No litoral cearense, um empreendimento espanhol já embargado pela Justiça ainda gera conflitos, agora em plena pandemia; na Bahia, proprietários de casas de veraneio decidiram passar lá suas quarentenas e foram barrados pelos seguranças voluntários
Por Ludmilla Balduino
No Ceará, o povo Tremembé é ameaçado há quase duas décadas pela construção de um gigantesco complexo turístico em seu território. A criação do empreendimento dividiu a comunidade: alguns negaram suas origens ancestrais e houve um conflito que causou o apedrejamento de uma adolescente, em 2004. Ela ficou com o olho lesado. Com a barreira sanitária instalada pelos Tremembé no fim da estrada que dá acesso à terra indígena, o conflito voltou à tona: os voluntários nas barreiras são ameaçados de morte pelos que negam o DNA Tremembé.
Mais ao sul, os Pataxó são guardiões do primeiro território invadido pelos portugueses em 1500, na Bahia: uma faixa litorânea — e preservada — de Mata Atlântica. Mas de interesse para um determinado setor econômico: o turismo. Turistas brasileiros e estrangeiros insistem em entrar na terra indígena ainda não homologada para curtir a quarentena longe das cidades grandes, como se estivessem de férias. Com ajuda da comunidade local, formada basicamente por pescadores, os indígenas estão conseguindo evitar esse assédio.
Os dois casos mostram o turismo como uma modalidade específica de ameaça aos povos indígenas em tempos de pandemia. As barreiras sanitárias têm se mostrado uma alternativa eficaz das etnias contra a proliferação do novo coronavírus. Nem sempre, porém, essa decisão autônoma — tomada por eles à margem da recomendação da Fundação Nacional do Índio (Funai) — é respeitada: “Bloqueios sanitários de indígenas são desafiados e explicitam conflitos históricos“.
EMPREENDIMENTOS COBIÇAM TERRITÓRIOS INDÍGENAS
— Nossa terra tem um outro sentido, um outro significado pra gente, não é apenas moradia, é onde temos todas as lembranças dos nossos antepassados, do nosso povo, é uma terra sagrada. É a nossa mãe, é tudo para a gente. Quando uma coisa é sagrada para alguém, é porque tem uma importância muito grande. Aqui tem todos os nossos saberes, as nossas crenças, acreditamos que nossos antepassados permanecem aqui na nossa terra conosco. São todas essas coisas que fazem com que a gente permaneça aqui.
A frase é de Erbene Tremembé, líder da etnia matriarcal Tremembé, no litoral do Ceará. Seu povo voltou a ser ameaçado após bloquear, com recursos próprios, o último trecho da estrada que termina na única entrada da Terra Indígena Tremembé da Barra do Mundaú, em Itapipoca, a 130 quilômetros de Fortaleza. O bloqueio no dia 1º de maio foi decidido pelos próprios indígenas, que limitaram a circulação no território para evitar a disseminação da Covid-19 entre os parentes.
A frase sob a placa da terra indígena, embora tradicionalmente ignorada, já avisa: “Acesso interditado a pessoas estranhas”. A faixa em tempos de pandemia reforça o recado: “Fica em casa”.
Esse foi o estopim para que recomeçassem ameaças aos Tremembé por parte de quem apoia a exploração turística da região e a expulsão dos indígenas. Já faz quase duas décadas que os Tremembé, que vivem ali há pelo menos 200 anos, precisam provar que moram nessa terra, hoje prometida para o turismo de massa. A faixa litorânea de 3.580 hectares de vegetação nativa entre o Rio Mundaú e o Oceano Atlântico já foi demarcada e aguarda a homologação. O atual presidente, Jair Bolsonaro, se comprometeu a nunca homologar.
O maior interessado no território é o consórcio Nova Atlântida, que apareceu em 2002 com documentos que provariam a posse do terreno e com um projeto — com croqui e maquete — da construção de um resort. A especulação intensa provocou um racha entre os parentes da etnia Tremembé. Coordenado por um grupo espanhol, o consórcio é formado por 27 empresas nacionais e estrangeiras. A ideia inicial era construir o maior complexo turístico-residencial do planeta, transformando a região no que eles mesmos chamavam de “Cancún brasileira”.
Ernebe Tremembé: “A gente não está à venda”
O grupo contava com o apoio de Cid Gomes (PDT), que, em 2008, era governador do Ceará. Hoje ele representa o estado no Senado. No meio daquele ano ele desceu de helicóptero no meio das dunas da Aldeia São José, com uma comitiva de apoiadores políticos e empresários do grupo Nova Atlântida, para tentar convencer os indígenas de sair do local.
Erbene conta que ele ofereceu comprar qualquer outro lugar para eles morarem. Os Tremembé não aceitaram. Cid disse, então, que a terra indígena não seria beneficiada com escola, posto de saúde, energia elétrica, estrada e saneamento:
— A gente disse que nada disso tinha importância, que temos o nosso direito de cidadãos brasileiros de permanecer na terra. Não queremos trocas. A gente não está à venda.
Apesar da ameaça, a Escola Estadual Brolhos da Terra foi fundada no ano seguinte, e Cid Gomes desculpou-se publicamente pelo fato. Em 2016, o projeto Nova Atlântida foi finalmente barrado pela Justiça Federal. Alguns moradores da TI, que haviam negociado com o grupo espanhol e agora negam suas identidades indígenas, continuam a ameaçar os que são contrários à construção do resort.
“Todos nós somos parentes, todos somos indígenas, mas por conta da empresa que oferecia emprego, oferecia moradia, mais de cem famílias ficaram do lado da empresa, e continuam até hoje”, diz Erbene, professora na Brolhos da Terra.
VOLUNTÁRIOS FORAM ATACADOS POR CINCO HOMENS
As ameaças quase diárias fizeram os Tremembé intensificar a segurança. A entrada da TI é resguardada por 24 horas, todos os dias, por quatro grupos de voluntários. No terceiro domingo de maio (17), por volta das 22 horas, os voluntários na guarita foram atacados por um grupo de cinco não-indígenas. “A gente precisou chamar a Polícia Militar, e o grupo só foi embora quando percebeu a movimentação da chegada da PM”, conta Mateus Tremembé, um dos jovens líderes da aldeia.
Erbene conta que, no início, quando a barreira foi instalada, não-indígenas de municípios vizinhos ainda invadiam o território para tomar banho nos córregos ou nadar na lagoa. “As pessoas não estavam preocupadas, não tinham essa consciência, mesmo saindo no jornal todos os dias as informações sobre o coronavírus”, diz.
Com a intensificação da segurança nas entradas, Erbene relata que o problema está agora nos próprios indígenas que insistem em viajar para Fortaleza e voltar, e que fazem os seus trajetos sem usar máscara: “A gente está tentando conscientizar que este momento não é o mais adequado para isso. Todo mundo tem de ficar dentro da aldeia”.
Na quarta-feira (27) Erbene informou que seu filho está com suspeita de coronavírus. Ele foi encaminhado para o posto de saúde da região para tentar fazer o teste. Até o momento, é o único caso suspeito da aldeia, embora ele tenha tido contato com mais pessoas da TI nos últimos dias.
TURISTAS QUERIAM PASSAR QUARENTENA NA CASA DE PRAIA
O modo de vida comunitário no sul da Bahia tem ajudado a evitar a contaminação nas catorze aldeias da Terra Indígena Comexatiba, cujo único acesso é por meio de uma estrada de terra que passa pelo povoado de Cumuruxatiba. Isso porque há um bloqueio na entrada do povoado, cuja população é composta em sua maioria por pescadores artesanais.
No início houve confusão: turistas e proprietários de casas de veraneio entraram em conflito com os voluntários na barreira. A intenção desses viajantes era passar a quarentena no local, que, antes do derramamento de petróleo de 2019 atingir as praias da região, despontava como destino turístico por causa de suas praias com extensas faixas de areia dourada, manguezais cheios de vida e falésias que despontam na paisagem como coroas vermelhas.
“Começou a chegar gente de Brasília, Salvador, Rio de Janeiro, e até de outros países, como a Itália”, conta Dario Pataxó, agente de saúde indígena, líder da aldeia Cahy e uma das lideranças da TI Comexatiba. “Uns apresentavam comprovante de residência. Mas aqui todo mundo conhece todo mundo, e não deixamos eles ficar”. A medida de precaução faz sentido: a Itália, por exemplo, era naquela época um dos epicentros da pandemia na Europa.
As porteiras das catorze aldeias permanecem fechadas, enquanto o trabalho na barreira da entrada de Cumuru (como o distrito da cidade de Prado é chamado carinhosamente pelos moradores) é constante. Durante o dia, agentes de saúde do município de Prado, funcionários da prefeitura e indígenas ficam no posto. À noite, o monitoramento do bloqueio fica por conta de moradores voluntários do povoado.
Mesmo com todas as restrições de acesso, uma moradora de Cumuru contraiu o novo coronavírus. A mulher, que tem um marido idoso e está em isolamento em sua casa, diz que esteve três vezes em Prado, em busca de atendimento médico, mas não conseguiu.
‘NOSSOS ANCIÕES E CRIANÇAS ESTÃO COM MEDO’
A Terra Indígena Barra Velha, que está dentro dos municípios de Porto Seguro, Prado e Itamaraju, também no sul da Bahia, tem pelo menos cinco aldeias com barreiras sanitárias. A preocupação dos indígenas da região é que a doença — que já se instaurou nos municípios vizinhos — chegue às aldeias.
Na sexta-feira (29), o governo do estado da Bahia já contabilizava 16.917 casos confirmados de coronavírus e 609 mortes. Itamaraju tem, de acordo com a Secretaria de Saúde da Bahia, 98 casos confirmados. Em Porto Seguro, até agora, foram 89 casos; em Prado houve 10 confirmações.
“Estamos o tempo todo orientando aos indígenas que não se desloquem até Itamaraju, porque lá a situação está tensa, começando a ficar fora de controle”, diz Dario. “O povo nas aldeias está com medo. Nossos anciões, as crianças estão preocupadas”.
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