Representantes dos povos Kanamari, Matis, Mayoruna/Matsés, Kulina Pano, Marubo e Korubo elegem nova diretoria, debatem seus desafios e recebem Ministra presidenta do STF e do CNJ, Rosa Weber
Representantes dos povos Kanamari, Matis, Mayoruna/Matsés, Kulina Pano, Marubo e Korubo elegem nova diretoria, debatem seus desafios e recebem Ministra presidenta do STF e do CNJ, Rosa Weber
GILMARA FERNANDES, COORDENAÇÃO CIMI REGIONAL NORTE I E LÍGIA APEL, ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO CIMI REGIONAL NORTE I
“Queremos que o mundo continue vendo que no Vale do Javari existe problema, existe falta de segurança e de políticas públicas nas áreas indígenas. Queremos contar com as mídias para que o mundo não desassista o Vale do Javari”. Essa é uma das prioridades de trabalho do novo coordenador da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), Bushe Matis, eleito na 7ª Assembleia da organização, realizada nos dias 18 a 20 de março, na aldeia Paraná, alto rio Ituí, uma aldeia Marubo, Terra Indígena Vale do Javari.
Bushe toma posse no dia 06 de abril e já está com o plano de gestão alinhado. Segurança, visibilidade, políticas públicas, proteção aos povos isolados e autonomia são as frentes de ação que o Matis elegeu como prioridades.
“Queremos que o mundo continue vendo que no Vale do Javari existe problema, existe falta de segurança e de políticas públicas nas áreas indígenas”
“Continuamos sendo ameaçados, solicitamos a presença da Força Nacional e equipes de segurança, Ibama [Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis], Procuradorias federal e estadual, para atuarem junto com as lideranças indígenas. Queremos contar com as mídias para que o mundo não desassista o Vale do Javari. Saúde, educação, desenvolvimento, sustentabilidade e proteção territorial, toda a questão do manejo, etnomapeamento… Os povos do Javari que são contatados precisam de mais atendimento, diferente dos povos isolados que precisam de proteção e monitoramento, para barrar e coibir os invasores”, enumera o novo coordenador da Univaja.
A expectativa é grande e está refletida nos rostos das lideranças presentes, como Alfredo Marubo, que logo no início da assembleia animou os participantes dizendo que a Univaja é o espaço dos povos da região. “Nós somos parte da Univaja, lutamos por nossos direitos e por nossas vidas, nossa organização luta por isso”, disse com orgulho.
“Nós somos parte da Univaja, lutamos por nossos direitos e por nossas vidas, nossa organização luta por isso”
Após um período muito duro vivido com a pandemia, que impediu os encontros presenciais, a Univaja realiza sua assembleia com muita festa, alegria e debates importantes. Participaram 87 representantes dos povos Kanamari, Matis, Mayuruna/Matsés, Kulina Pano, Marubo e, pela primeira vez, a assembleia contou com a presença de três representações do povo Korubo, indígenas de recente contato.
Além dos delegados indígenas participaram os parceiros Centro de Trabalho Indigenista (CTI), Conselho Indigenista Missionários (Cimi) e os órgão do governo como a Fundação dos Povos Indígenas (Funai), Fundação Amazônia Sustentável (FAS), Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência, Tecnologia e Inovação (SEDECTI), atuando no Núcleo Estadual de Fronteiras (NIFFAM). Ao total estiveram presentes 120 participantes. Todos com a determinação de contribuir com a proteção dos povos do Vale do Javari.
“Após um período muito duro vivido com a pandemia, a Univaja realiza sua assembleia com muita festa, alegria e debates importantes”
A Univaja é composta pelas nove organizações de base dos povos indígenas que vivem no território: Mayoruna/Matsés, Kanamary, Marubo, Korubo, Matis, Kulina e Tsohom Diapá. Também vivem ali povos isolados.
Na assembleia, as organizações apresentaram seus trabalhos ao longo dos últimos anos e um dos principais desafios apresentados, que se mostrou comum a todos os representantes, foi o problema da fiscalização e monitoramento da Terra Indígena (TI) Vale do Javari. Os relatos apontaram para a presença de caçadores, pescadores, narcotraficantes na região de fronteira (rio Jaquirana, médio Javari), perfazendo limite fronteiriço com o país vizinho, o Peru.
“Na assembleia, as organizações apresentaram seus trabalhos ao longo dos últimos anos e um dos principais desafios apresentados”
“Ocorre uma pressão na TI Vale do Javari, principalmente por pescadores, em especial de pirarucu e animais de caça. Além desses invasores e saqueadores, as aldeias sofrem com ameaças constantes de narcotraficantes, que circulam livremente pela região. Essas atividades ilícitas estão associadas com as práticas ilegais de pesca e caça”, afirmam.
Diante dessa situação, os povos indígenas do Javari montaram estratégias de organização, monitoramento e vigilância próprios. A Equipe de Vigilância da Univaja, conhecida como ‘EVU’, faz esse trabalho. Um dos colaboradores da EVU foi Bruno Pereira, o ambientalista assassinado em 2022 por pescadores invasores e narcotraficantes. Bruno contribuiu com ações de fiscalização, prisão de invasores e apreensão de recursos naturais saqueados da floresta.
“Ocorre uma pressão na TI Vale do Javari, principalmente por pescadores, em especial de pirarucu e animais de caça”
Na assembleia, houve solicitação de mais capacitações em segurança. “Precisamos que cada vez mais indígenas sejam capacitados em proteção territorial e que as aldeias tenham mais segurança, equipamentos e fiscalização”, foi um pedido unânime dos participantes.
Políticas públicas de saúde e educação específicas estão entre os outros desafios apresentados durante a assembleia. Na saúde enfrentam diversos problemas tanto nas comunidades como quando precisam de tratamento na cidade. A educação escolar indígena, esse ano, sofre o descaso do poder público. O ano letivo já começou há dois meses e, ainda, existem comunidades que estão sem aula.
“Políticas públicas de saúde e educação específicas estão entre os outros desafios apresentados durante a assembleia”
Algumas comunidades contam com o ensino fundamental, mas a ausência do ensino médio provoca um êxodo da juventude, dos diferentes povos (Marubo, Kanamari, Matis e Mayoruna/Matsés), para concluir o ensino médio na cidade, em Atalaia do Norte. “Sem um acompanhamento adequado e específico, esses estudantes têm muita dificuldade no aprendizado, justamente, porque precisam se manter na cidade e enfrentam várias dificuldades”, problematiza a assembleia.
Mesmo com tantos desafios de um Estado ausente, principalmente nos últimos anos, pois sofreram ataques sistemáticos e de toda ordem pela política anti-indígena do ex-presidente Jair Bolsonaro, a Univaja mostrou que a sua luta para defender a vida e o direito dos povos indígenas não esmorece e não para. A organização, apoia e incentiva a formação e estruturação de outras organizações que possam estar atendendo as comunidades nas diversas calhas dos rios que banham a Terra Indígena Vale do Javari.
“Sem um acompanhamento adequado e específico, os estudantes têm muita dificuldade no aprendizado, porque enfrentam várias dificuldades”
A assembleia dinâmica e participativa, deliberativa e legítima, é um dos resultados dessa luta. Walclei Araújo Kulina, presidente da Associação Indígena Kulina do Vale do Javari (Aikuvaja), diz que a assembleia foi emocionante e que apesar da disputa, foi um momento de união e interação. “Foi emocionante mesmo, pela primeira vez uma eleição disputada entre parente e parente. Foi muito legal a nossa reunião. Muito discurso, muito bom porque os parentes interagiram, os caciques interagiram”, disse, animado com os resultados e aprendizados.
A assembleia, que foi eletiva escolheu Bushe Matis para a coordenação, por meio de um processo eleitoral democrático, mostrando representatividade e autonomia em todo o pleito. Almério Alves Wadick, mais conhecido como Kell, é um dos missionários do Cimi no Vale do Javari que atua na região, há quase 30 anos, acompanhou o processo eleitoral da Univaja e avalia que as lideranças alcançaram uma posição soberana de atuar sem interferências de pessoas ou instituições não indígenas.
“A assembleia dinâmica e participativa, deliberativa e legítima, é um dos resultados dessa luta do povos do Vale do Javari”
“A assembleia foi propositiva no sentido de que os indígenas conseguiram ‘driblar’ algumas interferências da política local, no sentido da escolha do coordenador. Estamos percebendo que eles perceberam isso e não deixaram acontecer. Mostraram que estão agindo com autonomia. Ficamos satisfeitos com isso porque essa é nossa luta: que os indígenas caminhem com seus entendimentos e donos dos seus processos”, afirma.
Para Urbano Muller, também missionário do Cimi que atua na equipe Vale do Javari há vários anos, a articulação entre as organizações de base foi um ponto importante da assembleia, assim como a presença dos parceiros que apoiam os povos indígenas. “Todos tiveram a oportunidade de apresentar seus projetos e atividades”, salientou, dizendo que o olhar sobre as demandas gera fortalecimento da organização. “Com maior articulação a nível da coordenação da Univaja com os povos indígenas, com as aldeias, com os caciques, é possível ver e conhecer as demandas das bases e se fortalecer para buscar mais resultados. Há esperança de que haja alguma melhoria no movimento indígena”.
“Ficamos satisfeitos com isso porque essa é nossa luta, com os indígenas caminhando com seus entendimentos e donos dos seus processos”
Urbano disse ainda, que há esperança também no novo governo, assim como na realização da assembleia. Reforçando o que os indígenas avaliaram, o missionário também considera muito preocupante as invasões no território. A proteção e vigilância devem ser permanentes e saindo dos anos cruéis do governo Bolsonaro, a perspectiva é de melhorias.
“Predominou [nos debates da assembleia] a discussão sobre as diretrizes da gestão e defesa do território da Terra Indígena Vale do Javari, mas a problemática da gestão territorial, da vigilância, o problema das invasões desse extenso território, é uma questão muito complexa e agora, com o novo governo do Brasil, há esperança de melhores tempos para os povos indígenas. Também com a nova coordenação da Univaja a esperança se renovou. Foi um momento importante para o movimento indígena, que deve realmente se fortalecer”, concluiu.
“A proteção e vigilância devem ser permanentes e saindo dos anos cruéis do governo Bolsonaro, a perspectiva é de melhorias”
A assembleia agradeceu aos parceiros pela presença e ao Cimi fez um agradecimento especial por ter acompanhado, desde o início, a luta pela demarcação da Terra Indígena. As lideranças solicitaram que a equipe do Cimi continue junto, enfrentando desafios, fortalecendo o trabalho nas aldeias, na formação política e no acompanhamento das bases, das lideranças, na defesa dos direitos e denúncia das violações de direitos.
Bush Matis coordenará a Univaja para o triênio 2023/2025, com o Varney Todah Kanamari na vice coordenação. “O grande desafio é continuar lutando pela união na diversidade dos povos do Vale do Javari. Na luta de cada dia por seus direitos e por suas histórias”, é uma das premissas consideradas desafiadoras pelas lideranças na assembleia.
“As lideranças solicitaram que a equipe do Cimi continue junto, enfrentando desafios, fortalecendo o trabalho nas aldeias”
Visita Ministerial
Um dos pontos mais altos da assembleia foi a visita da Ministra Rosa Weber, presidenta do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
O objetivo da ida à aldeia, em um momento em que estavam reunidas as lideranças, foi o lançamento de cartazes sobre audiências de custódia nas línguas indígenas do Alto Solimões, na língua Tikuna, e Vale do Javari, para as línguas Kanamari, Mayoruna/Matsés, kulina e Marubo.
“As lideranças relataram à Ministra a situação de violências extremas que enfrentam, principalmente nos últimos quatro anos, quando o governo brasileiro se negou a protege-los”
O material é resultado da parceria entre o Tribunal de Justiça, a Escola da Magistratura do Amazonas e o CNJ, no âmbito do Programa “Fazendo Justiça”, do CNJ. O Cimi teve uma participação especial na parceria específica para os cartazes do Vale do Javari, articulando as traduções junto às lideranças indígenas.
Sentindo-se valorizados pela visita, as lideranças relataram à Ministra a situação de violências extremas que enfrentaram, principalmente nos últimos quatro anos, quando o governo brasileiro se negou a protege-los, tendo como consequência inúmeras situações de ameaças, a vulnerabilidade dos indígenas e territórios, os saques desenfreados aos recursos naturais e o abandono das políticas públicas de saúde e educação.
“Como os mais de 300 povos indígenas do país, defendemos a retomada urgente à pauta da Suprema Corte do emblemático julgamento do marco temporal”
Entregaram à Rosa Weber uma Carta expondo essas e outras questões e solicitando que seja agendado, com urgência o julgamento do marco temporal, tese inconstitucional e defendida pelos ruralistas, que compromete a existência indígena em solo brasileiro.
Na Carta, a exposição de motivos diz que “assim como os mais de 300 povos indígenas do país, defendemos a retomada urgente à pauta da Suprema Corte do emblemático julgamento do marco temporal. É imprescindível que os Exmos Ministros adotem a correta interpretação do artigo 231 da Constituição Federal que, sob a perspectiva do Indigenato, estabelece que os direitos territoriais indígenas são originários, anteriores à própria Constituição do Estado brasileiro, e, portanto, não estão condicionados a nenhuma espécie de data ou marco temporal, cabendo ao Estado apenas a sua declaração e reconhecimento de direito prévio”.
“A não aprovação da tese do marco temporal é extremamente importante para a manutenção dos direitos históricos conquistados ao longo da história”
E condicionam a não aprovação da tese à continuidade de suas vidas, como elas são.
“A não aprovação da tese do marco temporal é extremamente importante para a manutenção dos direitos históricos conquistados a duras penas pelo movimento indígena ao longo da história. A relação com o território é para nós condição fundamental a garantir a nossa existência, não uma mera propriedade. Acolher essa interpretação [de propriedade] inconstitucional é acolher discurso anti-indígena que prega a nossa extinção”, conclui a Carta.
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