era “o primeiro vereador indígena no Brasil”, diziam as manchetes de jornais.

Sua trajetória no movimento de desintrusão foi registrado pelo cineasta Zelito Viana no documentário Terra dos Índios (1979). A ação política de Kretã provocou a ira em diversas pessoas e entidades. Além do conflito com o governo do Estado e a firma Slaviero, “paulatinamente, passou a se opor a diversas práticas rotineiras implementadas pela Funai e consideradas degradantes pelos indígenas, como o trabalho forçado, a cadeia indígena, a utilização do tronco, a presença na TI de serraria dirigida pela Funai, a transferência dos recursos oriundos da exploração de madeira de lei e de outros recursos naturais para a Gestão do Patrimônio Indígena em Brasília” (CEV, 2017).

Sua cadeira na câmara municipal era questionada tanto por vereadores da Aliança Renovadora Nacional (Arena), partido dos defensores do Regime Militar, como pela chefia de posto da Funai, sob o argumento de que indígena tutelado não poderia ser vereador.

Kretã sabia que estava ameaçado de morte – aliás, eram várias pessoas que desejavam sua morte, mas ele não temia. Na ação para retirada dos invasores da TI Rio das Cobras (PR), declarou ao cineasta Zelito Viana (1979): “acredito muito na minha gente, como índio e como cacique de uma terra Kaingang eu morro, derramo meu sangue, mas sempre pensando no meu povo”.

Segundo o Boletim do Cimi (1980), ele já havia alertado as demais lideranças indígenas de que sua morte não deveria parar a luta. Ao ser entrevistado pelo cineasta Ronaldo Duque, também em 1979, declarou que já tinha sofrido uma emboscada: “Eu já estou vigiado há muito tempo, e até tenho medo de publicar estas coisas e a gente se complicar ainda mais. Eu estou ameaçado de morte há seis anos, mas agora mais violentamente”.

No depoimento ao cineasta, Kretã relatou a tentativa de emboscada:  “estava sozinho no carro, quiseram me pegar”.  E foi justamente com um carro que assassinaram o líder Kaingang, tentando simular um acidente automobilístico. Diante das constantes ameaças, Kretã contava com proteção policial.

Na noite de 22 de janeiro de 1980, “o cacique e três soldados da PM caíram numa emboscada, quando uma jamanta [carreta], ao desviar de um volks deixado abandonado na estrada, colidiu com o carro que ocupavam”, descreve o relato publicado no Boletim do Cimi. Kretã morreu no dia 29 daquele mês, num hospital de Curitiba.

As ameaças de morte não eram conhecidas apenas por ele. O advogado que defendia Kretã já havia ingressado com ação judicial, pedindo de proteção. “Foram designados seis policiais militares para garantir a sua segurança; três deles estavam no automóvel pilotado por Ângelo no momento do acidente (Liberino Bak, Sadi Reisdoenfer e Bernardo Pehencenzmi)”, aponta o relatório da Comissão Estadual da Verdade do Paraná.

Para Elvira Kretã, viúva de Ângelo, não foi um acidente de trânsito, mas um assassinato:

Até hoje não foi provado se foi acidente ou uma espera [tocaia, emboscada]. Foi uma espera, quero ver… foi na segunda-feira, nós saímos com ele, fomos para Coronel Vivida e Chopinzinho [municípios vizinhos à TI de Mangueirinha], o carro andava atrás de nós, os que andavam perseguindo ele. Na terça-feira que ele foi é que deu o acidente. […] Agora não sei se era dos Slaviero ou era de um pessoal que tinha ali na Palmeirinha, por causa que ele tomou [de volta para índios] um pedaço de terra que eles tinham tirado. (CASTRO, 2011, apud CEV, 2017).

Diversos atos e manifestações de solidariedade foram realizados pedindo apuração rigorosa ao crime. O processo resultou em vários problemas e, por fim, ninguém foi punido.

A Comissão Estadual da Verdade reexaminou o caso e observou que a morte de Kretã teria sido resultado “de uma emboscada destinada a matá-lo”. Defende que o caso não pode ficar no esquecimento, “recomenda que seja reexaminado o episódio, que pode contemplar prática criminosa, resgatando-se a verdade do propósito da eliminação de importante liderança indígena”, justamente por se opor aos discursos oficiais.

O relatório da Comissão Estadual recomenda também “o empenho do governo brasileiro, no sentido de esclarecer as verdadeiras circunstâncias da morte desta liderança, é medida que se impõe”.

Sobre os 8.976 hectares de terra Kaingang tomadas pelo governo Lupion, somente em 1974 a Funai entrou na justiça reivindicando a devolução das terras expropriadas de Mangueirinha. A área foi restituída, após longo processo judicial que tramitou junto à Justiça Federal no Paraná.Marçal de Souza Tupã-i discursa ao papa João Paulo II, em Manaus, em 1980. Foto: Paulo Suess/Cimi

Marçal de Souza Tupã-i discursa ao papa João Paulo II, em Manaus, em 1980. Foto: Paulo Suess/Cimi

Marçal de Souza Tupã’i (1920-1983)

“Eu sou uma pessoa marcada para morrer”, afirmou o Guarani Nhandeva Marçal de Souza Tupã`i (Pequeno Deus), ao papa João Paulo II durante o encontro com o pontífice, em julho de 1980, em Manaus (AM). Completou Marçal: “Mas por uma causa justa a gente morre!”.

Aos 63 anos, Marçal conhecia bem a história de sofrimento do povo Guarani e Kaiowá no Mato Grosso do Sul. Foi testemunho das inúmeras expulsões e massacres que ocorreram contra seu povo, do confinamento nas reservas, da exploração ilegal de madeira, do trabalho escravo, do tráfico de meninas Guarani, do desflorestamento e do gado pisoteando a terra sagrada, e depois, do trator eliminando as últimas árvores que restavam.

Com a eliminação da floresta, se foi o rio, o peixe, os animais, os remédios… esperavam os fazendeiros que os Guarani também fossem eliminados. Mas eis que surgem vozes que não querem calar, que fazem ecoar no mundo as denúncias das injustiças. Ele foi levar seu protesto à Organização das Nações Unidas (ONU) e, em 1980, discursou para o Papa. Era incansável na defesa de seu povo.

Na aldeia Campestre, onde vivia, trabalhava como enfermeiro, formação recebida de um curso realizado na Organização Mundial da Saúde (OMS), desde que fora expulso da reserva de Dourados pela Funai em 1978, justamente por denúncias contra falcatruas que não concordava.

Em Campestre, apoiou a retomada da terra onde nasceu e de onde foram expulsos seus “patrícios”, como chamava os membros de seu povo. A área, denominada Pirakuá, havia sido retomada por 45 famílias.Marçal era a voz de defesa do grupo.

Ele tinha sido ameaçado de morte diversas vezes – inclusive, alguns dias antes do assassinato ofereceram-lhe cinco milhões de cruzeiros para que ele convencesse o grupo a desistir da luta. Era uma oferta que poderia vir de alguém que tinha muito interesse na área. Mas não havia dinheiro que pagasse a justiça e o tekoha. Marçal recusou a oferta e permaneceu na luta.

Na noite do dia 25 de novembro de 1983, quando ainda se encontrava na farmácia da aldeia Campestre, dois pistoleiros armados desferiram cinco tiros com revólver Taurus calibre 38 a queima-roupa e desapareceram na escuridão da noite.

De acordo com informações sistematizadas por Benedito Prezia (2006), o revólver foi encontrado no dia 1º de dezembro com Rômulo Gamarra. Porém, a morosidade proposital da justiça fez com que apenas em março do ano seguinte fossem feitos os exames de balística, confirmando que a bala que matou Marçal saiu mesmos da arma apreendida.

A prisão de Gamarra ocorreu apenas em 31 de maio de 1984, “tendo ficado na cadeia apenas 60 dias, sendo solto graças a um habeas corpus impetrado pelo Dr. René Siufi, um dos melhores e mais carros advogados de Campo Grande”, relata o historiador. A pergunta que os indígenas e seus apoiadores se faziam naquela época, registrada por Benedito Prezia, era: “como um simples capataz de fazenda poderia ter dinheiro para contratar um dos melhores criminalistas do estado?”.

Por um longo período, a justiça debateu de quem era a responsabilidade pelo julgamento, se a instância federal ou a estadual. Somente em 1985, o fazendeiro Líbero Monteiro Lima foi indiciado no inquérito da Polícia Federal de Ponta Porã.

Porém, as testemunhas foram ouvidas somente três anos depois, quando três novas pessoas foram indicadas como suspeitas – uma delas, um policial da Secretaria de Segurança Pública de Mato Grosso do Sul. Os novos suspeitos, no entanto, nunca foram indiciados.

De acordo com Prezia, Libero Monteiro era pessoa influente e membro da União Democrática Ruralista (UDR). O julgamento foi marcado para de 1993, em Ponta Porã, porém o réu foi absolvido por falta de provas. Novo julgamento ocorreu em 1998, após 15 anos do crime, porém, novamente o fazendeiro foi absolvido.

Ninguém foi punido. A justiça fez pouco caso, seja por omissão ou conivência. A profecia de Tupã`i se fez realidade: “somos uma nação subjugada pelos potentes (poderosos), uma nação espoliada, uma nação que está morrendo aos poucos sem encontrar caminho, porque aqueles que nos tomaram este chão não têm dado condição para a nossa sobrevivência”.

Mas, a sociedade brasileira e mundial reconheceu em Marçal Tupã`i a voz dos Guarani e Kaiowá, o grito que não aceita injustiça, a honradez que não aceita subornos. Milhares de manifestantes pedindo justiça a Marçal se fizeram ouvir.

Seu assassinato não esmoreceu a luta Guarani, ao contrário. Sabia Tupã`i que “alguém tem que perder a vida por uma causa”. Também sabia que a morte não seria em vão.

“Levantarão outros, que terão o mesmo idealismo e que continuarão o trabalho que hoje nós começamos”, afirmou ao cineasta Zelito Viana, em 1978, no documentário Terra dos Índios.

De fato, a Aty Guasu, a Grande Assembleia Guarani e Kaiowá, apoiada por Tupã`i, hoje é uma organização forte que dá esperança ao povo Guarani e Kaiowá. As retomadas de terras continuaram, algumas áreas já foram regularizadas outras estão em processo, mas o mais importante é a esperança de conquistar as terras roubadas num passado recente e convertê-las novamente em tekoha. Diversas outras lideranças Guarani e Kaiowá foram assassinadas desde 1983 na luta pela terra, mas eles têm certeza que muitos outros se levantarão.Irmã Cleusa Carolina Rody Coelho, assassinada em 1985. Foto: reprodução

Irmã Cleusa Carolina Rody Coelho, assassinada em 1985. Foto: reprodução

Cleusa Carolina Rody Coelho (1933-1985)

Cleusa Carolina Rody Coelho nasceu em Cachoeiro de Itapemirim, no estado do Espírito Santo, em 1933. Em 1952, ingressou na Congregação das Missionárias Agostinianas Recoletas, e foi morar na primeira casa da congregação, localizada na Ilha das Flores, no estado do Rio de Janeiro.

Esteve em missão em Lábrea (AM), Manaus (AM), Colatina (ES) e Vitória (ES). Quando decidiu mudar-se para Lábrea, não imaginou que ali encontraria o sentido de sua vida junto aos povos indígenas – e também a sua última morada na terra.

Logo no início dos trabalhos percebeu que atuar ali não seria fácil. Constatou que os indígenas eram muito discriminados pelos regionais. Além das discriminações, encontrou sérios conflitos com exploradores de castanha, que adentravam as terras indígenas sem permissão e a qualquer reclamação indígena os ameaçavam.

O contexto do regime militar em nada favorecia os indígenas. O governo desejava a todo custa a integração dos mesmos à sociedade nacional, ou seja, apoiava a perspectiva dos castanheiros que desconsideravam aquela população como indígena.

Irmã Cleusa percebeu que seu trabalho pastoral com os indígenas não era bem visto na cidade e perante os ribeirinhos vizinhos dos indígenas. O indígena Apurinã Pedro Borges relatou a conversa que Irmã Cleusa teve com ele, informando de seu temor de ser agredida ou mesmo morta por regionais.

Segundo Pedro Borges, Irmã Cleusa teria dito: “um dia pode acontecer alguma coisa comigo, porque estou correndo atrás para juntar e reunir os indígenas, para unir eles”. Segundo o Apurinã, “por isso ela não era bem-vinda nos locais que ela chegava, por causa dos indígenas”.

Ela confessou a ele que já teria sido ameaçada: “já fui ameaçada bastante com uma bala na minha cabeça, porque falava em favor de vocês. Eu posso até morrer, mas não deixo de estar com vocês”.

A região onde vivia o povo Apurinã possuía uma grande área de castanhal, que despertava interesse de grupos econômicos e políticos regionais, além de comerciantes e fazendeiros da região.

Alguns dias antes do assassinato de Irmã Cleusa, a aldeia tinha sido vítima de um crime bárbaro. O indígena Raimundo Podivem, que tinha feito “treinamento antiguerrilha em Manaus, e trabalhado por cinco anos como policial militar, foi contratado pelos castanheiros e latifundiários interessados nas terras dos Apurinã.

O objetivo era matar o cacique e líder da comunidade, o tuxaua Agostinho, pois este estava lutando pela demarcação da terra e também pela expulsão dos exploradores de castanha do território.

Ao chegar na aldeia, Raimundo não o encontrou. Decidiu então que não perderia a viagem e assassinou o filho do tuxaua, Arnaldo, e sua mulher Maria. Ao tomar conhecimento do ocorrido, Irmã Cleusa decide ir até a aldeia Japiim, local dos assassinatos, para verificar a situação, confirmar os fatos ocorridos e auxiliar a comunidades na tomada das providências legais.

No dia 28 de abril de 1985, depois de constatar o ocorrido e tomar as providências no local, Irmã Cleusa disse para os indígenas que iria até a cidade de Lábrea para pedir a investigação e apuração do caso. No trajeto da aldeia para a cidade, ela se deparou com o barco do assassino da esposa e filho do Tuxaua, Raimundo Podivem, que atirou contra o barco da irmã.

Um dos tirou atingiu de raspão no indígena Raimundo Paulo que acompanhava a missionária na embarcação. Irmã Cleusa orientou Raimundo Paulo a tratar de fugir, pois ele tinha família para cuidar, e afirmou que ela iria conversar com Raimundo Podivem.

O indígena Raimundo Paulo, saltou do barco, nadou até a margem e foi por terra até a cidade de Lábrea, onde relatou o ocorrido para o pároco da cidade, padre Jesús Moraza Ruiz.

Sabendo da gravidade da situação, o padre reuniu pessoas e organizou as buscas no rio Paciá. No primeiro dia não encontraram nenhum vestígio de irmã Cleusa. No dia seguinte, continuaram as buscas e encontraram a canoa que pertencia à irmã. Logo depois, encontraram seu corpo, já sem vida.

Exames de raios-X, realizados na época no Hospital de Lábrea, indicaram que Irmã Cleusa teve o seu crânio, costela e um braço quebrado. Após as homenagens, a religiosa foi enterrada na cidade de Lábrea.

O indígena autor do assassinato morreu pouco depois, sob suspeita de envenenamento. O “crime” que custou a vida de Irmã Cleusa foi buscar reunir os indígenas para lutar pelos seus direitos.

Irmã Cleusa deixou registrada uma frase que resumiu o período curto, mas de profunda vivência, que teve com os Apurinã: “comprometer-se com o índio, o mais pobre, desprezado e explorado, é assumir firme a sua caminhada, confiante num futuro certo que já se vai tornando presente, nas pequenas lutas e vitórias. Vale arriscar-se!”.Ezequeil Ramin, assassinado em 1985. Foto: arquivo/Missionários Combonianos do Coração de Jesus

Ezequeil Ramin, assassinado em 1985. Foto: arquivo/Missionários Combonianos do Coração de Jesus

Ezequiel Ramin (1953-1985)

“Difícil é cantar ao Senhor quando a morte está nas casas das pessoas. Dói o coração ver tanta injustiça e saber que posso fazer tão pouco”

A injustiça era a angústia que inquietava Pe. Ezequiel. Trabalhando numa região do Brasil em que a lei pouco valia, lutar pela justiça social parecia algo impossível.

Ezequiel nasceu em Pádua, Itália, em 1953. Foi ordenado sacerdote em 1980 e três anos depois, com apenas 30 anos, deixou a Itália e veio em missão ao Brasil indo trabalhar em Cacoal (RO), na diocese de Ji–Paraná.

Na década de 1980, no estado de Rondônia, estava ocorrendo um processo de colonização extremamente violento e desordenado, com incentivo do governo brasileiro, de que Rondônia era o “Eldorado brasileiro”, o que provocou a ida de milhares de pessoas de várias partes do Brasil para a região, com a promessa de ter um pedaço de terra para plantar.

Empresas de colonização e grandes fazendeiros haviam se apropriado da maior parte das terras. Títulos fraudulentos, grilagem e expulsão de indígenas de seus territórios faziam parte da rotina da nova colonização. Isso estava gerando conflitos, disputas e tensões. As disputas entre fazendeiros e posseiros, de grileiros contra pequenos agricultores e de fazendeiros e madeireiras contra indígenas faziam parte da rotina.

A fazenda Catuva era um desses casos de grilagem e expulsão de famílias indígenas. Na busca de melhores condições de vida, um grupo de posseiros ocupou a fazenda, provocando a ira dos latifundiários da região.

A pedido das mulheres do grupo de posseiros que tinha ocupado a fazenda Catuva, no dia 24 de julho de 1985, Pe. Ezequiel foi fazer uma visita na ocupação, acompanhado por Adílio de Souza, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais.

Sua radicalidade em defesa da justiça social tornava-o um pacificador. Não queria ver posseiros disputando terras com os indígenas. Tampouco tolerava fazendeiros e madeireiros invadindo terras indígenas e expulsando posseiros.

Pe. Ezequiel trabalhou com os povos Suruí e preocupava-se com a invasão da terra indígena. Essa preocupação ficou registrada no depoimento dado para o pesquisador Enzo Santângelo: “os índios Suruí lamentam a presença de novos barracos e derrubadas. Foi até constatada a presença de mais de 200 cabeças de gado bem dentro da área indígena. (…) É desta semana o deslocamento dos três caciques na área interessada, para tomarem medidas solucionadoras na hora”. Nas conversas com os posseiros, Pe. Ezequiel alertava que eles respeitassem o território indígena.

Na visita à ocupação, nesse dia 24 de julho, o Pe. Ezequiel tinha esse propósito, convencer os posseiros de que a melhor estratégia nesse momento era desocupar a fazenda. A ameaça de massacre contra os camponeses era grande e não se podia esperar muita coisa da justiça na nova república, afinal, a transição foi lenta e a ditadura adentrou o período “democrático”. Para chegar o local onde estava a ocupação dos posseiros, Pe. Ezequiel fez o caminho cortando parte da área indígena do povo Suruí.

“Quando chegaram junto ao Posto indígena Lourdes, um funcionário da Funai quis impedir a passagem: tinha ordem de não deixar passar ninguém”, conta João Munari, no livro Ezequiel Ramin a força de um testemunho. “Mas chegou um carro da Funai, vindo do interior da fazenda, com um pessoal desconhecido, pedindo que a entrada fosse liberada. Foi o que o funcionário fez. Os dois alcançaram a porteira da fazenda. Ninguém criou problemas”.

Chegando ao barraco onde se encontravam os posseiros, perceberam que não estavam sós: havia um carro com pistoleiros que os seguiam, acompanhando cada passo de Pe. Ezequiel e de Adílio.

Após a reunião com os posseiros, onde alertaram sobre a situação e pediram que desocupassem a área porque a situação estava tensa na região e eles estariam correndo grande perigo, decidiram voltar pra casa. Porém, perceberam que a camioneta com os jagunços também saiu na mesma hora, perceberam que poderiam estar armando uma emboscada.

“Adílio até sugeriu que abandonassem o carro no local e voltassem para casa a pé, pela mata, junto com os posseiros, só que Pe. Ezequiel achou melhor conversar com os pistoleiros. Quando desceu do carro, foi alvejado pelos jagunços”, relata Munari.

Adílio conseguiu fugir a pé pela mata até a cidade, levando o aviso do ocorrido. Padres e agentes de pastoral da paroquia foram ao local onde havia acontecido o ataque e encontrado o corpo do Pe. Ezequiel, a uns 50 metros da traseira do carro, crivado de balas, roupas manchadas, rosto desfigurado por um tiro de espingarda, à queima roupa, e os braços cruzados, em atitude de defesa.

Em março de 1988, quase três anos depois do crime, houve o julgamento e apenas dois pistoleiros foram presos e confessaram a autoria do crime. Os dois foram condenados a dezesseis anos de reclusão pela morte do padre Ezequiel e a oito anos pela tentativa de homicídio de Adílio de Souza.Vicente Cañas junto a crianças Enawenê-Nawê. Foto: arquivo Cimi

Vicente Cañas junto a crianças Enawenê-Nawê. Foto: arquivo Cimi

Vicente Cañas (1939-1987)

Vicente Cañas Costa nasceu em Albacete, Espanha, em 22 de outubro de 1939. Em 1961, com 21 anos de idade, entrou no Noviciado da Companhia de Jesus. Após o noviciado, já no juniorado, manifestou, ao padre provincial de Aragon, sua intenção de desenvolver atividade missionária junto aos povos indígenas no Brasil. Seu entendimento de missão, naquele momento, ainda era de conversão e sacramentalização dos povos indígenas.

Em 3 de outubro de 1965, na festa de São Francisco Xavier, o Irmão Vicente recebe o crucifixo de missionário no Castelo de Xavier, em Navarra, Espanha. Em 1966,  já ordenado Irmão, Vicente Cañas, juntamente com outros irmãos, chegava ao Rio de Janeiro para realizar o seu sonho de ser missionário.

Após o período de adaptação no Brasil e de aprendizado da língua portuguesa, Ir. Vicente procura o Pe. Antônio Iasi para auxiliá-lo na intermediação com a Fundação Nacional do Índio (Funai).

Ele buscava autorização para fazer atendimento de saúde de Tapaiunas sobreviventes dos contatos catastróficos com as frentes de expansão no vale do rio Arinos. O Ir. Vicente Cañas manteve este trabalho até abril de 1970 e conseguiu que sobrevivessem os 40 Tapaiunas que encontrou.

Em 1971, os jesuítas Vicente Cañas e Thomaz de Aquino Lisboa mantiveram os primeiros contatos com os Myky, também no Mato Grosso. E foi junto aos Myky que Vicente ganhou o nome Kiwxi. Os dois missionários participaram ativamente da criação do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).

Em 1974, Vicente Cañas e Thomaz Lisboa estabeleceram os primeiros contatos com o povo Enawenê-Nawê, no estado de Mato Grosso, povo ao qual Cañas passou a se dedicar no final de 1975.

Ao conviver com esse povo percebeu que ainda estavam sem contato com a sociedade nacional, mas as terras por eles ocupadas tradicionalmente estavam pretendidas e algumas tituladas em nomes de políticos e empresários regionais.https://www.youtube.com/embed/caeSGvrFkTU

A grilagem de terra era a marca da ação do estado no Mato Grosso, tolerando e no geral apoiado tal iniciativa. Em 1977, Cañas começou a residir entre eles, porém não na aldeia, mas nas margens do rio Juruena, quilômetros abaixo no rio, no caminho para a aldeia, justamente num ponto em que todos que fossem para a aldeia tivessem que passar próximo a sua casa.

Era uma espécie de guardião da porta de entrada, também no sentido de impedir que doenças entrassem no meio desse povo recém contatado. Seu conceito de ser missionário mudou em relação ao de quando estava na Espanha: descobriu que ser missionário, trabalhar com evangelização, não era converter o outro, mas conviver, apoiar, respeitar e a partir do processo de escuta favorecer o diálogo inter-religioso.

Essas ações se converteram no trabalho pela preservação de seu território, tarefa básica e fundamental para a manutenção da vida desse povo. Após muita pressão e cobranças, a Funai decidiu criar um Grupo Técnico (GT) para proceder com os estudos para identificação e delimitação da terra, no qual Vicente Cañas foi indicado para compor.

A notícia de que a Funai pretendia demarcar a terra dos Enawenê-Nawê foi como uma bomba entre setores empresarias e políticos de Juína. Era abril de 1987. Após alguns meses em que os companheiros de trabalho de Vicente não tinham notícias dele, pois ele não havia mais se comunicado pelo rádio, ou “passado um rádio”, como diziam na expressão regional, decidiram averiguar o que estava ocorrendo.

Todos sabiam que eram extremamente difícil a comunicação da aldeia, mas do “barraco” onde Vicente morava não era tão difícil assim, e havia uma rotina de manter comunicação com certa periodicidade.

Dois membros do Cimi decidiram ir até ao barraco onde ele passava sua “quarentena”, período que ele preservava, para evitar levar alguma doença para os indígenas, que tinham pouco contato na época. Quando os missionários chegaram próximos ao local, estranharam a forma com que o barco dele se encontrava no barranco.

Ao chegarem no barraco, encontraram-no revirado, e, do lado de fora, eles encontraram o seu corpo mumificado e preservado. O corpo estava com óculos, dentes e crânio quebrados, perfuração na parte superior do abdômen, para atingir o coração, e os órgãos genitais cortados ou arrancados.

No dia 21 de maio de 1987, o corpo de Vicente foi enterrado na aldeia conforme o costume Enawenê-Nawê, em sua rede.

Apenas 19 anos depois, em 2006, aconteceu o primeiro julgamento do assassinato, e neste julgamento os acusados foram absorvidos. Os advogados de acusação recorreram da decisão e no final de 2017, depois de 30 anos, o único dos acusados de organizar o assassinato ainda vivo, Ronaldo Antônio Osmar, delegado aposentado da Polícia Civil de Juína, localidade onde ocorreu o crime, foi condenado a 14 anos e três meses de reclusão em regime inicial fechado.

A demora em elucidar o caso se explica: um dos mandantes do assassinato era também o delegado que investigava.

Apesar da morosidade da justiça, a sobrinha de Kiwxi, Rosa Cañas, comemorou a decisão, porque mesmo tardiamente, figuras importantes da sociedade regional foram condenadas.

“Estamos muito contentes. Isto abre um precedente impressionante no país para julgamentos de impunidade contra os povos indígenas. Depois de tantos anos de espera, é uma grande alegria saber que Vicente, meu tio, continuará o caminho para a proteção dos povos através do julgamento”, afirmou a sobrinha de Vicente na ocasião.

Vicente foi homenageado com o nome do Centro de Formação que o Cimi mantém em Luziânia (GO).


[1] Osmarina de Oliveira é integrante do Cimi Regional Sul e mestranda no PPG-IELA da Unila. Egon Heck é membro fundador do Cimi. Texto adaptado a partir de artigo originalmente publicado no livro O Movimento Indígena no Brasil: da tutela ao protagonismo (1974-1988), organizado por Egon Heck e Clovis Antonio Brighenti e publicado em 2021 pela EDUNILA.

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Fonte: https://cimi.org.br/2022/04/martires-causa-indigena/

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