General que comanda a ação rebate dizendo que os Estados Unidos e o Brasil são países amigos (Foto: 4⁰. Bavex)
Tabatinga (AM) – A fronteira oeste da Amazônia brasileira, que faz divisa com o Peru e Colômbia, é uma região de forte pressão de crimes transnacionais, como o narcotráfico e contrabando. É também reconhecida por ser palco de graves conflitos socioambientais por causa dos garimpos ilegais em terras indígenas. No momento, a Polícia Federal investiga a suspeita de morte de índios isolados por garimpeiros no Rio Jandiatuba, dentro da Terra Indígena Vale do Javari, no estado do Amazonas, na fronteira com o Peru.
É nesta região da tríplice fronteira que o Exército brasileiro iniciou esta semana o exercício logístico multinacional de ajuda humanitária Amazonlog. A operação tem a participação inédita de militares norte-americanos do Comando Sul dos Estados Unidos (Southcom), sediado na Flórida.
O Southcom é responsável por ações de contingência, operações e cooperação de segurança para América Central e do Sul, além de parte do Caribe.
A presença dos norte-americanos no Amazonlog causou surpresa em especialistas brasileiros que estudam a política de defesa para a Amazônia e as relações internacionais do Brasil com outros países da região.
“Certamente o que motiva essa participação são interesses na prevenção e preparação de ações militares conjuntas com a supervisão e participação da Quarta Frota estacionada no Atlântico Sul para possível intervenção na Venezuela ou no próprio Brasil, em caso de incremento das crises institucionais, desde que apontem para a necessidade de preservação dos interesses norte-americanos na América do Sul“, afirma o professor Durbens Martins Nascimento, diretor-geral do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da Universidade Federal do Pará (UFPA).
Segundo o Ministério da Defesa, o Amazonlog é uma grande ação logística de preparação dos países sul-americanos para desafios e deslocamentos de assistência humanitária e para responder a desastres naturais em todo o continente, além da apresentação de tecnologias a serem usadas nestas ações.
Para o Exército brasileiro, o Amazonlog é também um grande exercício de mobilização na Amazônia, pois serão usados 13 helicópteros, 11 aviões e diversas embarcações nas quais serão realizados atendimentos de saúde às populações ribeirinhas e comunidades indígenas dos países vizinhos.
Com custo de R$ 15 milhões, o exercício militar envolve quase 2.000 participantes. Veja os números por nacionalidade no mapa abaixo:
Aproximação militar
Durante o governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (de 2003 a 2011) foi firmado um acordo de cooperação na área de defesa, em 2016. O ex-presidente Barack Obama assinou o acordo que previa exercícios militares conjuntos, compras mútuas de produtos e serviços e a transferência de tecnologia de sistemas e equipamentos militares. O acordo foi negociado durante sete anos e não envolveu a instalação de bases militares no Brasil, segundo a revista Istoé.
O último documento sobre a cooperação bilateral na área de defesa foi assinado nos anos 50 e vigorou até 1977, durante a gestão do general Ernesto Geisel na Presidência.
A aproximação militar entre os Estados Unidos e o governo de Michel Temer, que assumiu a Presidência da República em 31 de agosto de 2016, começou com assinaturas de termos de convênio de intercâmbio para projetos de desenvolvimento tecnológico. Em setembro último, Temer enviou ao governo de Donald Trump uma proposta de acordo para permitir a utilização da Base de Alcântara, no Maranhão, para o lançamento de satélites americanos e de outras nações que utilizam tecnologia do país, como informou o jornal “O Estado de S. Paulo”.
O documento está sob análise do Departamento de Estado dos EUA há dois meses. Em 2001, durante o governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (de 1995 a 2002), o Congresso brasileiro rejeitou a proposta de um acordo semelhante sob o argumento de que os termos violavam a soberania nacional.
Em outubro, o presidente Temer visitou, pela primeira vez, o Centro de Lançamento de Alcântara. Ele estava acompanhado de vários ministros, incluindo o da Defesa, Raul Jungmann, que já esteve, em outra ocasião, em Alcântara no atual governo.
A assessoria de comunicação do Ministério da Defesa informou à reportagem da Amazônia Real que Jungmann confirmou presença no exercício em Tabatinga no próximo dia 11 (sábado).
Momento de pacificação
O antropólogo Alfredo Wagner Berno de Almeida, coordenador do projeto Nova Cartografia Social da Amazônia, da Universidade do Estado do Amazonas (UEA), se diz surpreso com a participação inédita dos militares norte-americanos no exercício brasileiro. De acordo com ele, o momento no continente é de pacificação e resolução democrática das questões nacionais.
Almeida cita a desativação militar das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) e as recentes eleições na Venezuela, em que quatro dos cinco governadores de província eleitos pela oposição se comprometeram em uma convivência pacífica com o governo nacional.
“Acho que essa preocupação militar, ou de características militaristas, um pouco extemporânea, ela não está coadunada com esse tempo“, afirma o professor Wagner.
Segundo o Ministério da Defesa, o Amazonlog foi inspirado na Capable Logistician (na tradução literal Logística Capaz) 2015, realizada pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), a aliança militar do Ocidente liderada pelos EUA, realizada na Hungria. Militares brasileiros foram enviados como observadores para o exercício na Europa, quando foi montada uma base para atender a chegada de refugiados da Síria e da África fugidos de guerras civis em seus países.
Em entrevista em Tabatinga, o general Theophilo Gaspar de Oliveira, comandante Logístico do Exército e do Amazonlog rebateu as críticas à participação dos Estados Unidos no exercício. Segundo ele, Brasil e Estados Unidos participam de exercícios conjuntos há anos e são dois países amigos.
“Os Estados Unidos têm uma expertise muito grande no que se refere em calamidades e ajuda humanitária”, afirmou o general, comandante do Amazonlog. “Só de furacões, ele teve lá uns quatro. E rapidamente se reconstrói. Nós aqui queimamos quase que anualmente o Parque da Chapados Guimarães, Chapada Diamantina, Roraima vive queimando. E eles têm esse know-how, e têm como passar esse know-how pra gente”.
O general Theophilo negou que a participação dos militares norte-americanos estaria relacionada a preparação de uma possível ação militar dos Estados Unidos contra a Venezuela.
“Não se justifica aproveitar o Amazonlog para se aproximar da Venezuela. Eles já estão na Colômbia há muitos e muitos anos, que é muito mais próximo da Venezuela. Os Estados Unidos têm bases, têm pistas de pouso em quase toda a América do Sul”, disse o general.
O coronel Robert Truax, diretor Logístico do Comando Sul dos EUA (Southcom), afirmou durante a entrevista que a intenção é que os dois países estejam mais juntos para atuar em caso de necessidade. Deu como exemplo a atuação das tropas brasileiras no Haiti, onde americanos também estavam presentes.
“Simplesmente estamos aqui na Amazônia somente porque o Exército Brasileiro nos convidou. Se nos tivesse convidado para estar no Sul ou outro lugar, estaríamos ali também”, declarou o oficial americano.
A Embaixada dos Estados Unidos em Brasília, disse, em nota oficial, que durante oito dias cerca do Amazonlog 50 funcionários do governo estarão presentes no exercício militar na tríplice fronteira. “Dezenove observadores permanecerão no local durante o evento, enquanto 31 membros da Guarda Aérea Nacional de Montana ficarão baseados em Manaus oferecendo transporte aéreo administrativo em conjunto com os funcionários dos EUA em Tabatinga”, diz a nota.
Conforma a embaixada, o exercício prevê ações conjuntas de tropas multinacionais e interagências do Brasil, Colômbia, Estados Unidos e Peru. “Uma base logística internacional composta por unidades multinacionais integradas (ULMIs) será construída na hostil e desafiadora Floresta Amazônica. ULMIs serão treinados para dar apoio a civis e militares instalados em regiões remotas, como ocorre tipicamente em operações de paz e assistência humanitária”, diz a nota.
Crise de refugiados
A partir do final do ano de 2010, após o terremoto que devastou no Haiti, milhares de haitianos ingressaram pela fronteira de Tabatinga pedindo refúgio ao Brasil. O país foi obrigada a fazer uma visto humanitária para receber os imigrantes legalmente. A fronteira recebe migrantes também de países da África, além de populações indígenas do Peru e Colômbia.
O general Theophilo lembra que, à época da chegada dos haitianos, não havia controle na entrada de refugiados na fronteira brasileira. “Baseado nesse desafio, eu imaginei que nós pudéssemos, num modelo que a Europa adota, fazer uma base logística multinacional integrada. Às vezes, a gente pensa que o narcotráfico não tem nada a ver com o Amazonlog. De determinada forma tem, porque o Amazonlog quer mostrar ao mundo inteiro a ausência de Estado na Amazônia. Então nós temos que mostrar que temos que ter a presença com apoio à educação e saúde, com a presença militar, com a presença de comunicações”, disse o general Theophilo.
Mudança de rumo
Para o professor Durbens Martins Nascimento, diretor-geral do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da Universidade Federal do Pará, a presença de militares dos Estados Unidos na Amazônia brasileira é uma mudança de rumo na política de segurança nacional. “Hoje está em curso uma aproximação acelerada entre os dois países [Brasil e EUA], como se o tempo fosse inimigo desse objetivo”, afirma.
Nascimento destaca que há até pouco tempo, o Brasil investia pesadamente na migração de batalhões do Centro-Sul para a Amazônia devido à ameaça representada, embora isso não fosse dito claramente, por um consórcio de países liderados pelos Estados Unidos interessado na internacionalização da região.
Para ele, a participação dos Estados Unidos em um exercício de ajuda humanitária é questionável, pois o país enfrenta críticas na prevenção e reconstrução de eventos climáticos, como ocorreu em Porto Rico com a passagem do furacão Maria. Outro exemplo ocorreu em 2005 com o furacão Katrina cujo maior estrago deixou na cidade de Nova Orleans. Autoridades federais foram criticadas por não terem respondido à altura aos impactos causados. Em todo o sul dos EUA, mais de 1.800 pessoas morreram.
O vice-reitor da Universidade Federal de Roraima (UFRR), Américo Lyra, professor associado de Relações Internacionais, concorda que a presença americana indica uma mudança na política externa brasileira, pois o Brasil buscava uma maior autonomia para a região.
Mas o professor da UFRR não vê essa presença com estranhamento, já que os dois países são parceiros desde a Segunda Guerra Mundial, com momentos de maior ou menor aproximação.
Mas há cenários que causam preocupação, na visão dele, quanto ao discurso da soberania brasileira na Amazônia. O risco seria uma mudança de doutrina, com a perda de autonomia das Forças Armadas e um alinhamento com as pretensões americanas de se manter como única potência mundial.
Na avaliação dele, os EUA hoje se movimentam para barrar a influência política da China em nível mundial.
“Nesse tabuleiro, em função dessa política externa americana de afirmação de potência, existe sim o risco de nossas Forças Armadas perderem a autonomia de atuação “, alerta o professor. “Ou seja, a capacidade de dissuasão e de expor suas estratégias de defesa seriam dos Estados Unidos. Coisa que efetivamente as [forças armadas] peruana e colombiana perderam com os investimentos americanos [na política de combate às drogas] “, completa.
Para ele, o Plano Colômbia transformou as forças armadas dos países sul-americanos em uma polícia bem armada dos Estados Unidos para combater o tráfico de drogas.
Américo Lyra alerta também para o risco do humanitarismo que legitima a operação fortalecer o conceito desenvolvimentista de integração das populações indígenas e ribeirinhas à “cultura ocidental”, sem valorizar a diversidade que existe na Amazônia. Segundo ele, esse discurso está baseado na ideia de que todos podem consumir.
“Nesse discurso desenvolvimentista, os Wai-Wai [índios que vivem na divisa de Roraima, Amazonas e Pará] vão ter que abandonar a sua cultura, a sua tradição para se tornar um ser produtivo, ou seja, um ser integrado “, afirma o professor. “Ele vai ter que se adequar ao que nós somos, à nossa fé, à nossa medicina. Ele vai ter que abandonar a dele, que é distinta da nossa, a medicina empírica, por exemplo”.
Para ele, esse discurso desenvolvimentista está alinhado às pretensões de avanço econômico americano, pois significa integrar as populações da Amazônia ao mercado consumidor e ao sistema de produção. “Para perder a soberania, você não precisa perder território”, destaca.
“Se você tem um exército ganho com o discurso do desenvolvimentismo, da integração, se você tem forças políticas oficiais também comprometidas com isso, você dominou. Você já faz com que o país perda a autonomia, sem precisar dar um tiro “, completa Américo Lyra.
A desinformação de Alcântara
O antropólogo Alfredo Wagner Berno de Almeida, coordenador do projeto Nova Cartografia Social da Amazônia (UFAM), questionou o acordo entre o Brasil e os Estados Unidos para o lançamento de foguetes americanos Alcântara, no Maranhão, avaliando que existe um processo de militarização despropositado em relação à realidade que se vive no Brasil
“Estamos vivendo uma realidade de discussão democrática levada ao extremo a despeito de ter processos de judicialização da política ou politicialização da Justiça “, diz o professor. “Nós temos a convergência desses dois processos. Acho que isso transforma o momento atual em algo de imprevisibilidade. A gente não pode dizer o que vai acontecer. Não tem estudos suficientes.”
Segundo Alfredo Wagner, no próximo dia 25 de novembro acontecerá em Alcântara uma audiência pública para discutir o processo e regularização das terras. Há mais de 30 anos as comunidades quilombolas reivindicam um território tradicional que o governo do Maranhão desapropriou para a construção do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA) da Força Aérea Brasileira (FAB), onde desenvolve o programa aeroespacial com foguetes.
Para implantar o CLA em 1983, o governo deslocou 312 famílias quilombolas de suas terras sem consultá-las, sem pagar indenizações ou reparar os danos sociais, culturais, políticos e econômicos a elas. A violação de direitos dessas famílias foi denunciada, em 2008, na Organização Internacional do Trabalho, em Genebra, na Suíça.
“No caso de Alcântara não houve nenhuma informação prévia à sociedade sobre isso”, protesta Alfredo Wagner. “As informações de Alcântara são as mais controversas. Infelizmente são as comunidades locais que sofrem as pressões de ouvir dizer: ‘olha vocês vão ser removidos’.”
Energia e asfalto
Com pouco mais de 63 mil habitantes, Tabatinga, no oeste do Amazonas, na tríplice fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru, recebeu melhorias de infraestrutura para sediar a base do exercício militar Amazonlog. A região é conhecida como Alto Rio Solimões.
A rede de energia de Tabatinga, que fica 1.105 quilômetros de Manaus, foi revitalizada. Um quilômetro de ruas e estradas estão com asfalto novo. O Exército calcula que R$ 4 milhões foram investidos nas obras de infraestrutura da cidade.
Segundo o Exército, as ações para realização do exercício Amazonlog vêm sendo preparadas há dois anos. Antes das tropas chegarem a Tabatinga, foram realizados exercícios de preparação e um seminário em Manaus para discutir questões humanitárias e as ações, quando foi realizada também uma exposição de material de emprego dual, ou seja, equipamentos militares que podem ser usados também em ações civis.
A mobilização para transportar todo o material até Tabatinga começou em julho, quando contêineres do Exército começaram a atravessar o país em estradas, rios e pelo ar. Foram percorridos cerca de 20 mil quilômetros de estradas, 30 mil em aeronaves e 40 mil em rios, para levar um hospital de campanha, uma UTI móvel, aparelhos médicos e odontológicos, além outros equipamentos, armas, alimentos e medicamentos. (Colaborou Kátia Brasil)
* O jornalista Vandré Fonseca viajou a Tabatinga à convite do Amazonlog.
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