De Olho nos Ruralistas constatou violações de direitos em cinco municípios do Mato Grosso do Sul; aterro onde eles buscavam alimentos foi cercado e encontra-se sob vigilância para impedir acesso; governo Bolsonaro agravou problema

Por Cláudio Eugênio (texto) e Manoel Marques (imagens), em Dourados (MS)

Não ter, procurar, não encontrar, pedir, mendigar, esmolar, sofrer com a fome, e no final, a possibilidade de até morrer. Essa é a desumana rotina pelo qual passam ao menos 33 milhões de pessoas no Brasil em 2022, segundo dados do 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19, lançado pela Rede Penssan. Uma realidade acentuada em territórios que sofrem historicamente com a expulsão e a violência sistemática por atores do agronegócio.

Caminhão de lixo em Dourados: último recurso para indígenas da região. (Foto: Manoel Marques/De Olho nos Ruralistas)

Entre os meses de agosto e setembro, De Olho nos Ruralistas percorreu cinco municípios do Cone Sul do Mato Grosso do Sul, epicentro das violações de direitos contra o povo Guarani Kaiowá e assistiu a um cenário de guerra. Impedidos de acessar alimentos até mesmo no lixão, os indígenas se veem entregues ao desespero.

“A fome por aqui é muito séria, a todo momento chega a notícia de que o nosso povo está lá no lixão, onde busca o que comer, é a difícil luta pela sobrevivência, porque a fome é muito grande”, indigna-se a anciã Edite Guarani, uma das líderes indígenas da Reserva de Dourados (MS), a maior do país, onde vivem cerca de 20 mil pessoas das etnias Guarani Kaiowá, Guarani Ñandeva e Terena, nas aldeias de Bororó e Jaguapiru, além das áreas de retomadas.

O lixão da cidade fica a cerca de 12 quilômetros da aldeia Bororó, perto da estrada que liga Dourados com Itaporã. Segundo Dona Edite, como é conhecida, o “seu povo” sai dos territórios e vai longe atrás de alguma comida que garanta a sobrevivência. “Vão andando, a pé, de bicicleta, de carroça, vão longe atrás de comida”, explica ela.

‘MEU PRIMO DE 22 ANOS MORREU DE FOME’

“Meu primo Beniel, de 22 anos, morreu de fome, ele morava aqui na aldeia Bororó, em Dourados”, conta Roseia Martins, de 35 anos, que conversou com a reportagem no lixão em Dourados. “No começo deste ano, ele decidiu morar sozinho e se mudou para a aldeia de Sucuri, lá em Maracajú (MS). Ficou em um lugar que não tinha nem um fogãozinho”.

Ela relata que, em maio deste ano, o primo ficou vários dias sem ter o que comer. Ele pediu comida e ninguém acreditou que ele estivesse nessas condições: Beniel era alcoolista e ainda sofria os feitos da falta da bebida. “Uma semana depois de sumido, foi encontrado morto pelos vizinhos, sozinho, dentro do barraco”, conta ela.

Dona Edite denuncia o avanço da fome no território Guarani Kaiowá. (Foto: Manoel Marques/De Olho nos Ruralistas)

Segundo Roseia, no lixão não é mais possível conseguir comida, porque os alimentos não são mais jogados lá. Agora, eles ficam guardados em uma área cercada, sob vigilância. “Hoje só dá para achar algumas coisas em bom estado, como um par de sapatos”, conta. “Quando isso acontece, eu pego e vou direto negociar lá na cidade. Às vezes consigo levantar vintão em troca do que encontro aqui”.

— De vez em quando falta comida lá em casa, um ou dois dias, daí eu venho aqui cavucar alguma coisa que tenha algum valor e levo para a cidade para trocar por um pouco de arroz ou qualquer outra coisa.

“JÁ PASSAMOS TRÊS DIAS SEM COMER”, CONTA JOVEM INDÍGENA

Segundo estudo da FGV Social, divulgado em maio, a parcela de brasileiros que não tem dinheiro para “alimentar a si ou a sua família em algum momento nos últimos doze meses” subiu de 30% em 2019 para 36% em 2021. É a primeira vez desde 2006 que a insegurança alimentar brasileira supera a média mundial.

“Estamos passando muitas necessidades, se nós não sairmos atrás dos alimentos, ninguém traz”, conta Nayara Guytatague, de 21 anos, que mora com o marido, dois filhos pequenos e outros três parentes, em uma área de retomada batizada de Avaeté, em Dourados.

— Já passamos três dias sem comer, as crianças começando a chorar de fome. Saí e fui até o Cimi [Conselho Indigenista Missionário] lá na cidade pedir socorro. Foi onde consegui três pacotes de arroz, uma lata de óleo, duas caixinhas de leite e dois pacotinhos de bolachinhas. Foi o que nos salvou.

E agora, o que ela come?

— Eu peço os restos da frutaria, se a pessoa tiver um bom coração, doa duas, três caixas de legumes. Eu já cheguei a carregar sozinha três caixas de frutas para distribuir para as famílias aqui dependem muito de mim.

Roseia Martins contou sua história à equipe do De Olho nos Ruralistas. (Foto: Manoel Marques/De Olho nos Ruralistas)

Nayara conta que se as famílias precisarem de alguma misturinha e ela não tiver, ela sai e vai até a cidade pedir. “Tem um restinho de gordura para dar para nós, estamos precisando? ”, suplica. Se o dono do açougue tiver um bom coração, arruma para ela um monte de dorso, gordurinha e puchero (um ensopado feito com carnes e embutidos). “Eu trago aqui para casa e começo a distribuir. Se for um dia que eu estiver com sorte, trago junto umas batatinhas, tomates e repolhos”.

ATY GUASU DENUNCIOU ESTADO FAMÉLICO DOS INDÍGENAS NO MS

“A fome é resultado da desorientação do Estado brasileiro”, pontua Erileide Domingos, de 27 anos, líder da aldeia Guyraroká, entre Dourados e Amambai (MS). “É muita falta de piedade com o outro, de olhar os pobres, sem condições, sem emprego, sem possibilidade de plantar, não conseguimos produzir nada, não conseguimos ser ninguém”, indigna-se Erileide. Na avaliação dela, o atual governo desestruturou tudo que tinha sido conquistado pela população mais pobre. “Tem muita gente se alimentando do lixo para sobreviver”, lamenta.

No mês de agosto, a jovem Erileide esteve na Organização das Nações Unidas (ONU), em Genebra, na Suíça, representando a Grande Assembleia dos Povos Guarani e Kaiowá (Aty Guasu), durante a pré-sessão da Revisão Periódica Universal. Ela fez um balanço da situação dos direitos humanos dos povos indígenas no Brasil, em especial no Mato Grosso do Sul. Cobrou a reconsideração da atual posição institucional acerca da Declaração da ONU sobre as violações perpetradas pelo atual governo.

Para ela, as cestas básicas oferecidas pelo governo federal são insuficientes para o consumo regular das famílias e terminam em poucos dias. “Acaba em uma semana, dependendo do tamanho da família. Depois, as pessoas não têm o que comer”, exaspera-se Erileide. A fome, ela conta, não tem dia, nem hora – é um desespero, a pior doença que se pode ter. “Isso já está acontecendo com todos esses cortes nos programa sociais feitos durante este governo”, complementa.

Dona Edite, da Reserva de Dourados, diz que muitas pessoas da cidade doam algum alimento, mas não é o suficiente para atender todos que precisam. “É como uma migalha para dividir com uma multidão que sai das aldeias em busca do que comer diariamente”, conta. Para ela, a falta de mantimentos é resultado, entre outras coisas, da ausência da Fundação Nacional do Índio (Funai), que deixou de ajudar como fazia, antes do atual governo.

— O que recebemos hoje não é suficiente, temos que se virar para conseguir trazer o sustento para casa. Ultimamente o governo não está olhando nem para os brancos da periferia, imagine para os povos indígenas.

Erileide Domingos leva a denúncia das violações contra seu povo às instâncias internacionais. (Foto: Manoel Marques/De Olho nos Ruralistas)

“BOLSONARO TEM UMA VISÃO DE MORTE”, AVALIA CACIQUE

“A fome no Brasil é resultado do escárnio do atual governo federal com as políticas voltadas para a proteção social”, aponta o economista Newton Narciso Gomes Júnior, um dos principais especialistas em Segurança Alimentar e Nutricional no Brasil. Ele lembra que Bolsonaro mostrou a que veio logo nos primeiros dias de governo, ao emitir a portaria que implodiu o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea). Para ele, foi o primeiro de uma série de atos que aniquilaram os mecanismos de inclusão social criados ao longo dos últimos vinte anos.

“As políticas públicas de combate à pobreza e à miséria, entre 2004 e 2013, que reduziram a fome a apenas 4,2% dos lares brasileiros, foram excluídas da realidade brasileira”, avalia Renato Maluf, coordenador da Rede Penssan. Segundo ele, as ações tomadas pelo governo para contenção da fome são isoladas e insuficientes diante de um cenário de alta da inflação, sobretudo dos alimentos, do desemprego e da queda de renda da população, com maior intensidade nos segmentos mais vulneráveis.

“A população indígena tem fome de comida, de educação, de saúde, de produção, fome de preservar o meio ambiente, fome de tudo”, avalia o cacique Anastácio Peralta. “Nós precisamos estancar essas fomes”.

Em sua opinião, Bolsonaro tem uma visão da morte.

— Daqui algum tempo não vai sobrar vida nem para ele, porque se ele não cuida da natureza, não está cuidando dele mesmo. Nós, indígenas, somos natureza. Precisamos de representantes que tenham uma visão de continuidade da vida, e não da morte.

Cláudio Eugênio é jornalista. |

Imagem principal (Manoel Marques/De Olho nos Ruralistas): Guarani Kaiowá procura comida em meio ao lixo em Dourados (MS). 

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Fonte: https://deolhonosruralistas.com.br/2022/10/28/com-fome-guarani-kaiowa-sao-proibidos-ate-de-buscar-comida-em-lixao/

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