Em semana de mobilização, indígenas cobraram demarcação da Terra Indígena Rio dos Índios, do povo Kaingang.
Uma mata de pinheiros nascerá na Terra Indígena (TI) Rio dos Índios. É o que os Kaingang do território localizado em Vicente Dutra (RS) planejam, a partir de uma ação realizada na última semana. Durante uma mobilização que envolveu cerca de 500 indígenas Kaingang e Guarani de várias aldeias do Rio Grande do Sul, mudas de araucária foram plantadas na área retomada de uma fazenda no interior da TI.
A ação, além de fortalecer a luta pela demarcação da terra tradicional, tem outros aspectos importantes: denunciar a degradação dos territórios indígenas, que se aprofunda à medida que as demarcações são postergadas, e recuperar um tipo de vegetação bastante significativo para a cultura e o modo de vida Kaingang.
“Essa decisão das lideranças do estado é importante pra população indígena e pro futuro. Queremos nossa terra demarcada para garantir nossa vida tradicional”, avalia Luís Salvador Kaingang, o Saci, cacique de Rio dos Índios.
“Nossas terras foram todas desmatadas, e hoje os povos indígenas vêm plantar os pinheiros como prova de que queremos recuperar essas áreas. Queremos nossas terras para proteger, recuperar e viver de acordo com nossas tradições”
“Nossas terras foram todas desmatadas, e hoje os povos indígenas vêm plantar os pinheiros como prova de que queremos recuperar essas áreas. O pinhão era a base da alimentação do nosso povo. Queremos nossas terras para proteger, recuperar e viver de acordo com nossas tradições”, afirma Isaías da Rosa Kaingang, uma das lideranças de outras terras indígenas que apoiaram a ação.
Atualmente, os Kaingang de Rio dos Índios – Kanhgág Ag Goj, na língua do povo – vivem confinados em apenas dois dos 715 hectares já declarados pelo Estado como terra tradicional indígena. A demarcação está paralisada desde 2004, quando foi publicada a Portaria Declaratória da área.
São mais de 30 anos desde que a Funai deu início aos estudos para o reconhecimento do território tradicional, afirma o documento divulgado pelos indígenas no início da mobilização. “Continuamos lutando e resistindo, confinados em apenas dois hectares de terra. Nesse pequeno espaço são 46 famílias, mais de 315 pessoas”.
Fortalecendo a tradicionalidade
As araucárias ou pinheiros têm uma grande importância cultural para o povo Kaingang, que historicamente viveu em áreas de florestas desse tipo, na região Sul do país. O pinhão – semente da árvore, que se forma dentro da pinha – é uma das bases da alimentação tradicional Kaingang, presente até hoje na vida das comunidades.
O pinheiro também tem papel significativo no tradicional ritual dos mortos dos Kaingang, denominado Kiki ou Kikikoi – cuja prática, após décadas de repressão, resiste em poucas localidades. É no tronco da araucária que a bebida ritual, feita de ingredientes como mel, milho e água, deve ser servida.
“A araucária protege o solo e protege os pássaros. Estamos preocupados com os últimos pássaros e com os últimos índios que sobrevivem aqui nessa região”, explica Luís Salvador. “Os nossos velhinho falam com os pássaros. As aves avisam nós do perigo, principalmente aqueles que tem fé no nosso Tupë [Deus]. Por isso, precisamos proteger a morada desses animais”.
Pensando no futuro
“Na nossa região, na verdade, a araucária foi quase exterminada, e segundo nossos velhinhos aqui era cheio dela. Passamos pelo extermínio das nossas comidas básicas”, conta Saci.
As matas de araucária que existem hoje correspondem a menos de 1,5% da extensão que tinham na década de 1940, nos estados do Rio Grande do Sul e Paraná, e menos de 3% no caso de Santa Catarina. “[A araucária] está ameaçada porque nossa política pública só se preocupa em impedir sua derrubada, mas não fomenta o plantio”, explicou o engenheiro agrônomo e professor da UFPR, Flávio Zanette, em entrevista ao IHU Unisinos.
A década em que se iniciou o declínio das matas de araucárias coincide com o período em que os povos indígenas da região Sul foram espoliados de grande parte das já diminutas terras que mantinham sob sua posse, por meio da redução de reservas e da distribuição de lotes para agricultores.
“A própria natureza dava suporte para nossa vida social, hoje nos obrigamos a plantar. Nosso projeto é demarcar e garantir a nossa vida tradicional”, afirma Saci.
“A nossa ideia é para o futuro, para que nossos filhos tenham essa comida que é uma das mais básicas do povo Kaingang. Os pássaros vão ajudar a espalhar o pinhão que vai cair, e nós vamos ajudar as aves a sobreviver. As pacas e as cutias também vão sobreviver, vamos voltar a ter nossas caças que foram extintas”, almeja Saci.
Em seis anos, calcula o cacique, já vai ser possível colher o pinhão. Nos planos futuros estão o aumento da área plantada e a venda da produção excedente, criando uma nova fonte coletiva de renda para a comunidade.
“Muitas terras estão tendo produção de agronegócio, que não serve para nosso projeto de vida. Nossa bandeira é que nós tenhamos meio de sobreviver, mas não da soja, não envenenando a água, não vendendo nosso direito para os ruralistas”.
Relação ancestral
A relação dos antepassados dos povos Kaingang e Xokleng – chamados por pesquisadores de Proto-Jê Meridionais – com o desenvolvimento das matas de araucária é objeto de pesquisa na área da arqueologia e da etnologia. Fonte de alimento e abrigo de caças, há indícios de que essas matas podem ter se expandido, em parte, devido ao manejo feito por indígenas, do mesmo modo que pesquisas hoje apontam que ocorreu com a vegetação nativa da Amazônia.
Estudos recentes indicam que o período em que se deu a expansão das florestas de araucária, em torno do ano 1000 d.C., coincide com o surgimento de padrões funerários e com o aumento das construções de casas subterrâneas associadas às populações Proto-Jê e encontradas em diversos sítios arqueológicos na região sul do Brasil.
“É concebível que a rápida expansão da floresta de araucária ocorreu não apenas por fatores naturais, mas também em função da atividade humana, uma vez que promover a expansão deste recurso alimentar era importante em uma série de sentidos, fossem econômicos, políticos ou ritualísticos”
“A rapidez e o momento em que estas transições culturais e ambientais ocorrem, faz com que diversos pesquisadores sugiram a possibilidade de que a expansão da floresta de Araucária tenha uma causa antropogênica”, aponta um dos estudos publicados recentemente.
Luta por demarcação e indenização
O plantio das mudas de araucária foi feito numa área de 24 hectares, retomada em 2016 de uma fazenda que incide parcialmente sobre a TI Rio dos Índios.
“A fazenda que estamos ocupando não é de pequeno agricultor, é de uma pessoa de alto padrão que criava gado aqui. Nós estamos fazendo o justo, porque ele não mora em cima da área”, explica Luís Salvador.
Para o cacique, é importante salientar a diferença do fazendeiro para os pequenos agricultores que receberam títulos do estado e vivem sobre a área.
“Se o Estado colocou eles aqui, ele tem que assumir esse compromisso com os pequenos agricultores, e não colocar eles contra o direito do índio. O governo tem que resolver o problema que ele criou”, sintetiza Saci.
Foi numa audiência com produtores rurais em Vicente Dutra que, em 2013, o deputado Luís Carlos Heinze (PP/RS) falou que “quilombolas, índios, gays e lésbicas” são “tudo o que não presta”. Outro dos ruralistas presentes, o deputado federal Alceu Moreira (PMDB-RS) incitou: “reúnam verdadeiras multidões e expulsem do jeito que for necessário”.
A audiência ocorreu dias depois de uma multidão de 500 pessoas tentar expulsar os indígenas da área ocupada em Rio dos Índios. O balneário Águas do Prado, de propriedade de um político local, incide sobre 200 hectares da terra tradicional Kaingang e é mais um dos componentes da situação conflituosa, acirrada pelas falas ruralistas.
Para Ivan César Cima, missionário do Cimi Regional Sul, os indígenas vão na contramão do discurso de ódio, ao defender também o direito dos pequenos agricultores com títulos de boa-fé a receberem indenização e serem reassentados pelo governo estadual.
“Há uma lei estadual que possibilita ao estado o reassentamento de ocupantes de terras indígenas, uma vez que ele reconheceu ter realizado o assentamento de agricultores sobre territórios destes povos”, explica.
Durante a semana de mobilização, entre os dias 9 e 11 de maio, os indígenas fizeram uma manifestação na rodovia RS-150, que dá acesso a Vicente Dutra, e também recolocaram as placas que identificam o território Kaingang, já que as oficiais foram destruídas em represália aos indígenas.
“Num contexto de intensos ataques ao direitos originários desses povos, a mobilização reafirma a resistência, a articulação e a disposição do movimento indígena em seguir lutando pela demarcação”, avalia Ivan. “Também é um sinal aos que se utilizam do arrendamento de terras, passando a mensagem de que, para o movimento indígena, o território é um espaço coletivo para o fortalecimento da cultura e para a produção de alimentos a partir da ótica de cada povo”.
Confira a carta divulgada pelos indígenas:
Terra Indígena Rio dos Índios, 09 de maio de 2018.
Ao: Ministério da Justiça e Funai
Governo do Estado do Rio Grande do Sul
Neste dia 09 de maio iniciamos uma grande mobilização em nossa terra indígena e temos o apoio do movimento indígena da região. Além dos guerreiros da Terra Indígena Rio dos Índios, contamos com a presença das Terras Indígenas Irai, Kandóia, Serrinha, Rio da Várzea, Guarita e Goe Veso. São mais de 500 guerreiros lutando por nosso direito a demarcação da terra tradicional.
Nossa luta já vem já dura algumas décadas, são mais de 30 anos que a Funai deu início aos estudos para o reconhecimento de nosso território tradicional e, em 2004, através de publicação da portaria declaratória, por parte do Ministério da Justiça, o governo federal reconhece o espaço como nosso território. São identificados e declarados 715 hectares.
Acontece que depois da publicação da portaria declaratória, o processo de demarcação esta praticamente paralisado. Mesmo assim continuamos lutando e resistindo, confinados em apenas dois hectares de terra. Nesse pequeno espaço são 46 famílias, mais de 315 pessoas.
Diante desse quadro de paralisia e sufocamento dos nossos direitos, exigimos;
- Que a Funai de início as indenizações dos ocupantes não índios de boa fé e que estas indenizações sejam concluídas;
- Que o estado do Rio Grande do Sul reassente as vinte e duas (22) famílias que desejam ser reassentadas;
- Que o estado do Rio Grande do Sul crie, imediatamente, um grupo técnico para realização dos estudos acerca do reassentamento dessas famílias de agricultores;
- Que o governo federal, por meio de seus órgão competentes, revogue o parecer 001/2017, da AGU. Este parecer é criminoso, foi encomendado pelos ruralistas e tem como finalidade matar nossos direitos;
- Exigimos ainda que seja paralisada, imediatamente, todas as construções de não indígenas dentro de nosso território, especialmente nas dependências do balneário Águas do Prado.
Manifestamos que nossa mobilização é justa, que nossa luta é sagrada, pois lutamos por nosso território tradicional, espaço onde vivem nossos anciões, nossas crianças e onde fortalecemos na nossa cultura. Continuaremos lutando sempre!
Declaramos também nossa preocupação com a devastação dos territórios em demarcação, pois o agronegócio desmata e destrói as terras. Visando recuperar as florestas de parte de nosso território iremos realizar o plantio de 4.000 mudas de araucária. Essa iniciativa faz partes das atividades de nossa mobilização.
Por fim reafirmamos que continuaremos nossa luta, que não aceitamos a tese do marco temporal, pois nossos povos são milenares, existem bem antes de 05 de outubro de 1988. Sempre lutamos e continuaremos lutando pela demarcação de nossos territórios.
Luiz Salvador – Cacique da Terra Indígena Rios dos Índios
Lideranças das Terras Indígenas Irai, Kandóia, Serrinha, Rio da Várzea, Guarita e Goe Veso
Comentários